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segunda-feira, 25 de maio de 2020

Uma noite Brilhante



Estávamos em casa. Não tinha nada lá que pudesse nos identificar como subversivos.
Pelo bem da minha família, tinha feito a barba já há algum tempo, queimado todas as camisas vermelhas e enterrado os livros proibidos. Mas nos entregaram. Não sei quem... nem o culpo. Decerto, a dor que sentiu antes do arrependimento, infelizmente, foi tão grande quanto a minha.
Eu era fiscal de produção de uma fábrica de roupas; Tereza, minha mulher, professora de francês.
Nos conhecemos numa sorveteria. Achei que seria um sonho poder namorar com uma moça estudada. Logo eu, de família pobre, um peão sem eira nem beira, estava apaixonado por uma mulher linda, inteligente, de classe média.
Namoramos por um tempo. Casamos e tivemos uma filha. Vivíamos uma vida tranquila.
Durante as aulas, Tereza aproveitava para ir além do ensino do outro idioma, fazia com que os alunos, durante as conversações, tentassem pensar um pouco fora da caixinha... todos eram de família rica... Quem é que podia pagar por aulas de francês naqueles tempos?
        Lá na fábrica, a gente também tentava ir além do aperto dos parafusos e da checagem das máquinas. Queríamos melhores condições de trabalho. Fazíamos reuniões, levávamos propostas aos patrões... Tudo mudou.
     O golpe veio. Veio a desesperança. Nossos dias viraram uma noite eterna. Muitos amigos foram presos ou simplesmente sumiam... Quando algum aparecia, caso raro, era sempre muito machucado. Machucado por fora e por dentro da cabeça.
     Era uma tarde chuvosa de maio. Eles entraram na minha casa me chamando de comunista. Levaram Tereza também... A nossa filha teve que ficar com uma vizinha, que não entendeu nada do que estava acontecendo, mas não podia se intrometer naquela situação.
         Fomos separados. Me interrogaram e foram aplicando força gradativamente ao passo que eu não falava nada. Me despiram. Me afogaram. Me deram choques. Mesmo assim eu me negava a dizer qualquer coisa que prejudicasse a mim, minha família ou meus companheiros.
        Foram três anos na preso. Durante uma das torturas, pesaram a mão e perfuraram um dos meus rins. Por sorte ou azar, passei o tempo da recuperação sem receber tanto castigo. A infecção que quase me matou me torturava e poupava o fôlego dos meus algozes.
      Mas teve uma noite, já quase recuperado, que eu sofri a maior violação que alguém poderia sofrer. Fazia um ano e meio que não via Tereza. Trouxeram ela para ser estuprada e torturada da minha frente. Me estupraram também. Minha esposa estava muito magra e machucada. Cada golpe que ela levava, um pedaço da minha alma castigada era arrancado.
    Tereza morreu naquela noite. Minha mulher, minha companheira morreu na minha frente. Foi abusada de todas as formas possíveis. Enquanto eu tive a vida poupada por castigo, via o Coronel rindo e cuspindo sobre o corpo frio de Tereza.


Rodrigo Slama 25/05/2020

quinta-feira, 21 de maio de 2020

O dia que mataram Bolsonaro





Quarta-feira. Mês de junho. O Nordeste comemorando seus santos, o Sudeste vindo pro Nordeste curtir as praias. Meio do Ano. Todo mundo merece descanso, todo mundo precisa descansar. Eu dava aulas e dançava quadrilhas. Comia milhos e cheirava cangotes no Beco. Tudo seguia e a gente seguia também, sem muita escolha, sem ter muito o que fazer além de reclamar em páginas de redes sociais para os nossos próprios amigos semidesconhecidos e poucos desconhecidos que a gente mal sabia quem eram.
– Mataram Bolsonaro! – gritou um aluno quase no fundo da sala e todo mundo começou a falar. Pensei em brigar com o guri que estava mexendo no celular na minha aula e inventando história, mas por que alguém iria inventar que mataram o presidente?
– Como é? – inquiri.
– Professor, acabaram de mandar aqui. Mataram o Bolsonaro!
Saquei meu celular. Todos os grupos em polvorosa. Um monte de gente comemorando, poucos lamentando, mas, sim, tinham matado o presidente.
Não consegui mais dar aula naquela quarta-feira. Ninguém mais conseguiu se concentrar no meu texto de Saramago.
Saí para a sala dos professores. Boa parte das turmas estava saindo, mesmo faltando ainda mais de 15 minutos para o fim daquela aula.
– Dessa vez acertaram! – alguém gritou da cantina. Na hora, não entendi. Sabia que tinha sido uma facada, mas ainda estava meio perplexo com aquilo tudo. Não sei você, mas eu, particularmente, demoro um pouco para processar certas informações... sobretudo porque, infelizmente, fico tentando achar brechas que não foram ditas, possibilidades, outras narrativas, enfim... eu ainda estava meio perplexo.
Era uma quarta-feira. Era junho. Tinha gente com toras e galhos de madeira em frente às casas. Era interior... o dia todo era gente soltando bomba, fogos... fossem vinte anos atrás, teria balões, mas hoje não pode mais.
Aquele dia não teve mais aula. Era impossível manter os meninos quietos. Na TV, só se falava nisso. Muita gente preocupada com o que aconteceu, outras pessoas, em menor número, preocupadas com o que seria? Nunca, no Brasil, alguém tinha matado um presidente. – E Tancredo? – Não, desse jeito não. Tancredo não conta. – E agora?
– Olha, rapaz, não sei. Uma parte de mim está feliz, outra está muito preocupada.
– Preocupada uma porra!
– Não sei.
– Bora beber!
– Beber?
– Beber, bora?
– Bora.

Rodrigo Slama
21/05/2020
Imagem do Google