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sábado, 8 de setembro de 2012

O episódio da lâmpada



Estava cumprindo a quarentena no hospital onde acordei após meu sono de dez anos. Era tardezinha. Eu acabava de tomar o chá de erva cidreira que me deram acompanhado de um belo pão com manteiga, um pão quentinho como eu não comia fazia tempo – isso sem levar em conta os dez anos – é que mesmo antes de dormir eu já desejava um pãozinho desse mesmo jeito, que me fazia parecer ter voltado à infância... Comer aquele pão me lembrava bons momentos, uma simples mistura milenar de trigo e água que era incrementada pela minha mãe com a quantidade exata do recheio perfeito para um pão quentinho, a manteiga.
Decidi passear pelo hospital, conhecer gente nova. Caminhando pelos corredores aleatoriamente olhando para as fotografias nos murais, nos recortes de revista que falavam sobre os pacientes importantes e desimportantes que haviam sido “salvos” naquele centro de ajuda, como ainda eu não tinha visto a não ser por aquelas séries americanas que passavam na televisão antes da Rede Globo começar a fazer minisséries tão boas como as produzidas nos Estados Unidos.
Sentado, calado e olhando para o teto; foi assim que estava ele, Antônio de Macedo e Maria, pelo menos foi o que a enfermeira me disse quando a indaguei sobre aquele sujeito que me fez dar tantas gargalhadas que quase não consegui escrever este capítulo só por lembrar aquela cena de alguns muitos anos atrás.
Disse olá e me apresentei da forma mais simpática possível. – E você, como se chama? – perguntei com toda delicadeza e respeito, pois não sabia como iria reagir aquele sujeito meio... pensativo, talvez. Porém ele nada me respondeu, apenas me olhou, não nos olhos, e pôs-se a voltar a admirar o teto, que era tão comum como o teto da sua casa, a não ser que você more numa casa sem forro, num palacete ou debaixo duma ponte de concreto, com todo respeito.
– Hei, senhor! – chamei pela segunda vez, desta cutucando-o no ombro. Ele, além de não responder, não me olhou, nem se moveu como no primeiro contato.
– Amigo, vamos conversar! O gato comeu sua língua? Vamos cara... vamos bater um papo, eu lhe pago um cafezinho... – ele nem deu atenção.
Percebi que poderia estar falando com uma pessoa simplesmente grossa, que não gostasse mesmo de conversar. Aquele cara poderia estar me esnobando, logo eu que fui tão amistoso, que já tinha feito amigos em todo o andar e metade do andar de cima ser ignorado por alguém que nem olhar nos meus olhos olhava...   
 – Vamos comer a lâmpada? – perguntei tentando descontrair, deixá-lo mais a vontade.
– O quê? – ele perguntou com os olhos arregalados, olhos de quem está sendo perseguido por policiais militares armados e despreparados.
– Vamos, me ajude a puxar este banco... Nós vamos comer esta lâmpada e vai ser agora­ – me levantava como se realmente quisesse a lâmpada.
 Eu já tinha percebido que ele era um doido e quis me divertir. Mas ele se agarrou ao banco e disse:
 – Não! Não! Não!... Não quero comer a lâmpada! Ela deve ter gosto de cebola. Não me dê por favor, por favor, por favor, por favor, por favor...
Nessa hora o doido começou a chorar enquanto eu já ficava sem ar de tanto rir. Os outros pacientes, entre eles deveria estar o segurança da rodoviária, caíram na gargalhada assim como eu. Aquela imagem era mesmo engraçada. Um doido, que deveria ter uns setenta anos, chorando como um bebê chamando a mãe para que ela não o deixasse comer aquela lâmpada, que ora devia ter gosto de cebola, ora devia ter gosto de vaga-lume, causando-o, assim, azia, que ele chamava de vulcãozinho no bucho.
Eu tinha que ter pedido uma cópia da fita à segurança do hospital, só para ver o povo todo caindo no chão, inclusive alguns enfermeiros, quando ouviam: – ­“Eu não quero ter um vulcãozinho no bucho, mãe! Eu não quero...” – e mais – “isso deve ter gosto de cebola crua, e eu não como cebola crua, porque cebola crua é ruim, é por isso que eu não como cebola crua, se eu achasse bom cebola crua eu comia cebola crua, mas como eu não gosto de cebola crua, eu não como cebola crua, porque cebola crua é ruim...” – O pobre dizia e chorava, aos soluços, ao mesmo tempo. Mas aí chegou uma psicóloga metida a dona da verdade, e do doido, acabando com a brincadeira.
Daí em diante, eu não precisava sair à procura de gente para conversar, as pessoas é quem me puxavam assunto partindo, é claro, da história da lâmpada com o doido Antônio de Macedo e Maria.
  

Trecho de Após o sono de dez anos
romance - Rodrigo Slama 

domingo, 30 de outubro de 2011

Chapeuzinho Vermelho e sua curiosidade sobre os lobos



– Vá na casa da sua avó, sua preguiçosa, e leve a cesta básica do mês – disse a mãe da Chapeuzinho Vermelho, uma menina de dezesseis anos que desde pequena usava um modelo original de chapéu cobiçado secretamente por todas as meninas da região.
– Não tô a fim, mãe! Todo mês eu levo essa cesta, por que você mesma não leva? Eu estou assistindo a nova temporada de Glee e não estou nem aí pra vovó...
Você sabe que aquela velha não fala comigo desde que seu pai morreu naquele acidente de carro.
O acidente tinha sido há cinco anos e meio, desde então, a mãe de Chapeuzinho tinha que ajudar a sua ex-sogra porque ela ameaçava pô-la na justiça e retirar a horta que ela cultivava, idealizada pelo pai da Chapéu. Até hoje, as causas do acidente não foram completamente esclarecidas, mas sabe-se que o pai dirigia, e perdeu o controle. O problema é que ele era conhecido pela sua extrema atenção, não desfocava de nada por nada. Algo fez com que ele perdesse os sentidos. O estranho é que ele estava com o sexo rígido quando encontrado, uma leve mancha de batom em sua cueca e um sorriso de felicidade que espantou a todos. No carro, só estavam o pai e a mãe de Chapeuzinho Vermelho.
Tá bom eu vou, falou a Chapéu, mas vou querer que aumente minha mesada daqui pra frente... todo mês é isso...
Menina, não reclame! Já não basta o colégio caro que te pago, a internet, a conta do celular e todo prejuízo que você me dá...
Tá bom, mas não enche o saco disse a menina, saindo com a cesta e deixando a mãe falando sozinha... Quando estava atravessando a rua, escutou o grito de sua mãe, que dizia a mesma coisa todo mês a mais de cinco anos:
Não vá pelo Bosque... tem muito lobo por lá e pode querer comer você.
Lobo era como as pessoas da região chamavam os rapazes que se aproveitavam de moças ingênuas.
Chapeuzinho Vermelho, que há muito não respeitava sua mãe – movida por uma índole rebelde da qual não sabia a origem –, foi, obviamente, pelo Bosque, o caminho mais curto, pois queria voltar logo para casa e continuar assistindo o seriado que parecia amar mais que sua própria segurança.
O Bosque é um lugar sombrio, um extenso corredor que ligava um lado da pequena cidade a outro, no entanto, a maior parte de sua extensão fica entre prédios antigos, alguns abandonados ou habitado por sem-tetos ou sabe-se lá Deus pelo quê. É conhecido pela quantidade de vagabundos e prostitutas que abriga. É quase que inteiramente calmo, mas não custa redobrar ou triplicar a atenção ao passar por lá, lembrando que só se dever fazer isso em caso de extrema necessidade.
Há muito, a Chapéu queria passar pelo Bosque e ver quem eram os tais lobos que todo mundo falava. – Será que são bonitões como o Cory Monteith? – se perguntava. Ela não sabia e nem tinha coragem para descobrir, mas naquele dia era unir o útil ao agradável... ela queria voltar logo para casa e queria saber quem eram os lobões...
No caminho, um pouco amedrontada, claro, ela cruzou pelo primeiro lobo, mas ele estava vendendo drogas para uma menina magra que só e nem deu atenção a ela. E, conforme foi caminhando em sua longa caminhada, ela cruzou com um lobo lindo, era exótico, tinha os cabelos grandes, a barba por fazer, um olhar tão negro quanto os seus sentimentos pela professora de física, ela olhou para as mãos dele – tinha fetiche com mãos – e se admirou com o tamanho: – Deve ser lutador de boxe – pensou.
O lobo logo flertou com a menina que recusou qualquer contato maior que o visual já existente, e pediu para seguir seu caminho em paz. O rapaz, que já ouvira boatos sobre a linda menina que visitava sua avó mensalmente, se apressou e foi para a casa da velha, tentar esperá-la lá, de preferência na cama. E assim o fez.
Chapeuzinho mal falava com sua avó, e assim que chegou na casa, que, em todo dia 05 de cada mês já ficava aberta, ela foi procurar saber se a velha estava viva.
– Vó! Cadê você? Sou eu...
Sem obter resposta ela pensou: – Ou a velha está dormindo ou morreu de vez. E foi até o quarto para saber como a velha estava. Ela estava dormindo, coberta dos pés à cabeça pelo edredom.
– Nossa, ela parece maior quando deitada – pensou em voz ligeiramente alta.
– Vó, vó, sou eu, Chapeuzinho, a senhora está dormindo?
Com a voz rouca a avó respondeu: – Não, minha netinha, estava esperando por você.
– Netinha? O que deu na senhora? E o que é isso grande aí no meio do edredom?
De súbito, o lobo tirou o edredom e disse: – É o meu pau, e é pra te comer...
Sem reação, sentindo uma mistura de excitação e medo, a Chapeuzinho não correu. Ficou ali parada esperando a ação do lobo, que a tornaria uma mulher.
Durante alguns longos minutos que formaram poucas horas, os dois se divertiram. Na hora de ir embora, a Chapéu perguntou ao novo amigo: – O que você fez com minha avó?
– Eu a comi antes de você chegar, de tão feliz, ela me emprestou a casa e foi fazer uma visita ao lenhador, o porteiro de um dos prédios da rua que faz uns bicos de michê para as madames da região. Acho que queria continuar a brincadeira.
Eles trocaram telefone e ficaram de se encontrar mais vezes. Daquele dia em diante, a Chapeuzinho Vermelho não reclamava mais quando mandada levar a cesta para sua avó. Elas até tinham um assunto em comum agora.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Um domingo diferente


Era manhã, já tarde. Acordava cedo todos os dias, mas naquele domingo precisava descansar. Danem-se os filhos, dane-se a esposa. A única coisa que precisava era de umas horas a mais de sono. De sonhos. Sonhos que demoram a chegar e acabavam logo, como o salário que não queria conhecer o fim do mês, como os momentos de felicidade com a mulher amada, que, por sinal, já fazia tempo que não via.
            Ah, aquela manhã tarde de domingo. Não sabia o que era o aconchego da cama há muito. Mas não tinha mesmo como saber. Acordando quatro e meia e dormindo às duas, quando o ônibus não atrasava mais do que o de costume, não restava mesmo tempo para apreciar as madeiras velhas e mal dispostas que maltratavam as costas de qualquer mortal.
            Mortal. Era mortal, mas esquecia. Acordava rápido e não tomava café. No meio do caminho, na baldeação, comprava um café de cinquenta centavos e um pão do mesmo preço. Se a pressa não fosse tamanha, poderia comprar cinco pães com aquele dinheiro, mas uma extravagância de vez em quando, e, pelo menos de vez em quando era quase todo dia, não fazia mal a ninguém. Era só acordar um pouco mais cedo num domingo ou outro e fazer um bico em algum lugar. Mas não naquele. Dane-se a esposa, danem-se os filhos.
            Era manhã, já tarde. As costas descobriam de onde vinham as dores que sentiam durante todos os dias. À tarde, assistia ao jogo, mas não naquele domingo. 

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Uma breve história de Gabriel, Bolsa Favela


Gabriel saía de casa todos os dias às seis e meia para comprar pão. A mãe trabalhava numa fábrica de calçados da cidade, o pai tinha abandonado a casa e a irmã mais velha só chegava depois das oito da manhã em casa, era camareira de um motel, ou pelo menos dizia ser.           
          Depois da aula de matemática, tinha aula de artes, sua aula favorita. Era opcional, por isso Michel, que gostava mais de futebol do que qualquer manifestação artística, não estaria lá para importuná-lo, chamá-lo de Bolsa Favela, já que era bolsista em um tradicional colégio particular, e o único negro da turma.
           Todos os professores gostavam do Gabriel, exceto a professora de geografia, que tinha feito especialização no Canadá e trabalha há dezessete anos da escola, seis a menos que o professor de matemática, Liovério, que já deveria ter se aposentado, mas tomava muitos remédios e, financeiramente, valia mais a pena passar dois expedientes de sua vida de idoso, mas não caduco, na sala de aula do Nossa Senhora de Fátima, do que vegetar com um salário miserável.
            De repente, ao sair da padaria que ia todos os dias, mesmo nos domingos, Gabriel sentiu uma dor, uma dor como nunca sentiu na vida, a última dor de sua vida. Um tiro. Na cabeça. Um tiro. Ele estava correndo, correndo por medo da chuva que se aproximava. Gabriel estava colocando o pão por baixo da camisa, e foi confundido com um bandido. Dor. Muita dor. O sangue escorria na calçada. Um telefonema. No orelhão da rua, uma ligação avisa a mãe de Gabriel sobre o tiro. Um tiro. A dor. A última dor. O desespero. A tristeza. Policiais alegaram legítima defesa. Um tiro. Os policiais foram absolvidos. Calado. Gabriel foi calado. Os pães ficaram lavados em sangue. Um tiro. A dor. A última dor.
         A escola que deu a bolsa de estudos cedeu a capela e pagou o caixão. Gabriel foi enterrado na comunidade onde morava. Deixou uma mãe triste, uma irmã quase indiferente, uma professora arrependida e um Michel feliz.

domingo, 14 de novembro de 2010

A INVASÃO – parte 1

– Você viu aquilo? – perguntou Pablo a Danilo que, perplexo, não conseguiu responder.
– Hei, cara, vamos... corra!!!
Danilo estava em estado de choque. Nunca vira uma nave daquele tamanho. Na verdade, nunca vira uma nave espacial, muito menos um alienígena.
A tevê noticiava a visita de extraterrestres... A força aérea brasileira toda em peso se posicionava estrategicamente em todas as direções possíveis. Outros países estavam também sendo invadidos, mas até aquele momento nenhum sinal de violência ou ataque era percebido pelas autoridades e pelos irmãos Pablo e Danilo, este com dez anos e aquele com treze.

“Autoridades mundiais firmaram acordo de não atacar até que sejamos atacados. É a primeira vez que a humanidade resolve não combater o desconhecido. Mas será que isso é uma visão pacifista ou medo de represálias... Isso é o que vamos ver após o intervalo, em trinta segundos” – disse Willian Waack, repetindo a notícia que os brasileiros, ou pelo menos a grande maioria, vinha acompanhando pela Globo.
Danilo permanecia atônito... A mãe rezava ajoelhada defronte a uma santa que estava em frente a uma vela acesa. O pai pregava as portas e as janelas, e dizia a todo o momento que estava arrependido de não ter colocado laje na casa ainda. Pablo também estava com medo, todos estavam com medo, mas, estranhamente, sentia que tinha que auxiliar o irmão, que há alguns bastantes minutos deu sinal de que logo iria sair do estado de choque.
Todos aqueles desenhos, filmes, e tudo o que tinha assistido sobre ETs não fazia mais sentido, é como se nunca os homens tivessem podido prever o que estava acontecendo. Já se passaram três dias desde o primeiro contato visual, mas ninguém tinha sido abduzido, ninguém havia morrido pelas mãos – se é que têm mãos, pensava – dos visitantes mais que inesperados. A agonia e a incerteza eram sentimentos presentes em todos, todos os nativos do mundo, mas, até agora, não havia motivo para pânico, e pânico é pouca coisa mais forte que o medo.
A televisão não dava nada de novo, e a mesma imagem era mostrada em todos os canais, sob pequena variação de ponto de vista, ângulo da câmera, qualidade... A Record mostrava uma grande nave sobre o Rio Tietê, ao passo que a Globo mostrava um objeto parado acima do Cristo Redentor como principal foco, o que não os impedia de mostrar algumas outras naves sobre o Brasil e sobre o mundo, que começava a cogitar outras formas de fazer contato... e essas outras formas envolviam armas nucleares.
“É impressionante o tamanho... Especialistas afirmam que os alienígenas podem destruir toda a humanidade e o planeta Terra em menos de dez segundos. O mundo se une na tentativa de não ser destruído por estes invasores...” – Willian Bonner, com muito menos olheiras que seu xará, no JN.
– Maria, você está há mais de três dias ajoelhada rezando... você precisa cuidar dos seus filhos... pare de clamar por ajuda do gesso e olhe as crianças enquanto eu vou, novamente, atrás de comida e água – Juvenal, pai de Pablo e Danilo, falou. O governo tinha proibido de qualquer comércio importante fechar, tais como mercados, farmácias, além de hospitais, unidades de assistencialismos, etc. mas quem respeita o governo nessas horas? Ou qualquer delas?
– Posso ir com você, pai? – perguntou Danilo. – Tenho medo de ficar sozinho.
– Mas sua mãe está em casa... e o Pablo vai cuidar de você.
Contudo, a esta altura, o próprio Pablo, tão forte, que gostava de fazer o irmão aprender o quanto era superior, precisava de ajuda. Um pai, nessas situações, não iria negar companhia aos seus filhos, mas não podia levá-los para a guerra de comida que acontecida lá fora, e nem deixar Maria sozinha na presença de seus santos.
Sem saber o que fazer, Juvenal decidiu tentar convencer sua mulher mais uma vez, em vão. E, na esperança de o tempo passar, decidiu se voltar à tevê mais uma vez... bem na hora em que era anunciado, em um canal ainda não citado, que os invasores tinham feito contato com o presidente da Organização das Nações Unidas, como se o pobre Ban tivesse o mesmo poder que Obama.
Rodrigo Slama (invasão - Cristo)

sábado, 9 de outubro de 2010

A Tartaruga e o Pinto





         As pessoas me perguntam por que não gosto de bichos de estimação. Eu nunca disse que não gostava de bicho, apenas não criava por ter sofrido bastante com os animaizinhos que eu tinha quando criança.
            Minha primeira experiência foi com um pintinho... como eu gostava daquele pintinho, criava como se fosse um cão – talvez o comesse quando virasse um galo, mas até então era o meu melhor amigo. Certo dia, minha mãe entrava em casa com sacolas na mão... doida para guardar logo as compras e acender seu cigarro. Avexada e bruta como sempre, ela pisou no meu pintinho.
            Aquele cena é uma das mais tristes que me lembro... toda tripa da pobre avezinha saiu de seu corpo pelo cu. Não pensei duas vezes... peguei uma caixinha de sapatos e levei meu amigo para uma benzedeira, tia Aladir. Insisti para que ela o rezasse, quem sabe assim ele ficaria bom já que não estava morto, podíamos vê-lo respirando, com muita dificuldade, por sinal, mas respirando. 
            – Tia Aladir, a senhora pode rezar o meu pintinho? Ele tá quase morrendo...
            – Mas, Maurinho, você sabe que só rezo pessoas... posso tentar... se bem que acho que não vai resolver...
            – Mas tenta, tia, tenta, por favor! – pedi olhando como quem olha a mãe do fundo de um poço com os braços estendidos, lágrimas correndo, e esperando por socorro imediato.
            É claro que titia não conseguiu curar meu pintinho, mas espero que ele tenha morrido sem muita dor depois da reza.
                                                   
         Depois do pintinho, eu tive um jabuti, mas naquele tempo chamava de tartaruga. Já ganhei a tartaruga grandinha e tal... Também não tinha nome... ora, se já era uma tartaruga para que inventar outro nome?... Chamava o jabuti de tartaruga mesmo. E detalhe: achava que era uma tartaruga... fêmea.
        – Pronto, Maurinho – disse minha mãe. Agora se eu pisar nesse seu novo bicho eu não vou matar – e me estendeu a tartaruga. – E vê se para de chorar também.
           – Viva! – gritava de emoção.
          Eu brincava sempre com a tartaruga, corria do colégio para poder lhe dar alface outras comidas de tartaruga. Gostava de colocá-la de cabeça para baixo e ver se ela conseguia se virar... mas ela nunca conseguia sozinha. Mesmo quando eu a deixei a noite inteira assim, ela não se virou.
            Nunca tive um bicho tão forte como aquela tartaruga. Botava brinquedinho em suas costas e ela carregava sem problema... e se minha mãe ou qualquer outra pessoa pisassem na bichinha ela não morreria como o pintinho.
            Mas – o tal mas da história – certo dia uns amigos do meu pai tinham vindo beber com ele em casa... beberam até altas horas. Meu pai e os outros bebedores não limparam o quintal depois da noitada, deixando todas as garrafas espalhadas por lá.  Ao acordar cedo – pois era domingo, e sábado e domingo eu sempre acordava muito cedo, ao contrário dos outros dias –, eu logo corri para brincar com a tartaruga...
            Dei um grito estridente e minha mãe, meu pai e meu irmão acordaram imediatamente. Minha tartaruga estava toda ensanguentada e com indícios de morte....
            Acontece é que aquela tartaruga era macho, e resolveu acasalar com uma das garrafas de cerveja do chão. Devido à pressão ou outro fator, a garrafa estourou e cortou fora o pênis da minha tartaruga. Ela morreu devido à perda do sangue... Eu não a levei para a tia Aladir, queria mesmo que a tartaruga morresse... Eu não gostaria de viver sem meu pênis, a tartaruga devia pensar o mesmo. 

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Glaydson, O Vampiro Natalense, ataca novamente

A noite estava sombria. Nada se ouvia além da chuva que batia no telhado e corria pela calha inundando o chão de concreto. Mesmo assim ela não se movia, mal podia, mas não se movia. Suas pernas estavam livres, mas cansadas de tanto se debater... seu sorriso estava encoberto por um pano imundo que servia como mordaça... seus braços... seus braços estavam amarrados com arame farpado que incrustava em sua pele banhada em sangue, lavada em sangue.
         Ele não se movia também. Estava sedento, mas gostava de ver as presas sofrendo. Não entendia o porquê, não precisava... mas o sangue, o precioso líquido que o mantinha semi-vivo, ainda preso ao mundo dos homens, era desperdiçado. Tudo bem... valia a pena ver o sofrimento nos olhos dela, olhos que agora já iam se entregando à morte.
            Agora era hora. Se ela morresse, o sangue estragaria. Glaydson a pegou e mordeu seu pescoço consumindo todo escarlate líquido da moça. O sangue, entrando em seu corpo, o fazia lembrar dos tempos que era vivo, talvez porque estivesse, quando saciado – mesmo com a mulher com uma falta de cerca de um livro de sangue –, mais perto de estar vivo que poderia estar em qualquer outra ocasião... Na manhã seguinte, iria ter mais uma tiragem extraordinária da Tribuna do Norte comentando sobre mais uma morte misteriosa em Natal, mas desta vez iriam encontrar um corpo decapitado, Glaydson não cometeria o erro de deixar as marcas dos seus dentes à mostra novamente.

            Alguém não estava gostando nada nada de um jovem vampiro atrapalhando as coisas na capital do Rio Grande do Norte. A situação sempre foi controlada no estado, pois os poucos vampiros que existiam ali eram unidos e tinham um código a respeitar, que, sobretudo, prezava a descrição, e, para não levantar muito alarde, os bebedores de sangue procuravam sempre pessoas desimportantes, muitas vezes juradas de morte ou presidiários... enfim, gente que serviria melhor morta do que presa para a sociedade. E quando alguém quebrava essa regra dava aos outros o direito de caçá-lo, sem piedade ou dó.
            – Hei, você aí.
            Pela primeira vez em três dias Glaydson se assustava.
            – Hei. Há dias estou atrás de você, sem vergonha. O que acha que está fazendo?
            – Q-quem é v-você?
            – Sou Lord Sevlá, o senhor dos vampiros do Rio Grande do Norte. Dono de almas e terras que sua visão não pode mensurar.
            – O senhor dos vampiros? Então... eu não sou o único?!
            – Claro que não, imbecil! Você é o mais jovem, e o mais morto daqui a pouco.
            E ao falar isso, Lord Sevlá avançou na direção de Glaydoson e, no instante em que iria desferir o golpe fatal, foi surpreendido por um grito apavorado de um dos seguranças noturnos da Guararapes, lugar para onde foi Glaydson após matar dois funcionários do Macro.
            – Vamos, animal. Siga-me.
            Tremendo mais do que um senhor com mal de parkinson sentindo frio, Glaydson seguiu Lord Sevlá. Em pouco mais de duas horas e meia de corrida, eles pararam em algum lugar próximo a Caicó. Ali ninguém os encontraria.
            Ao chegar num castelo bem escondido, mesmo para os olhos vampiros de Glaydson, próprios para enxergar no escuro, o vampiro natalense foi recebido por sete vampiros, quatro homens e três mulheres, com Lord Sevlá eram quatro casais. Assim que o Lord chegou, todos fizeram uma mesura e se dirigiram para o salão do trono. No salão, havia nove tronos dispostos num U invertido. O Lord se posicionou no trono central. Após ele, todos os outros se sentaram, mas Glaydson ficou no centro em pé. Ele não sabia, mas o seu destino iria ser selado ali. O bom da história era que ele tinha ganhado mais uma chance... ira ser morto em Natal. Agora, só um milagre o salvaria, e em milagre ele não acreditava nem quando era um ser humano.

Primeira parte aqui
Próxima parte aqui

domingo, 19 de setembro de 2010

Pedro e a poça d'água

Estava cansado e com sono, caminhando numa rua deserta, quando, de repente, um carro passou numa poça e jorrou água suja em Pedro, que despertou definitivamente. Ele geralmente não prestava muita atenção em coisas como uma poça no chão, afinal, a rua era deserta e nunca passava carro lá. Assim que deu conta de que todo o uniforme estava molhado, Pedro resolveu voltar para casa e mudar de roupa para não ir todo imundo para a escola. Por sorte, ele estava ainda acerca de um quarteirão de casa.
O garoto molhado estava decidido a tomar banho, mas estava muito frio para isso, então ele resolveu apenas trocar de roupa... Então secou o rosto e os baços, trocou de camisa e seguiu para a escola, já que estava indo mal em matemática, disciplina do primeiro tempo, e não podia perder uma aula a mais... sua mãe o mataria se ficasse em recuperação de novo.
Três dias depois, assim que saiu do banho matinal antes da escola, Pedro olhou no espelho e percebeu que estava com manchas vermelhas nos braços e no rosto, justamente onde a água jogada pelo carro tinha batido. Ele mostrou à sua mãe e lhe contou toda a história. Foi ao médico imediatamente. Ana, mãe de Pedro, parecia levemente feliz com aquilo, pois havia acabado de fazer um plano de saúde para a família e estava doida para estrear os serviços caríssimos que vinha pagando.
Após a consulta, o médico disse que não tinha sido nada grave, apenas uma micose... Pedro só precisaria usar uma pomada e não coçar, principalmente não coçar. E era justamente o que Pedro vinha fazendo no caminho de casa até o consultório do dermatologista... Na verdade, desde a noite, anterior ele vinha coçando o corpo, principalmente os braços e o rosto.
De lá, eles seguiram imediatamente à farmácia de manipulação para encomendar a pomada – como Ana não tinha entendido a letra do médico, só fez entregar a receita ao farmacêutico. Mesmo doente, Pedro ficou feliz, pois não precisaria ir à aula naquela quinta-feira, mas seu corpo não parava de coçar e coçar... A pomada incomodava, ardia... E a vontade de coçar só fazia aumentar. Aquela pomada deveria aliviar a irritação, mas não estava adiantando de nada, muito pelo contrário. Pedro já estava ficando com raiva daquele incomodo todo.
A irritação era tão grande que ele acabou tirando a pomada, e continuou a coçar. Ele passou gelo, o que não adiantou; fez umas receitas caseiras que pegou na Internet, mas nada resolvia, absolutamente nada. E um dia depois de ter ido ao dermatologista, Pedro voltava ao consultório com a mãe. Agora, até mesmo os seus olhos estavam vermelhos: não tinha pregado os olhos durante a noite.
Ao ver o estado do rosto e dos braços do rapaz, o dermatologista ficou assombrado, perguntou o que mãe e filho fizeram de errado, afinal, passar pomada e ficar sem coçar não é uma coisa muito complicada para uma mãe e um menino de treze anos fazerem. Mas era o que parecia.
O médico conferiu a pomada que havia prescrito, mas a receita estava correta. Então ele pediu para conferir a pomada comprada, e para sua surpresa era a pomada errada. Pedro vinha usando uma pomada para outra enfermidade que, ao entrar em contato com a micose, causou esse efeito colateral.
– Eu falei pra você conferir o nome do remédio, menino...
– Mãe, o cara da farmácia me deu esse e mandou conferir com a cópia da receita, pois a que a gente deixou lá tava no arquivo ou foi pro Ministério da Saúde, sei lá...
– E você não conferiu por quê?
– Porque esqueci a receita...
– Bem feito... isso é pra você aprender a lembrar das coisas.

Para a sorte do garoto, o médico dermatologista deu um jeito. Ele mesmo aplicou uma pomada que imediatamente aliviou a irritação e a coceira. Com três dias, Pedro já havia notado a diferença e não passara a noite querendo arrancar a pele do braço e do rosto. Quem não gostou nada da história foi a irmão de Pedro, Cíntia, que estava escrevendo um conto sobre mutação... era a história de um menino que se expôs a determinado produto e ganhou o poder de camaleão... mas não era um herói esse protagonista, era o vilão da destruição da paz do mundo.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Glaydson, O Vampiro Natalense

Gêneses

      Era sábado, três da manhã. Glaydson saía da boate com seus amigos, mas estava tão bêbado que, como todo bêbado, não raciocinava bem e não tinha noção da realidade e das convenções do mundo... Foi atraído por um grupo de rapazes e moças que tinha saído mais ou menos no mesmo tempo que seu grupinho. Despediu-se de qualquer jeito dos amigos e foi tentar a sorte. Daí não se lembrava de mais nada. Acordou três dias depois, mas não estava mais vivo, muito menos morto. Tornara-se um ser sedento por sangue e diversão, mas ele ainda não sabia desse fato.
      Por sorte, era noite quando ele despertou. Estava numa casa velha de um sítio próximo à BR-101. Ao que tudo indicava, o local era desabitado há muitos e muitos anos... não só a casa, mas toda a propriedade. No instante em que abriu os olhos, percebeu que não se lembrava de nada, nem do seu nome, nem o que fazia ali, mas saiu... saiu sem rumo ou destino esperando resolver ou sanar seu problema interior – não se engane, leitor, não é uma metáfora... seu corpo pedia e se contorcia por algo que até então Glaydson não sabia o que era –. Talvez por isso ele tenha corrido, corrido tanto que nem conseguia ver o caminho por onde ia passando, só queria saber de correr e correr. Não se preocupava com nomes, números, endereços... queria apenas matar a sede. Mas sede de quê?
      Sangue. De algum lugar desconhecido emanava o aroma que fazia todo o seu corpo entrar em um grande espasmo. Sem mesmo pensar no que estava fazendo, Glaydson correu na direção contrária ao vento que trazia o cheiro mais gostoso que ele se lembrava até então. Engraçado... Ele há pouco tempo não saberia reconhecer o cheiro de sangue, mas aquele aroma... aquela doce fragrância lhe fazia lembrar das vezes em que tinha se machucado ou ido fazer exames sanguíneos.
      O sangue era de um mendigo que tinha se cortado fazendo a barba – péssima hora para fazer a barba, não concordam? Glaydson estava em algum lugar imundo do Satélite, onde fez sua primeira vítima... mas não! O mendigo não se tornaria um vampiro, Glaydson nem sabia como fazer uma presa virar um semi-morto... ele sugara todo o seu sangue não deixando nem uma gota... não transferiu para ele nem uma gota do seu sangue contaminado com um vírus que supera qualquer Aids, um vírus capaz de aprisionar a alma de qualquer infeliz.
      Ainda sedento, mas se sentindo bem mais vivo e lúcido – isso inclui lembrar de quando era vivo, o nome e algumas poucas outras coisas – devido aos quatro litros e meio de sangue que tinha tomado, perambulou mais um pouco durante aquela noite. Caminhava normalmente, na velocidade de um ser humano – o que já não era – e pensava e refletia sobre sua condição. – É claro! Sou um vampiro... Agora me lembro! Estava bêbado, mas me lembro... participava de uma orgia com os turistas – lembrou-se da dor de ter o pescoço mordido... ainda estava ferido. Percebeu que logo deveria encontrar um lugar para passar o dia, já que, certamente, pensava, não brilharia ao sol... e se brilhasse não era tentando que queria descobrir. – É melhor evitar entrar em combustão instantaneamente!
      Decidiu invadir o Macro e procurar uma caixa, um depósito, um porão onde pudesse se esconder do sol. Não estava cansado, mas sabia que precisava dormir. Entrou num almoxarifado com aspecto de não utilizado durante meses. Sentia, por incrível que pareça, que o sol estava despontando do oceano para dar vida e luz aos seres humanos, antes seus irmão, hoje suas presas. Enquanto o sono não batia, olhava em seu celular quase descarregado notícias, artigos e escritos que falavam sobre vampiro para tentar entender o que havia de fato acontecido consigo. O telefone descarregou por volta das nove dando-lhe mais um motivo para dormir, além de um leve sono que dava sinais de presença. A noite seria um novo dia para o Glaydson, O Vampiro Natalense.

Continua aqui

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Palavrão e Boca Suja

            Eles nasceram em Goiânia, como toda dupla sertaneja tem que nascer, mas ao contrário das demais, eles não plantavam tomate, nem tinham que comer ovo cru, muito menos eram filhos de ricos fazendeiros e formados em odontologia ou algo do gênero.
            Mirosrio e Durvalindo eram filhos de Francisca Joana, dona do cabaré mais famoso da grande Goiás, chamado Todarrô Lakiédura. Os dois cresceram em meio às putas, entre os bêbados e os errantes, aprenderam tudo que sabem naquele ambiente. A primeira palavra que Mirosrio aprendeu foi xoxota, ao passo que Durvalindo aprendia que chupeta não era um bico de borracha em formato de mamilo que serve para enganar o bucho do bebê.
            Durvalindo ganhou um violão da mãe ao fazer cinco anos de idade, um dia depois do aniversário de seis anos de Mirosrio, que ganhara uma sanfona velha e desafinada - Francisca Joana aceitou aqueles instrumentos como pagamento atrasado de um ex-cantor da região. Eles passaram o dia inteiro tentando aprender a tocar os tais instrumentos, além de passar o tempo entre um acorde e outro ouvindo as canções sertanejas mais famosas das rádios do centro-oeste.
            O tempo se passou, os meninos aprenderam a cantar e a tocar. Eles ficaram tão bons, lá pelos seus quinze e dezesseis anos, que resolveram compor as próprias canções, e como não tinham um grande conhecimento de mundo e rico vocabulário, compunham canções baseadas em acontecimentos do puteiro da mãe e com o palavreado apropriado.

Rapariga quero comer teu cu,
Mas não quero pagar mais por isso,
Pega logo o sabonete,
Pra amaciar a entrada do Roliço.

Meu pau ta doido pra te comer,
Garçom: chega de trazer cerveja,
Essa quenga já bebeu vinte e um,
E mesmo melada não quer me dar o cu.

Ô rapariga, ta de putaria?
Te dou mais dez se você chupar,
Boca macia sem dentes pra machucar,
Mas no seu cu que quero ir gozar.

Meu pau ta doido pra comer você,
“Vamo” subir que quero ir foder,
Comer seu cu é meu desejo agora...
Me chupa logo ou meu pau “istora”.

            A primeira vez que os meninos cantaram essa música, a primeira que eles fizeram, Desejo de cu, foram mais que aplaudidos no cabaré. Os frequentadores do estabelecimento gostaram tanto que os rapazes tiveram que tocar a mesma música a noite inteira... apenas as putas não gostaram, pois isso aguçou a criatividade dos fregueses...
            E foi assim que surgiu a primeira canção do Palavrão e Boca Suja, a dupla sertaneja mais odiada e amada de toda história da música regional de Goiás.

terça-feira, 23 de março de 2010

O Show

            Meus olhos quase se perderam na multidão. Era gente pra todo lado, quase fico atordoado com tamanha movimentação. Segurei a mão da última pessoa do trenzinho que furava, não sei como, o mar de gente feito uma flecha, ou um tiro de fuzil. Eu achava que chegaria à saída, mas ao contrário do que eu queria, fui levado a cada passo pra mais longe do meu esperado destino.
            Fui enganado pelos meus amigos. Eles disseram que era um show do Nando Reis. Eu sou fã do Nando desde a época dos Titãs, banda que perdeu um pouco do meu carinho depois da saída do meu ídolo maior, mas até que Paulo Miklos segurou as pontas, pois não gosto – nada contra – da voz dos outros vocalistas.
O show em que eu estava, que por sinal tinha pago quinze reais pra entrar valendo-me do meu direito de estudante, é claro, era do... ou será da? Enfim... era da banda... Calypso (procurei no Google o modo certo de escrever este nome (im)próprio para não me passar por ignorante).
            Os abestalhados dos meus amigos me vendaram, disseram que iriam fazer uma surpresa pela proximidade do meu aniversário... me levariam no camarim do Nando Reis. O pior é que eu estava tão concentrado nos estudos pro ENEM que nem me liguei que o show do Nando iria acontecer mais na frente. Engraçado... quando a gente se concentra muito em alguma coisa acaba ficando meio por fora da vida que acontece aos nossos pés.
            Estava, deduzia, há mais de duas horas vendado, nem tinha noção de quanto tempo havia se passado. A euforia que eu sentia mal me fazia lembrar o ENEM iminente ou mesmo o horário que se passava diante de mim. Me abandonaram, literalmente falando, no meio daquele mar de gente avesso a Avon, Axe ou Rexona. Quero deixar posto aqui que nunca tinha sentido o cheiro de tantos sovacos diferentes, logo eu, que fui todo contente, de preto, com uma camisa do Acústico dos Titãs, crente que iria conhecer Nando Reis. Mal sabia eu que iria conhecer uma colônia do inferno.
            Cansei de procurar pela galera... mas me desesperei. Estava inconformado e perdido, apavorado e chateado, e muitos outros -ados que existem. A mão que peguei, a última do trenzinho, era de uma menina pelo menos isso!  e estava muito suada. Tive que largá-la logo e segurar o pulso. Eu não via seu rosto, apenas uma fita na cabeça que dizia “inha (o nó) Joe”, depois me contaram que era o nome da vendedora de tapioca, que insiste em ser cantora, e do marido dela, um dos músicos da banda, de péssimo gosto, por sinal.
            Como eu já disse, eu estava crente que o trenzinho estava saindo... sei lá, eu fui largado no meio da multidão, não sabia onde era a entrada ou a saída, estava sem minhas noções geográficas. Os integrantes do trem não buscavam a saída, mas queriam chegar mais perto do palco, e eu, infelizmente, percebi isso tarde demais. Quando dei por mim estava há um palmo da cerca de ferro que separa o palco do povão.           
            O som dos gritos, tanto da taquara-rachada que cantava no palco, como das fanáticas enlouquecidas que me cercavam de todos os lados, quase me deixou surdo pena que não deixou! Num vacilo de alguns seguranças, consegui subir na cerca e tentar ficar uns centímetros mais altos pra procurar meus amigos, mas naquele mundo de gente, sem noção de música, diga-se de passagem, não se via ninguém, daí eu pensei que se eles queriam me pregar uma peça, deveriam estar em algum lugar ali rindo da minha cara.
            Deixando de lado o meu orgulho, comecei a pedir ajuda, gritava com os braços erguidos, olhava esperançoso em todas as direções. Quanto mais a histérica “cantava”, mais eu agitava os braços, clamando por socorro. Foi nesse curto espaço de tempo que senti alguém me agarrando com uma bruta força que me tirou da cerca, vi que era um segurança uns dois metros de altura por um de largura imaginei que seria expulso do show, mas, para aumento da minha tristeza, não foi isso que aconteceu. Parece que a galega gritante escolhera um fã para cantar uma música consigo, adivinha quem ela escolheu no meio da multidão, adivinha!
            Me empurraram com muita força no palco de onde eu via uma multidão histérica gritando algo ininteligível aos meus ouvidos acostumados apenas com a língua portuguesa e um pouco de inglês. A louca desafinante cantava uma música, que pelo que entendi, contava a história de uma cavalo manco, talvez inspirado em alguma montaria de um ex-freguês. Sem eu menos esperar, o microfone estava seguindo em direção à minha boca. Foi mais ou menos nesse momento que avistei meus “queridos” amigos rindo às gargalhadas trepados numa torre de som. Filhos da puta!, pensava em voz alta, quando sair daqui vou dar uma surra em cada um deles que eles nunca mais vão esquecer enquanto estiverem vivos e conscientes.  
            Chegou minha vez de cantar. A Xuxa dos anos trinta – nenhuma menção ao glamour dessa época, mas é a década que provavelmente a doida nasceu – me abraçava com aquele corpo suado e fedorento e encostou aquele microfone babado na minha boca. Não tive tempo de pensar no que dizer, olhei pros boys em cima da torre e disse o que pensava e está transcrito no parágrafo acima, mas não custa repetir.  – Vocês tão fudido na minha mão, seus galados, filhos de ra... – não pude terminar a frase. A animadora de multidões me empurrou para o lado e continuou o pedaço da música que eu tinha que cantar enquanto me encarava de canto de olho com o olhar mais feio do que o da mãe que olha para o assassino que seu filho de sete anos e meio de idade.
            Seguranças do palco me tiraram, lógico, à força, chega machucaram minhas costelas, mas até que poderia ser pior no fim das contas. Os fãs dos sem-cultura me vaiavam enquanto isso.  Eu, nessa hora, já tinha esquecido por um instante da raiva que sentia dos meus amigos e da situação e comecei a me preocupar com minha integridade física. Eu poderia ser morto apenas por um murro de um dos quatro seguranças que me cercavam e diziam:
            – Tá tirando onda com nossa cara?
            – Não, senhor! – eu disse tremendo. – Só estou rezando para que não me machuquem muito.
            – E por que faríamos isso? – um deles perguntou com uma cara que julguei sínica.
            – Porque eu acanalhei o show dos seus patrões, e...
            Fui interrompido pelas gargalhadas.
            – A gente não iria te machucar... a gente odeia o Calypso também, a gente nem trabalha pra eles... a gente presta serviço para casa. Como você, a gente curte mais um rock (deve ter deduzido pela camisa, as pulseiras, e os outros mais detalhes característicos dos roqueiros), e estamos ansiosos pra semana que vem que é o show do Nando Reis.
            – Não acredito, é semana que vem? Os filhas-das-putas dos meus amigos me largaram aqui dizendo que era o show dele...
            – Faz o seguinte... me procure semana que vem aqui que eu te boto no camarim do Nando.
            – Não acredito... tá falando sério?
            – Claro, aparece aí.
            E assim o fiz.


            Moral da história: até um show do Calypso pode ser bom quando a gente sabe fazer amizade e vestir a camisa certa.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Churrasco Na Lagoa

Certo dia, no Bosque dos Cajueiros, duas famílias próximas combinaram de fazer um churrasco na Lagoa da Leguminosa Doce. Porém, a Família Buscapé, que não tinha ainda achado petróleo no quintal, disse que não iria, pois não tinha carro, e não ficaria na aba de ninguém, mesmo que num tempo passado a Família Malfoy, a outra desta história, havia largado os filhos na casa dos Buscapé, sem aviso prévio nem hora pra voltar – um problema já que matriarca dos caipiras estava de cama com dengue.
– Não, não tem problema! A gente quer a companhia de vocês... Faz o seguinte, de sete a gente passa com o Doblò na sua cabana pr’agente ir pra Lagoa da Leguminosa Doce... Fiquem tranquilos, a gente já comprou duas picanhas, três peças de alcatra, além de queijo coalho, linguiça e asa frango. Não precisam levar nada, viu? A gente tem dinheiro, a gente é “ricos”, a gente pode comprar o que bem a gente quiser.
Depois que a família Malfoy saiu da casa dos Buscapé, que ficava perto da praia, e, por isso, a deixavam sempre que iram (todo fim de semana) suja de areia e coco de poodle, a mãe Buscapé perguntou ao seu marido:
– O que você acha?
– Acho melhor nós irmos, se não eles nos chamarão de antissociais, eles sempre dizem que nós nos afastamos da família. Iremos, mas vamos levar nosso feijão bem carregado, nossa farofa de bacon e o nosso famoso arroz soltinho, você sabe, querida, como eles são, e churrasco só de carne não é a mesma coisa, não é? É sempre bom um acompanhamento.
Como visto, a família Buscapé concordou em ir, mesmo sabendo que a Família Malfoy não estava interessada na companhia deles. O maior prazer da Família Malfoy era se mostrar como a mais rica do Bosque dos Cajueiros, que tinha carros do ano, os melhores apartamentos da região etc. E o motivo pelo qual tinham raiva da família Buscapé é porque, mesmo sem dinheiro, os filhos dos Buscapé eram mais inteligentes e bonitos... E era principalmente a inteligência que deixava com inveja a Família Malfoy, já que, mesmo tendo os filhos estudando nos melhores colégios, eles sempre ficavam em recuperação, e, ano sim ano não, repetiam o ano letivo, o que os faziam ser os maiores, mas não os mais fortes e temidos da sala, e o fato de ter quatorze anos na sexta série os deixavam estigmatizados, e nenhuma menina queria ficar com eles.

No dia marcado, por volta das dez e meia da manhã, a Família Malfoy chegou, o pai dirigia um Santana e a mãe estava com seu Doblò. Se já não bastasse o atraso, a Família do Mal ainda apressava a Família do Bem, mesmo eles estando, há horas, todos prontos. Antes de entrar no carro, o pai Buscapé lembrou-se de pegar as panelas, o que gerou desdém e gargalhadas na Família Malfoy inteira.
– Eu não falei que não precisava levar nada? O carro ta cheio de carne... Pobre é foda mesmo, num sabe que churrasco é pra comer só carne... Não precisa encher o bucho de feijão, arroz, farofa e molho à campanha, tem carne suficiente pra todo mundo! – disse num tom que sugeria brincadeira, apenas sugeria.
– Não comadre – disse o pai Buscapé na, como sempre, maior humildade – é que eu gosto de comer arroz e feijão mesmo, sabe como é pobre, né? Não se preocupe, nós sabemos que você comprou carne pra todos, estou levando essa comida por questão de gosto. Longe de mim, sugerir que não tem carne.
As famílias seguiram rumo à lagoa. Assim que chegaram, abriram as mesas, armaram as barracas, tiraram do carro a churrasqueira, que era da Família Buscapé, puseram carvão e acenderam, e enquanto as crianças se divertiam na Lagoa da Leguminosa Doce, as famílias se preparavam para preparar a carne
– José, cadê as carnes? – perguntava para o pai Malfoy a esposa.
– Está no porta-malas, não?
– Não, José! Eu só achei o queijo e as salsichas.
Salsichas? Quem leva salsicha para um churrasco?
A Família Malfoy procurou nos dois carros. Abriram o isopor com os refrigerantes, olharam dentro das sacolas, viram perto das salsichas e do pouco queijo coalho outra vez, mas nada.
– A gente esqueceu a carne – disse a mãe Malfoy à Família Buscapé, que não era burra, claro, e já tinha percebido o lance desde a primeira indagação pelo principal ingrediente de qualquer churrasco – mas tem salsicha e queijo coalho! Essas salsichas são Sadia, as melhores que tem, e o queijo custou R$ 27,90 o quilo! – Talvez por isso só tivesse duzentos gramas.
– Não tem problema – disse o pai Buscapé com o sorriso sincero de sempre – no meu feijão tem carne seca, pé de porco, toicinho, linguiça... assim como a farofa – que tinha mais carne que farinha.
Todos comeram do feijão Buscapé, comeram não, se esbaldaram. Sempre que os filhos dos Malfoy viam comida agiam assim, como se comessem pouco em casa, sabe? Essa família tem essa fama mesmo, de ser forrageira, como dizem. E enquanto os filhos Buscapé se divertiam brincando na lagoa, os filhos dos Malfoy se preocupavam em tirar a barriga da miséria, como se não comessem feijão, ou qualquer boa comida, há semanas.
Então, se não fosse o feijão, a farofa, o molho e o arroz dos Buscapé Farofeiros, como a Família Malfoy foi chamando todo o caminha em direção a lagoa, o churrasco de salsicha teria sido pior, bem pior, ou melhor, extremamente pior do que poderia ser. Agora eu pergunto, leitor: será que houve realmente um esquecimento ou uma sacanagem da família Malfoy?

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Suco de Caju

Acontece desde o dia que me perdi na mata da Barreira. Eu estava a procura de caju, pois me bateu uma vontade enorme bem aqui, no órgão dos desejos, de tomar um suco bem gelado. E como painho pegava todos os cajus dos cajueiros do quintal pra vender quase nunca eu tomava meu suco favorito, que ficava ainda melhor quando mainha fazia. Ela peneirava o suco, adoçava na medida certa. E eu, que nunca tive muita paciência, me desesperava pra fazer e beber logo.
Além de recolher os cajus do quintal, meu pai também andava pela mata da Barreira procurando mais frutas para enriquecer a barraca. Ele sabia todas as trilhas, as que eram visitadas por soldados e as que nunca eram lembradas no itinerário dos aviadores. Aprendi com ele a andar por aqueles matos, conhecia todas aquelas trilhas, guardava na memória todas as bifurcações e encruzilhadas, inclusive lembrava ao meu pai do caminho certo quando ele se confundia, por isso não sei como naquele dia eu me perdi.
Provavelmente meu pai e os outros barraqueiros já tinham passado por lá, pois já não havia nenhum cajuzinho. Fiquei encucado, meu pai não tinha me chamado, olha que ele preferia que eu perdesse aula do que deixasse de ajudá-lo a recolher caju, já que nessa época minha mãe tava de resguardo, e os outros meninos eram muito pequenos para começarem a trabalhar. Mesmo percorrendo todos os caminhos que conhecia não encontrava de jeito algum a matéria-prima para o mais delicioso dos líquidos existentes na face da minha memória, o suco de caju.
Andei, andei e andei até me cansar e me perder das trilhas e caminhos conhecidos, logo eu que achava conhecer todo aquele emaranhado de rastros, e o pior é que eu não encontrava nem se quer um caju de fazer remédio. À noite já ia chegando, eu estava tão cansado que resolvi procurar logo uma árvore para dormir. É... é melhor dormir numa árvore! Nunca se sabe o que pode aparecer no meio do mato à noite, uma raposa, um foragido de Alcaçuz... Sei lá! Só sei que naquele momento era melhor dormir numa árvore do que ter que continuar procurando, em vão, o caminho de casa.
Eu me preocupava com mainha, “ela deve estar preocupada comigo”, pensava eu em voz alta. Eu pouco me lixava para o meu pai que só daria pela minha falta no dia seguinte, quando iria me acordar bruscamente para ajudar a recolher caju e outras frutas para vender, e o pior é que eu não podia ficar com três ou quatro cajuzinhos azedos para fazer meu suco. Olha que eu ainda não tinha tomado suco de caju nessa safra.
Meu pai não se importava comigo, nem com minha mãe ou meus irmãos menores, ele gastava todo o dinheiro apurado na venda das frutas com cachaça e rapariga, inclusive ele insistia em me levar consigo para a farra, dizia que eu já era um “homi” e precisava frequentar lugares de tal. A minha mãe, pobre mulher, não o deixava me levar, dizia que cabaré não era lugar para um menino de menos de oito anos. E toda vez que minha mãe ia contra meu pai apanhava muito, bem mais do que nas vezes em que ele a espancava sem motivos, acusando-a injustamente de roubar o dinheiro da barraca, dando-lhe socos e chutes, isso quando não a batia com corda molhada com um nó na ponta.
Meu pai nunca soube, mas eu é quem roubava uns trocados ou outros da barraca dele para comprar farinha para os meus cinco irmãos menores comer, já que se não fosse assim nós iríamos morrer de fome, pois ele, na glória de sua sabedoria, não deixava minha tia trazer um pouco de macaxeira de sua pequena horta de fundo de quintal, meu pai dizia que era dele o dever de manter a família, decerto era, mas hipocritamente ele não cumpria, ele nunca cumpria o que dizia.
Passei aquela noite em claro, com frio, fome e medo. Num raro cochilo, de cima do galho do de um cajueiro sem fruto, sonhei que estava comento muito caju, doce de caju, torta de caju, caju à milanesa... Era tanto caju, mas tanto caju que nem mesmo todas as barracas da beira da Rota do Sol tinham juntas, e no melhor do sonho me veio mainha com uma jarra de suco de caju, naquele sonho eu bebi e comi tanto caju que até hoje, desde aquele dia em que me perdi, acontece de eu ficar com enjoo, e acabando por vomitar, toda vez que sinto o cheiro de suco de caju.

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

O galinho que queria ser um cão

Dona Lúcia morava num sítio, no interior da Paraíba, mas teve que se mudar para um apartamento em João Pessoa, pois estava doente e precisava se tratar na capital, e, como vivia sozinha na pequena fazendinha, achou melhor fazer sua mudança de vez pra casa de seu filho.
Dona Lúcia criava muitos bichos. Tinha criação de porco, cabrito, galinha... E pelo apreço aos animais sentiu-se triste por ter vendê-los.
Para se lembrar dos tempos de fazenda, Dona Lúcia levou consigo um pintinho, ela pensou que um animal tão pequeno não iria causar incomodo. Na casa do filho já havia um casal de poodles, e quando o pinto cresceu e se tornou um belo galinho brincavam os três sem problema ou complicação.
Infelizmente Rodolfo, o cãozinho mancho, foi atropelado por um Fusca cor de abóbora desgovernado, que não viu o animalzinho matando-o de uma das formas mais sangrentas que um Fusca pode matar um poodle. A companheira do finado cãozinho, Maria Antônia, ficou muito triste, e estava já entrando num estágio avançado de depressão.
O majestoso frango, vendo e convivendo com aquilo tudo, começou a agir como um cachorro. Ele brincava com a bolinha de Rodolfo, se fingia de morto, dava a patinha, enfim... Tudo o que o animalzinho fazia em vida o galinho aprendeu rápido a fazer.
O novo comportamento do galinho, inicialmente, não foi saudável apenas para a cadela Maria, mas aquilo fez um bem à família inteira, já que era um jeito, muito bem humorado e inocente, de se lembrar com alegria de Rodolfo.
O coração canino de Maria Antônia foi conquistado por inteiro pelo galinho quando ele aprendeu a latir. Agora, passados seis meses da triste morte do ex-companheiro de Maria, o galinho se tornava o cão mais feliz do mundo, pois se unia em matrimônio com a cadela viúva.
Tirando o fato de não poderem ter filhotes, o casamento entre o galinho e a cadelinha foi, e ainda é, o casamento mais bem sucedido do reino animal. Eles convivem em harmonia, sem qualquer tipo de briga ou discussão. O único momento que Maria reclama é quando seu marido quer lhe beijar a barriga.

Pedrinho e a amiga Felina

As cortinas que tapavam as janelas cobriam a luz do sol impedindo-a de entrar no meu úmido quarto. Eu morava na casa da minha avó, morava não... sei lá? Eu passava as férias na casa da minha avó, que tinha ficado viúva há três meses apenas. Minha mãe disse pra eu fazer companhia a ela, pois vovó se sentia muito sozinha.
Todo os dias, eu tinha que acordar às seis e meia, era muito difícil, pois além de eu não estar acostumado, as cortinas que tapavam as janelas cobriam a luz do sol. Parece tolice, você está se perguntando: – “por que esse moleque narrador não abria a cortinha que tapava a janela que cobria a luz do sol?” É muito simples. EU NÃO DORMIA SOZINHO! Eu tinha que dividir o quarto, e, por pouco, a cama, com minha avó. Não teria problema já que avó é nossa segunda mãe, mas a minha tinha problemas com gases... É... ela peidava muito a noite toda. Tadinha da véia!
Era até legal ficar na fazenda de vovó, fazenda não, tô sendo muito generoso, sítio... chácara... É alguma coisa entre sítio e chácara, ou chácara e sítio... entende? Eu brincava com as galinhas, marrecos... eu só não gostava muito de brincar com os gansos, eles eram bem agressivos, mais brabos que os cachorrões que minha avó criava dizendo ser pra proteger seus outros animais do chupa-cabras. Eu nem sabia o era chupa-cabras, não era do meu tempo, só depois procurei na internet, achei tolice da minha avó... onde já se viu? A véia com medo de chupa-cabras!?
Lembro que brincava sozinho, não tinha ninguém lá da minha idade, a ao ser por Felina, a filha do caseiro que era paraplégica. Ela vivia na cadeira de rodas, não dava pra passear pela grama, pois o veículo engasgava sempre numas poças. Na verdade, eu só fui saber da existência de Felina pouco menos de uma semana pras minhas férias acabarem. O pouco que conversei com Felina me fez crescer de alguma maneira. Poxa! Eu fiquei um mês quase inteiro na casa de vovó e não brinquei com Felina, mas não foi minha escolha, não foi. Só a descobri cerca de três dias antes de eu ir embora. Mas, no pouco que conversamos, nos tornamos amigos.
Minha avó mandou o computador pra casa do caseiro, ela não sabia mesmo mexer “na invenção dos homens loucos que não tinham mais o que inventar”. Felina e eu conversávamos a tarde quase que inteira, mas não era muito papo como parece. Ela não estava acostumada a digitar, mas eu tinha paciência.
Começava a estudar cidadania na escola, a professora Aline disse pra gente fazer a caridade de conversar com um aleijado às vezes, eles não eram pessoas normais, por isso a gente tinha o dever de agradá-los, assim, quem sabe, Deus também se agradaria de nós. Eu não gostava da aula de cidadania, a professora fazia os deficientes físicos parecerem gente de outro mundo, talvez do mesmo lugar de onde vem chupa-cabras.
Eu não tinha intenção de agradar nenhum deus quando falava com Felina, apenas de me agradar... se eu não me sentisse bem nas nossas conversas, eu jamais conversaria com ela. Ah! Eu não teria pena de dizer que ela é sem assunto só porque não pode andar...

Anos depois


Felina completava dezessete anos de idade, eu já tinha feito quinze no mês anterior. Comprei um novo computador para Felina, sua família não tinha condições, o computador que minha avó tinha dado a minha amiga ainda era com o Windows 98. Comprei um notebook pra Felina, ela adorou, começou a chorar me deixando também emocionado e constrangido.
Eu não via muito Felina pessoalmente, a gente só se falava pelo computador, agora, como o novo notebook que dei pra ela – novinho em folha, comprei com meu próprio dinheiro, era superior ao meu, minha mãe inclusive mandou eu dar o meu “velho” e ficar com o novo, mas ao olhar minha cara de carranca ela logo desistiu da idéia, onde já se viu – a gente poderia então se ver pela webcam.
O engraçado foi Paola, minha namorada, ao entrar em meu quarto de mansinho me viu conversando com Felina, deu o maior piti, começou a querer saber quem era a menina que eu conversava e coisa e tal... expliquei que ela era só uma amiga, não disse que ela era paraplégica, não tinha pra quê. O resultado foi que Paola, ainda semi-nua, me pediu para escolher entre continuar a namorar com ela ou manter conversinhas com amiguinhas estranhas no computador. É claro que escolhi Felina. Paola focou irada, pense numa menina puta da vida!

A Menina Que Gostava de Futebol

Era década de 1960, não ficava bem para uma menina brincar de bola, mas Cláudia gostava de futebol, e muito.
Cláudia, que tinha cinco anos na época destes acontecimentos, usava um corte de cabelo curto, estilo Joãozinho, pois sua mãe, além de não ter condições de tratar dos seus cabelos, achava que ter os cabelos curtos ajudava a espantar o calor. Aproveitando-se da situação em que se encontravam os seus cabelos, Cláudia dizia aos meninos da Rua de Trás que seu nome era Cláudio, assim ninguém implicaria com o fato dela ser menina, e a deixaria entrar no time sem problemas.
Cláudia, ou melhor, Cláudio jogava muito bem, inclusive melhor do que Caetano, que até então era considerado o maior jogador de futebol do bairro. Cláudia não tinha medo de bolada, carrinho ou esbarrão, ela jogava feito um menino, era astuta, habilidosa e marrenta, quando necessário. Além de futebol, Cláudia gostava de bola-de-gude, carrinho de rolimã... Seus irmãos a chamavam de Moleque Macho, o que fazia com que ela se enfurecesse e partisse pra cima deles pra agredi-los a socos e pontas-pé.
Cláudia era uma boa menina, mesmo sem muitas vezes ter ao menos um punhado de pão na barriga, ela se esforçava para estudar na maioria das vezes com fome. Certo dia ela sentiu fortes dores no estômago em plena aula de matemática, sua professora, que mesmo parecendo desumana tinha sentimentos, e ao perceber seu rosto pálido e com aparência sofrida, como a de alguém que deixa o cachorro escapar em dias de grande movimento de veículos na rua, decidiu levá-la à diretoria. Chegando à sala da diretora foi constatado que o que ela sentia era fome, pois não comera nada antes de sair de casa. Era normal Cláudia sair sem tomar café da manhã, porém na noite anterior a menina não tinha jantado. A diretora mandou que comprassem um pacote de biscoitos para a pobre menina pobre, o que a deixou inexplicavelmente feliz, porém Cláudia não comeu nem metade do pacote, ela sabia que seus irmão pequenos também estavam sentindo fome em casa, e decidiu levar o que sobrara para os que hoje quase a humilham.
Mas voltando a parte do futebol... Certo dia, os meninos foram procurar por Cláudio em sua casa, ao chamar pelo craque do time, uma de suas irmãs mais velhas disse que lá não morava nenhum Cláudio. Nisso... aparece Cláudia, logo quando ela tinha acabado de pôr o vestido que sua avó, Judite, trouxera. Era um vestidinho florido amarelo que pertencia a uma vizinha sua, que cresceu fazendo com que o vestido encolhesse. O vestido usado, mas conservado, fazia com que Cláudia ficasse tão bonitinha, tão cara de domingo. Os meninos do futebol não acreditaram... como uma garota havia os enganado tanto e, pior, como uma menina jogava tão bem um esporte tão masculino? Eles se decepcionaram consigo mesmos além de se surpreender.
É claro que depois de três ou quatro dias os meninos da Rua de Trás foram chamar Cláudia para jogar bola, no fundo superficial de seus jovens corações conscientes eles perceberam que sem o craque do time, Cláudio, ou melhor, Cláudia, sempre perderiam para o time da Rua Sul, que na verdade ficava três quarteirões ao norte.
Muitos diziam que Cláudia iria virar sapatão, que ela nunca se casaria... só porque ela gostava de brincar as mesmas brincadeiras dos meninos. Anos depois, ela se casou e teve três filhos. Nunca quis saber de mulher.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

O Criador de Bicho-de-pé



Sérgio, desde pequeno, gostava de percorrer o mato à procura de caju, manga, umbu-cajá, cajá-manga... mas ele sempre sofria com bicho-de-pé.
Sua mãe dizia a todo o momento para ele calçar um sapato ou um tênis, e ele nunca ouvia o que sua doce mãe dizia.
Toda noite, quando Sérgio voltava dos matos, Dona Abigail cutucava os seus pés para tirar os incômodos bichos, mas, conforme Sérgio crescia, Dona Abigail foi deixando que ele se cuidasse sozinho, tinha outras obrigações mais importantes do que tirar bicho-de-pé de um pré-adolescente.
Aos treze anos de idade, Sérgio não mais estudava, não ia mais à escola; ele se mantinha, ou melhor, comprava suas baganas com os trocados que ganhava vendendo as frutas que apanhava nos matos.
Certo dia, um senhor chamado Joaquim lhe pediu que tirasse um bichinho do seu pé e pusesse no dele – o ancião dizia gostar da coceirinha que o bicho-de-pé causa – o menino Sérgio, muito esperto e matreiro, disse que vendia por cinqüenta centavos e o velho sorridente aceitou o preço e pediu ao menino que toda semana viesse deixar um bichinho pra ele. E assim foi.
O velhinho contou a boa nova a todos os seus amigos, familiares e conhecidos; seu Joaquim era muito conhecido na comunidade. Quando Sérgio, após uma ou duas semanas, foi levar mais um bichinho, se surpreendeu com tamanha fila que se formara na frente da casa do ancião, mais surpreso ainda ficou quando descobriu que todos ali queriam bicho-de-pé.
Sérgio entregou o primeiro a seu Joaquim e contou quantos mais ele tinha, e, ao ver que tinha pouco para tanta gente, o jovem rapaz decidiu fazer uma espécie de leilão com lance inicial de um real.
O menino naquele dia apurou mais de trinta reais só com meia dúzia de bichinhos, decidiu, então, só trabalhar com isso, e comia ou dava as frutas que ele apanhava de graça no mato. Assim, Sérgio continuou a caminhar querendo cada vez mais bicho-de-pé, tinha fé no seu negócio; chamou os amigos, ofereceu parceria.
O Criador de Bicho-de-pé, como ficou conhecido Sérgio, cresceu e fez fortuna, e sua mãe reconheceu seu peculiar talento. Ele tinha inúmeras fábricas – se é assim que podemos chamar – e foi quem ajudou o Brasil a crescer e se tornar potência mundial. Sérgio pateteou a idéia, o mundo todo comprava bicho nele; dizem que os chineses descobriram, no bicho-de-pé, o ingrediente que faltava na sopa maravilhosa que eles esperaram vidas para preparar e saborear.
O Criador de Bicho-de-pé não mais precisava guardar em seu pé a mercadoria pela qual fez dinheiro, pois, ao contrário da população mundial, Sérgio não gostava de bichos incômodos, ele gostava era das frutas, das mangas, das goiabas, serigüelas...


quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Verdades sobre Branca de Neve: o que os Irmãos Grimm “esqueceram” de contar

            Muita gente não sabe, mas, antes de ser enfeitiçada e do Príncipe aparecer, Branca de Neve sentiu-se atraída por três dos anões, porém a jovem princesa sabia que tinha se apaixonado apenas por um, mas não tinha certeza de qual era, não sabia ao certo quem era o dono do seu coração.        
            Mestre era um dos que conquistaram o coração de Branca, ele era quem mandava no pedaço, sabe? Branca de Neve gostava de gente assim, de pulso firme. Mestre era um líder nato, além de ser o maior anão da casa.
            Outro dos três era Feliz. Cara bacana, animado, de bem com a vida... Branca de Neve nunca deixava de sorrir quando estava ao seu lado. Feliz tinha uma espécie de brilho no sorriso que fazia a jovem sentir uma aceleração no palpitar do seu coração.
            Por fim tinha Dunga, ele não tinha a imponência de Mestre, nem sabia contar piadas como Feliz. Contudo, tinha algo a mais: era o mais gentil dos sete anões. Dunga nunca levantava a voz para Branca de Neve, nunca dizia o quanto ela estava com bafo, muito menos fazia questão de lembrá-la de retirar a casquinha de feijão dos dentes após o almoço de quarta-feira.
            Branca de Neve pôs os três anões que tinham lhe chamado a atenção na balança, e findou por escolher Dunga.
– Dunga, você quer ser meu namorado? – perguntou Branca com a ponta do dedo indicador esquerdo na boca vermelha e carnuda, e encaracolando uma mecha de cabelo com o dedo indicador da outra mão. Ela estava ainda com o ombro direito apoiado no batente da porta, o que fazia com que seu quadril, coberto por uma saia longa de camponesa, se inclinasse para o lado contrário deixando-o ainda mais sedutor. E Dunga, que não conseguia olhar outra coisa a não ser o umbiguinho de Branca de Neve à mostra, balançou a cabeça dizendo que sim.   
Banca de Neve ajoelhou-se frente ao novo namorado e lhe beijou um beijo doce, o primeiro beijo de Dunga, o primeiro beijo de Branca de Neve em um anãozinho. A Princesa, a mais cobiçada entre os seres da floresta, apertava seus seios contra o peito nada robusto de Dunga, que acariciava sua nuca enquanto ela procurava algum resquício de presença de bunda no seu namorado a fim de apertar.
Enfim... depois de uns dez minutos e meio, o beijo terminou. Ao fim daquela primeira demonstração de carinho, cinco dos outros anões aplaudiram e cantaram: – “tão namorando, tão namorando...”. Todos, exceto Zangado, foram parabenizar os novos pombinhos. Mestre, Atchim, Soneca, Dengoso e Feliz aproveitaram pra dar aquela sacada no decote da Princesa. Zangado era o mais esperto, ficava deitado no sofá só na espera de Branca de Neve vir pra tentar animá-lo, e, devido à inclinação da menina, o mais mal humorado dos anões tinha uma visão bem melhor dos montes congelados.
Na pequena casinha no meio da floresta havia dois quartos, três anões ficavam em um, enquanto os outros quatro dormiam noutro, mas desde que Branca passou a morar lá os anões se espremiam num dos quartos e na sala. Após o jantar, Dunga e Braça de Neve foram juntos pro quarto onde a jovem dormia.
Deitado o tamanho não faz muita diferença, e, naquela noite longa, Branca de Neve apresentava o lado bom da vida ao seu namoranão. Os outros anões, incluindo Zangado, ficaram brechando o casal pelo buraco da fechadura da porta. Soneca parecia ter tomado arrebite naquele dia, Dengoso corria pro banheiro de cinco em cinco minutos, alegou que estava com caganeira devido ao picado de galinha d’angola que comera na cantina do garimpo.
Ah! Dunga naquela noite estrelada descobriu o porquê do soldado de 1,80m ter arriscado sua vida descumprido as ordens da rainha, madrasta de Branca de Neve, levando o coração de um veado no lugar do da linda Princesa de lábios vermelhos.
O tempo foi passando, passando... Dunga deixou de trabalhar com os outros anões, já que dormia toda a manhã recuperando a energia gasta durante a noite. A menina da pele alva, rosto rosado, cabelos da cor-do-ébano e lábios carnudos, como nunca se contentou com pouco, já que o amor tem que ser alimentado todos os dias com coisas grandiosas, o que não era o caso de Dunga, começou a dar umas escapadas, segundo Rumores, Arnaldo Rumores, vizinho mais próximo dos anões. Ele dizia que Branca de Neve ia se encontrar com o soldado que a tinha deixado fugir todas as quartas, quintas e sábados.
Branca de Neve terminou o namoro com Dunguinha, como ela costumava o chamar nas noites de lua cheia, pouco tempo antes de ter sido enfeitiçada através da maça do horror. Não era nem por Dunga ser pequeno, mas ele não conseguia beijar e preencher de amor ao mesmo tempo a parte que menos via sol do corpo da amada.
O resto da história você já sabe. Mas os Irmãos Grimm esqueceram de dizer ainda que enquanto Branca de Neve vivia feliz para todo o sempre com seu príncipe encantado, Dunga curtia com as anãzinhas da floresta e, às vezes, com as do reino também, pois, depois de ter namorado a filha do rei, ele tinha se tornado o anão mais desejado dos contos de fada.