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sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Companheiro Ema e o Barba

 


Deu tudo certo, a festa foi linda e nenhum incidente que oferecesse algo além de mais vergonha aos famigerados e fundamentalistas lunáticos aconteceu. Dia 01 de janeiro de 2023. No relógio, já era dia 02, mas o dia só muda quando a gente dorme. E o Presidente – sim, sempre, ele, com P maiúsculo – não poderia dormir sem cumprir mais um ritual, improtocolado.

– Olá, meu velho amigo.

– Opa! Quanto tempo... Estava te esperando.

– Eu sei, Companheiro Ema, mas o dia hoje foi corrido. Vim pra cá assim que deu, sabe?

– Não tô falando de hoje, Barba. Você sabe o que eu e as outras Emas passamos?

– Mas, companheiro. Não dependia de mim!

– Tem menino novo aqui que acha que é mentira que aqui já teve morador legal. Eu conto as histórias e o pessoal nem lembra. Dos antigos, só fiquei eu.

– Sinto muito. Eu fiquei sabendo.

– Mas não veio aqui fazer uma visita.

– Eu não podia. Eu também fiquei preso por conta de todo esse golpe contra o país.

– Barba, a JurEma, minha esposa, morreu!

– Sinto muito. Sei o que você está sentindo.

– Sabe não, Barba! Você tá casado com uma gata. Eu já tô velho e ninguém daqui me quer.

– Eu vou mandar botar mais algumas emas fêmeas aqui no jardim.

– Não é sobre isso, cara. Você não tem noção!

– Eu tenho, companheiro. Estou aqui hoje para falar contigo. Eu poderia estar transando agora e tô aqui! – disse o Presidente sorrindo.

– Ah, vá. Mas não tem noção mesmo! O maluco queria me dar remédio de malária, meu irmão.

– Mas você fez muito bem em ter bicado ele, companheiro! – disse o Presidente meio cansado, mas rindo bastante com o reencontro.  

– Saiu no jornal, né?

– Saiu em tudo quanto é canto! Até eu que não tenho celular vi os memes.

– Ainda bem que alguém riu desta história – disse Ema claramente mais leve.

– Agora as coisas vão mudar. Vamos tomar cerveja e comer picanha, companheiro... e...

– Porra, Barba, tu vai meter esse papo carnista pra cima de mim?

– Desculpa, companheiro Ema. Vou mandar lá no cocho aquela ração premium que você gosta.

– Sério? – perguntou a ave extremamente animada.

– Claro, companheiro. Eu disse que a gente ia sorrir de novo.

– Verdade... tô rindo aqui e nem tenho dentes – disse Ema sorrindo.

– Vamos sorrir muito ainda, companheiro. Está só começando.

 

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Rodrigo Slama 30/12/22

sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

Cadelinha do Neymar 02 - Beijem minha bunda!

 


 

– Viu? Eu disse que a tatuagem ia funcionar. O menino Ney jogou muito hoje! Fez gol e já já alcança o Pelé!

– Ele fez gol de pênalti!

– Ele é excelente batedor.

– Sim, tudo bem, mas ele nem sofreu o pênalti.

– Foda-se, ele é o batedor oficial. Vai bater todos os pênaltis. Pênalti não é gol?

– É... estou querendo dizer que outros jogaram melhor.

– Conversa, seu antiney! Sem ele, a gente perdeu!

– Cara, a gente tava sem nenhum jogador titular! Tanto ele quanto os outros não jogaram! Futebol é um esporte coletivo,  não joga só um contra onze, não.

– Ele faz diferença e minha tatuagem limpou a energia ruim de vocês, seus fascistas!

– Cara, da onde você tirou que quem não gosta de Neymar é fascista!

– Vocês mesmo não disseram que quem deseja a morte dos outros é fascista? Que quem gosta do presidente fascista é fascista?

– E quem aqui está desejando a morte de Neymar?

– É, a gente só não gosta dele.

– Fascistas!

– Tá falando merda!

– Merda? Vocês não gostam do Brasil. Eu sou de esquerda, mas não sou comunista. Comunista é fascista!

– É o que, cara? – disse rindo, achando que era graça.

– Tô falando sério – ele disse sério.

– De ondo você tirou isso?

– Olha. Hitler era fascista, matou muita gente. Stalin também matou muita gente, ele também era fascista. Comunismo e fascismo são a mesma coisa.

– Cara, de onde você tirou isso? São coisas completamente diferentes.

– Mas o partido do Hitler tinha social no nome.

– Mas tinha nacionalista também. O comunismo não é nacionalista.

– Por isso que vocês torcem contra o menino Ney.

– Não tem nada a ver!

– Comunismo e fascismo são a mesma coisa!

– Não! O nazi-fascismo pregava a ideia de uma raça superior. O genocídio dos não-caucasianos era pilar do fascimo. No comunismo, todos são iguais.

– Mas Stalin matou igual Hitler!

– De onde você tirou isso? No mínimo, Hitler matou dez vezes mais! E o capitalismo mata mais do que Hitler!

– Agora você tá defendendo Hitler também?

– Não! De onde você tirou isso?

– Você está defendendo Hitler e querendo que Neymar quebre a perna, argentino filha-da-puta!

– Agora argentino virou palavrão?

– Quem não é brasileiro é inimigo!

– Inimigo?

– No futebol? Não sou vocês, fascistas, que querem que Neymar quebre a perna.

– Ninguém aqui quer que Neymar quebre a perna!

– Justamente!

– Pois é!

– Não acredito – disse a cadelinha insegura –. Quero que vocês provem?

– Não precisamos provar nada, cara. Se liga!

– Só acredito que torcem pelo Brasil se beijarem minha bunda.

– O quê?

– É o que, macho?

– Beijem minha bunda. Todos!

 

 

Rodrigo Slama 09/12/22  
* Imagem do Google

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sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Cadelinha do Neymar




- Não é bem assim, tem que separar o pessoal do profissional!

- Nada a ver. Uma pessoa não pode ser dividida.

- Uma coisa não tem nada a ver com a outra. A gente precisa dele pra ser campeão. 

- Mas fomos campeões cinco vezes sem ele.

- Mas precisa agora. Não dá pra comemorar lesão de jogador.

- Não tô comemorando, só tô dizendo que a gente não precisa dele.

- Precisa! 

- Ganhamos da Bélgica sem ele. Não tem lógica achar que ele, só ele, faria diferença hoje.

- Faria. O menino joga bonito. Amo o Neymar! 

- Cara, ele prometeu gol pro genocida, não posso torcer pra ele.

- Não tem nada a ver. Não pode misturar as coisas.

- Ele deixou de ver criança doente porque o hospital era espírita. 

- Ele tem a fé dele. O menino é evangélico! 

- Ele sonegou impostos. Muita gente deixou de comer, ter remédio, ter assistência por causa dele.

- Mas não pode misturar as coisas. Sua energia ruim prejudicou o Brasil. 

- Brasil não é só futebol!

- Eu sei, mas a gente precisa dele.

- Cara, melhor você parar de beber.

- Vou nada! Vou tatuar Neymar e é agora! 

- Mano, você nem gosta de tatuagem.

- Preciso fazer algo pra ajudar o menino Ney. A energia de vocês tá prejudicando o Brasil! 

- Cara, você tá falando merda!

- Merda? Você é fascista!

- Eu, tu nem sabe o que é fascista.

- Fascista é quem não gosta do ser humano. Você não gosta do menino Ney, você é fascista! 

- Macho, pare de beber, você tá falando merda!

- Merda quem tá falando é você. - Mãe, me traz um prestobarba aí! 

- Tu vai fazer a barba agora? - veio a mãe dele preocupada da cozinha.

- Não, vou me depilar pra fazer uma tatuagem. 

- Não vai não!

- Vou sim, já tenho quarenta anos e a senhora não manda em mim.

- Mando sim. Enquanto morar debaixo do meu teto vai me respeitar. 

- A senhora também com essa energia pesada não ajuda em nada! 


O cara de levantou e saiu. Pegou seu 4x4 e foi até a cidade vizinha. Até que encontrou um tatuador e fez uma boa tatuagem. Passou o jogo seguinte mostrando a bunda tatuada pra todo mundo. Quem criticava, era chamado de fascista. Mas tudo bem brigar por futebol. Gente ignorante ama o Neymar, Deus e o Brasil acima de tudo. A seleção venceria o próximo jogo, mas o menino Ney não faria gol algum.


Rodrigo Slama 02/12/22


*Imagem do Google 

Futtobōru




Fazia tempo que os deuses japoneses não trabalhavam tanto. Quando a tecnologia, a civilidade e a educação dedicam-se ao avanço social, ópio deixa de ser eficaz. Mas em tempos de Copa do Mundo até o mais ateu acredita. Quando o assunto é futebol, não existe lógica, ideologia ou compaixão à dor alheia, restam o amor, o bairrismo e a fé.

A fé boa, neste caso, uma fé que quer a dor do outro apenas por levar alguns gols. É uma guerra sem mortos - sem contar os da construção dos campos -, sem sangue, sem espada ou tiro. Uma luta com o único objetivo de sorrir, apesar de tudo. - Pobre menino suíço, em pelo menos algo o Brasil tinha que ser melhor! Olha que Deus não seria brasileiro nem se pudesse escolher, ou melhor, sobretudo se pudesse escolher. 

As divindades que tocavam o Brasil - e são muitas! - estão há muito ocupadas com a miséria e o ódio para terem tempo de ver futebol. Daí quem trabalha na Copa, claro, são os deuses de quem tem barriga cheia e teto para morar. Certamente, os outros até tentam, mas são os dos abastados os que trabalham mesmo neste período. Uns só de quatro em quatro anos mesmo. Os do Brasil não. Pelo menos pra isso não precisamos de ajuda. Hachiman e Benzaiten, no entanto, faz tempo tomaram pra si a missão de alegrar seu povo, mesmo que a sociedade quase nunca precisasse deles. Pelos menos, pelo futebol, eram lembrados... Gostavam de se sentir úteis. 

Não, os seres que ouvem os costa-riquenhos não são mais poderoso. Tengu, Kannon, Amaterasu e todos os outros estavam era mesmo de ressaca naquele domingo de fim de novembro. Foram dias de festa. Ganhar da Alemanha não foi fácil... claro que vacilaram, mas compensariam contra a Espanha. Estes deuses, como seus fiéis, ainda são aprendizes, mas não arredavam da missão que aceitaram há poucas décadas mortais: os antepassados japoneses estão no caminho de conseguirem seu primeiro campeonato mundial de futebol. Para isso, pelo menos, eles têm motivação. Para mais nada são necessários naquela ilha oriental.


Rodrigo Slama 01/12/22

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quinta-feira, 24 de novembro de 2022

Do pó à luz

 




Eles conseguiram dar o golpe. Houve resistência, guerra civil. Lula morreu, Chuchu derreteu. Acabou. Havia 215 milhões aqui, não sobrou mais nada. Uma terra arrasada. O continente dizimado. Sobrou pouca coisa. Era melhor continuar num estado de exceção ou ter morrido todo mundo? Vai saber... Agora tudo é pó. Não existe mais nada, não há mais nada.

Anos passaram. O sol começou a aparecer. Alguns humanos começaram a retornar à superfície. Todo mundo apavorado. Todo mundo sem criticidade. Sobreviveu só a massa. Os intelectuais, líderes, políticos... todos morreram. Pareceria que o país fora fadado à extinção, não fossem os homens magros saídos das cavernas.

Aos poucos, todos se agruparam. Não tinha sobrado mesmo muito lugar pra viver. O que outrora o Sudeste, era apenas o centro... o que restou. Uma ilha sem vizinhos, sem floresta, sem qualquer coisa que lembre um país ou mesmo uma comunidade. Era apenas uma terra destruía, cercada de mato e nenhum fruto. Tudo um deserto de ervas daninhas e sobras de concreto e construções.

Não havia gente, quase. Uns morreram na guerra, outros pelo colapso da energia e do ar. Sobreviveram por quase duas décadas no submundo, nos esgotos, nos rincões. Alguns comeram carne humana, outros se restringiram a ratos e tatus. Sobreviveram, afinal, não se sabe por misericórdia ou maldade divina. Mas estavam de volta e conseguiram respirar.

Não demorou muito, veio o salvador. O mais velho, o único líder sobrevivente. A única pessoa que poderia tocar o Brasil em frente. Era ele, tinha que ser ele, era a vez dele. O que ele não pôde fazer antes, faria. Governaria o país pela escolha unânime dos sobreviventes. O golpe que motivou a guerra enfim mostrava a que vinha. Era a elite de volta ao poder. Era Minas de volta ao poder. Aécio Neves, presidente aos oitenta e dois anos.

 

Rodrigo Slama 24/11/22

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sexta-feira, 18 de novembro de 2022

A Cartomante e o Cético

 



Casa de Tranca-Rua. Cartomante. Mãe Clara de Oyá.

Tinha sempre consulta. Tinha vezes em que nem desvirava para almoçar, diziam. Duvido. Duvido de tudo e fui ver, disse. Passei uns dias indo. A leitura das cartas não me pegaria como pegou Camilo. Não! Eu não me deixaria me envolver pelas palavras, promessas, amores e fama de lá. Mas voltei. Voltei em outros horários e forcei uma amizade. Nossa, fazia tempo que eu não conhecia gente nova, ela agradecia por ter alguém pra falar de macho, passear... essas coisas.

– Bicha, faz tanto tempo que não saio numa sexta ou num sábado.

– Bora, mulher. Bora tirar um dia de folga.

– Tenho compromisso com Dona Maria Padilha.

– Você tem é boleto, né, mulher?

– Como é?

– Nada não – disse se fazendo de besta.

O tempo passou, não disse o quanto. A gente foi ficando amigo. Ela um tempão chamando que queria ir pro samba no Beco da Lama. Mas já disse que não posso, que tenho psicólogo. Faz meses que tento trocar de horário, mas esse é o único. Enquanto eu fazia análise, Clara dava consulta. E eu justamente discuti isso naquela sessão. Já fazia meses que eu era ‘amigo’ daquela cartomante que eu já estava com pena da mulher. Ela não era má, era apenas meio doida, acreditando na própria mentira. De qualquer maneira, eu não queria lá e desmascarar a charlatã, só queria que ela suprisse suas carências de outras maneiras.

– Mãe Clara, olha só. Tava pensando aqui. Meu psicólogo tem um amigo pra indicar que também tem horário na quinta. Você num tava querendo deixar de atender na quinta de noite?

– É, mas eu quero parar da dar consulta pra ir pro samba, pro funk...

– Ah, mas então vá sozinha.

– Você sabe que não vou sem você.

– Então faz assim. Faz duas sessões de terapia e eu perco uma minha pra sair contigo.

– Num preciso de psicólogo!

– Tá, mas eu preciso, mulher.

Riram e marcaram as consultas. Foram ao Beco na terceira semana, mas ela tinha gostado da análise e retornou para um longo ciclo. Agora ela faz cursinho para o ENEM e está trabalhando numa loja de tecidos. A renda baixou muito, mas não tinha como continuar depois que acordou. Nada mais baixou, conseguia ver que enganava, quebrou a confiança. Ainda não despachou tudo, mas retirou o letreiro da vista do rio. Não era nem caso de psiquiatra não, tá vendo?, disse.

Quanto ao amigo, ele nunca mais pensou em desmascarar a amiga. Ele estava, justamente, trabalhando o fato de estar começando a se sentir mais conectado a algum tipo de energia. Mas tudo é energia, não? Somo matéria e matéria troca energia com o ambiente. Será que eu sou médium?, perguntava. Será que eu tirei Clara do caminho, da religião, doutor?


Rodrigo Slama, 18/11/2022


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quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Pastor 8 - Patriota de ocasião

 



– Irmãos, vamos orar pelo novo presidente. Deus escreve certo por linhas tortas. Tudo o que acontece é por vontade divina, amém?

– Amém! – disse a igreja em coro.

– Pastor?

– Sim, irmão. Diga a sua dúvida porque hoje Deus está falando comigo mais do que o normal, amém, igreja?

– Amém!

– Pastor, o senhor me desculpe, mas a gente fez setenta e sete dias de jejum pra reeleger o mito e agora a gente vai rezar pro nove dedos?

– Sim, irmão! – disse firmemente o pastor para espanto dos cochichos que ratificavam a razão do irmão.

– Por quê?

– Olha só, irmão. Você está duvidando da vontade de Deus?

– Claro que não, pastor. Mas a gente agora vai ter que orar pra bandido?

Cochichos e mais cochichos se espalharam pelo salão. A igreja estava quase cheia, exceto por alguns membros que foram pedir ajuda dos militares nas ruas da cidade. O pastor não concordava com isso... A igreja tem fazenda, vende muita coisa... tem lavanderia também... muito investimento. Tudo para ajudar na obra do senhor, segundo.

– Nos tempos de Cristo, a população também escolheu Barrabás. O povo é assim. Gosta de bandido.

– Sim, e nós vamos ter que aturar isso orando? A gente devia ir pro quartel junto com os outros irmãos!

 A igreja não sabia a quem apoiar. O irmão estava certo para eles, errados, mas o pastor era o pastor. Apesar de errado, era pastor. Mas é aquilo, né? É demais esperar coerência de neopentecostal. É sacanagem com o gado, eles bugam!

– A gente vai orar para que ele não feche nossas igrejas e não transforme os banheiros das escolas em lugar de pedofilia, amém? A gente vai continuar lutando contra o inimigo. O Diabo só está preso até hoje porque a gente ora para ele fique preso, amém?

– Amém, pastor! Tá amarrado, em nome de Jesus.

– Eu não aceito orar para aquele ladrão. Eu quero que as forças armadas botem os tanques nas ruas e mate ele, amém.

– Amém! – disse a igreja, sem refletir.

– Se ele morrer, quem assume é Alckmin, não ajuda em nada e o tinhoso ainda vira herói e a petralhada nunca mais sai do poder.

– Tá amarrado! Tá repreendido!

– Pastor, eu não vou ficar aqui orando por Luladrão não, eu vou pra rua lutar pela nossa liberdade, por Deus e pela família!

– Eu também vou! – gritou um adolescente que estava com a camisa da CBF por debaixo do terno barato.

– Virou rebelião agora? Isso é coisa de comunista! – gritou o pastor quase perplexo.

– Tá amarrado!

Sem que precisasse mandar, os demais irmãos cercaram o irmão rebelde, estiraram as mãos e começaram a bater os pés direitos fortemente contra o chão enquanto gritavam palavras de ordem na intenção de expulsar um demônio. Não existia demônio algum naquele corpo desalmado. Porém, maluco, é que o cara ficou puto, e com certa razão. O próprio pastor dele e os irmãos ali rezando contra ele e a favor do Lula, na sua cabeça. Emputeceu-se. Saiu da igreja, entrou na sua caminhonete importada e arrebentou o portão da frente acertando três irmãs e uma estátua – pois é! – de Abraão que tinha na entrada do templo... rasgou até a bandeira de Israel que envolvia a escultura.

Entre os membros da igreja tinha de toda gente. Dois policiais que estavam no culto armados contiveram o irmão, que gritou: – Fariseus! Patriotas de ocasião! Vocês estão virando as costas para o mito, para Deus, para a liberdade e para a família!

As palavras pareceram pesar. Desde a unificação da Itália é assim. O fascio é inquebrável, mas combatível.  Parte da igreja pediu misericórdia. O pastor mandou soltar o irmão. Rapidamente, chegou uma ambulância para os feridos. Ninguém prestou queixa. Hoje não tem culto. O pastor liberou os irmãos para irem para a porta do quartel, mas tá passando lá pra levar a palavra, rezar pra muro e pneu e pegar as doações, afinal, agora que Lula tá podendo fechar igreja, as doações são ainda mais importantes. O dízimo já tinha sido ajustado pra 22% desde agosto. Todos concordaram. Quem não pode pagar tá indo mais vezes a igreja para fazer uma faxina, preparar uma comida gostosa pros obreiros ou emprestar uma menina bonita pro pastor.


Rodrigo Slama 16/11/22

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terça-feira, 25 de outubro de 2022

Entre loucos e cachorros: esperança

 


Era uma terra de loucos. Loucos de pedra, que atiravam na lei com granadas.
Era uma terra de loucos. Ponto. E mais um ponto.

 

– Mano, como eu tô ansioso pra domingo!

– O que tem domingo, viado? – perguntou Miguel.

– Eleição no Brasil. Segundo turno.

– Eleição onde, cara?

– No Brasil, pô. Lá na Terra!

– Quem liga pra Terra atualmente?

– Ué? Tem canto mais legal pra gente se preocupar?

– A Terra é um absurdo, Yesalel. Há pelo menos mil anos ninguém daqui nem sabe notícias de lá.

– Mas, Miguel, tá um pandemônio lá no Brasil, na Terra.

– Diabo de pandemônio? Demônio já era. Nem ele mesmo quer saber dele. Já virou lenda demais.

– Eu sei que o senhor e o resto do pessoal já saturou. Mas o universo anda perfeitamente calmo. A única emoção genuína vem da Terra.

– Cara, a Terra já era há muito tempo! Nem sabia que ainda existia... A gente deixou pra traz faz uma era! Os caras lá escolheram um bandido, macho. Pai num quer mais saber de lá, não. Entre todos os lugares em que Javé se fez carne, lá foi o pior. A Terra não merece nada da gente, não! Vai arrumar o que fazer!

– Desculpe-me, senhor. Mas tem gente boa na Terra.

– Não vês a petulância paradoxal do que dizes? Se é gente não pode ser boa! Não aprendeu nada nestes séculos e séculos de invento em vida?

– Mas tem, realmente, gente boa lá.

– Eles não sabem o que é bondade!

– Alguns sabem.

– Agora pronto. Eu agora tô errado!

– Não quis dizer isso, senhor.

– Mas foi justamente o que você disse, Yesalel!

– Me perdoe, Miguel, mas, realmente, tenho apreço pelos homens.

– Você tem apreço por coisas inúteis!

Neste momento, Yesalel se perdeu na sua visão da Terra.

– Tá vendo, nem percebe o que eu tô falando! – disse o comandante de todo exército divino, Senhor de todos os soldados de todos os universos.

– Desculpe, senhor general. Me distraí com esse cachorrinho caramelo brincando com a moto?

– Cachorro?

– É! Olha só!

Miguel parou um segundo em sua existência infinita e admirou um cachorro sem raça definida correndo atrás de uma motocicleta. O cachorrinho não queria derrubar o motociclista. Apenas queria correr junto a quem conseguisse alcançar o vigor de suas quatro patas. O cão se ria sozinho pacificamente.

– Isso é na Terra? – Perguntou Miguel.

– É sim! Lá no Brasil.

– Nunca ouvi falar do Brasil. O que tem lá?

– Tem um escroto no poder. Mas parece que sai no próximo domingo.

– Sempre tem escrotos no poder... Tanto aqui quanto lá. Mas diz... esse cara que lá governa gosta de cachorro?

– Gosta não, senhor. Nem de cachorro, nem de gente... não gosta de nada que tenha beleza, inocência ou remeta à esperança.

– Qual o nome desse ditador?

– Jair Messias, senhor.

– Messias?

– Sim, messias.

– Domingo é quando?

– Em cinco dias humanos.

– Só?

– Sim.

– Tá bem. Vou lá. Mas não é pelos homens, Yesalel.

– Gostou do cachorrinho.

– Muito!


* Imagem do Google

Rodrigo Slama, com esperança e sem medo de ser feliz 
25/10/22

sexta-feira, 2 de setembro de 2022

Laranja, verde, branco, números

 



 

Era uma novidade de mais de vinte anos. Uma esperança frágil, desconfiável de quase metade dos descidadãos. Poucos permaneciam marginalizados frente à escolha, quase pseudo, mas existente. Vinha de avião, canoa, escoltada. Ela vinha! Chegava em todo lugar, chegava onde não havia saúde, onde não havia lazer, onde não havia comida e onde, sobretudo, não há educação!

O tempo todo na TV até hoje. É fácil! Laranja, verde, branco, números, foto e letras. Uma antiga caixa conhecida e vítima de terraplanismo, mentira fundamentalista para manter o poder em marionetes, um poder pouquissimamente perfurado por uma base de boa vontade, mas de pouca instrução, pouca desconfiança e pouca credibilidade. Uma base vítima da desinformação, do desestudo dos milhões rejeitados e de quem projeta a permanência da miséria em todo futuro alheio.

Resistência! Símbolo de inclusão, modernidade, democracia. Para quem? Não para todos, claro, mas o melhor do que existe, melhor fruto do que o limitado cérebro primata conseguiu alcançar. Segura, o que há? Quem é ela? Quem ela guarda, o que ela guarda, o que nos aguarda? Ah... ela não chega, sonhamos, jamais um sonho perfeito, mas o fim do pior pesadelo de toda uma gênese, inédita a duas, algozmente legitimado pela nossa salvadora apunhalada por quem se sorriu jubileu no inverno eterno infernal da última geração.

Não sei, ninguém sabe. Toalhas não cantam, telefones não caminham às escolas. E o café clareia, o feião afina, e o coração aperta, a cana já não basta, até o futuro escureceu. Foi embora o lirismo, só versos e cenas de resistência aparecem nas telas. E é tanta tela que ninguém vive mais.

 

Rodrigo Slama 01/08/22

quarta-feira, 27 de julho de 2022

Macaco é uma porra!






Era mentira aquilo tudo do Instagram e da escola. Nunca vira estrela, era poeira da redoma, certeza. Apois, apostou na terraplanice militante. Globolóides que se cuidem, a farsa vai acabar! Em palavras de ódio, odiava a mentira.

Um religioso da ciência desacreditada. Entregava-se ao duro sacerdócio sem esperar dinheiro, mas apenas pela verdade. Nisso, era mais nobre que clérigos de multirreligiões. Seu canal bombava, suas redes eram supermovimentadas, mas ele gostava mesmo era de bater de porta em porta pregando a palavra de Deus, que é a palavra da verdadeira ciência, claro. Para ser verdadeiramente de Deus, era preciso abandonar as ilusões científicas manipuladoras.

Confiando cegamente no Global Position System, vulgo GPS, rodava as cidades vizinhas para fazer pregação. Seguidores fiéis juntavam as pessoas, arrumavam cadeiras... na maioria das vezes era preciso ter microfone e caixa de som. Muita gente levava Bíblia, mas ele não lia. Sua pregação era uma pregação da ciência inspirada por Deus.

– Boa noite, pessoal. Tudo que contaram pra vocês sobre o planeta é uma mentira! A Terra não é redonda!

O povo se olhava sem entender nada. O cara que juntou o pessoal não tinha explicado. Acharam que era um culto normal, mas não era? Apesar do burburinho, o empolgado pseudocientista continuou.

– Vocês acham que viemos do macaco? – perguntou e timidamente a plateia negou com a cabeça. – Vocês acham que o universo veio de uma explosão do nada ou foi Deus quem fez?

Nessa hora, ele ganhou a atenção do público. Ninguém quer vir do macaco. Parece que vir do barro é mais interessante. Enfim... o fato é que as pessoas ali, humildes e pouco escolarizadas, cansadas de uma vida de trabalho duro, explorador e pouco recompensatório queriam acreditar que, por algum motivo, eram especiais. Era melhor acreditar que foram escolhidos pelo criador do universo, se é que ele existe, para viverem uma vida sofrida e irem para o céu, do que terem o véu arrancado e perceberem que os homens é que os mantém assim, cativos economicamente. Isso é desde os tempos das cavernas gregas. A gente, humanidade, gosta de ser iludido, gosta de alienação, né? E essa de agora ultramoderna... peraí, que preciso rir.

 

***

 

– Olha, Francisca. Eu acho que aquele cara tem razão.

– Mas, mulher, tem tanta foto, tanto vídeo.

– Eu sei, mas ele disse que é manipulado. E outra, você veio do macaco?

– Eu sei lá de onde eu vim, eu vim de Santo Antônio – disse rindo, mas logo escondeu a risada porque a piada não agradou.

– Deixa de ser besta, criatura, eu tô falando sério. Olha o sapato da gente... ele num é reto?

  Olha, de tudo que ele falou, isso é o que eu fiquei mais pensando.

  Num é?! E você veio do macaco?

  Eu sei lá, mulher, já disse. Eu acho que a gente veio de Adão e Eva mesmo.

  Claro! Deus fez a Terra pra gente, tá na Bíblia, você acredita na Bíblia ou vai ficar acreditando em macaco?

  Você cismou com macaco, Severina. Macaco é uma porra!


*imagem da internet

*publicado em Pastor e outras histórias

quinta-feira, 26 de maio de 2022

Pastor 07 – Ocupação da Assembleia?

 


            Pré-campanha. A pandemia arrefeceu. Parece que a mostarda tinha conseguido salvar a maior parte dos fiéis do pastor. Um ou outro rebelde tinha saído, mas, agora, a igreja já estava cheia novamente. Quanto mais a barriga da população esvazia, mais a igreja é lembrada.

 Felizmente para o Pastor, muitos jovens estavam frequentando o sábado da mocidade. A estratégia de distribuir vinho ungido (uma parte de suco de uva, uma parte de água de torneira e uma parte de vinho barato) e deixar os adolescentes livres para utilizarem os instrumentos musicais parece ter funcionado. Agora, no entanto, a conta precisava ser paga.

– Gente, o pastor chegou. Muda a música pra um hino!

– Olá, mocidade. A paz, Amém!

– Amém, pastor! – disse a juventude em coro.

Um jovem obreiro, responsável pela da dispensa durante o culto jovem, foi convencido pelos outros a deixar o vinho ungido mais forte. Ora, se Jesus abençoou o vinho, por que eles deveriam diluí-lo bastante em água e suco de uva, certo?

– Irmãos, precisamos ter uma conversa. Eu vim aqui conversar com vocês sobre as eleições, amém?

– Amém, pastor.

– É o seguinte. Precisamos de todas as forças de Jesus para mantermos nosso presidente no poder. Os comunistas satanistas estão voltando. Lula, o anticristo, já está afrente do Capitão de Cristo. Mas eu tenho certeza em Cristo que todas essas pesquisas são compradas... Aqui no estado a sapatona também está na frente pro governo. Mentira também, mas precisamos nos unir para ocupar os cargos políticos em cristo, Amém.

– Amém, pastor.

– Hoje, mocidade. Eu recebi um chamado de Deus. Em sonho, Cristo me disse que precisava me usar para que sua obra na Terra fosse protegida e multiplicada. Jesus me escolheu pra ser Deputado. Amém?

– Amém, pastor. – disse a mocidade meio sem muita expectativa.

– Pastor? – levantou um jovem irmão do fundo da roda... ele tinha um violão na mão e usava uma camisa preta desbotada.

– Sim, irmãozinho. Qual a sua inquietude? Vejo que você é novo no grupo de jovens... Não sei se você sabe, mas Deus me deu o dom da palavra! Encontrarei a palavra certa para lhe consolar, Amém?

– Ah... Amém?! Então, o senhor vai se candidatar a Deputado Federal ou Estadual?

– Deputado Estadual pelo partido do presidente, amém? Vejo que o jovem irmão já está empolgado com a nossa jornada, certo?

– Não, pastor. Eu só não consigo entender qual a relação entre uma candidatura a Deputado Estadual e a defesa da obra de Deus na Terra.

– Ah, irmãozinho. Sabe o que mais Cristo me disse no encontro comigo? Que eu teria muitos percalços pelo caminho, que eu seria muito alvo do inimigo. Não achei que já ia começar logo cedo. Mas vamos lá, Amém? É o seguinte, o nosso presidente, presente de Deus, precisa de todo apoio. Houve muita reunião com os bispos e lideranças evangélicas e chegamos à conclusão que seria bom ocupar todos os espaços em o nome do senhor Jesus, Amém, mocidade.

– Amém! – a mocidade, já perdendo o brio alcoólico, respondeu num coro desensaiado.

– Mas, pastor. O Estado precisa ser separado da religião. Não acho certo sacerdotes ocuparem espaços públicos deste jeito.

– Você acha errado um homem de Deus ocupar uma cadeira na Câmara, irmão?

– Seria na Assembleia, pastor. Acho errado sim.

– Assembleia! Tá vendo, irmão. Até você concorda indiretamente que eu preciso estar lá, amém igreja.

– Amém, pastor! – a gurizada respondeu com um pouco mais de euforia.

– Não é nada disso, pastor. Mas, vamos lá. Quais as suas propostas?

– Já falei. Continuar fazendo a obra de Deus.

– Me desculpe, pastor. Mas isso não é proposta de Deputado.

– Como não? Vem cá, quem é você que eu nunca te vi aqui? Quem te trouxe?

– Fui eu, pastor – disse Mariana. – A gente estuda junto. Chamei ele pra conhecer a mocidade.

– E você trouxe ele pra cá sabendo que ele é um herege, irmã? – disse bravamente o pastor constrangendo a menina.

– Não sou herege coisa nenhuma, pastor. Sou nascido e criado do cristianismo. Por, justamente, conhecer a palavra de Deus eu acho que deve haver separação entre religião e Estado. As tribos de Israel, por exemplo...

– De que Igreja você é, irmão? Quem é seu pastor?

– Eu congrego com minha família na...

– Não, para. Nem precisa continuar. Estou sentindo o Espírito Santo aqui. Eu estou vendo, mocidade, a alma do nosso irmão está consumida pelo espírito maligno. Ele foi plantado aqui pelo pai da mentira para colocar vocês contra mim!

– Tá repreendido, em nome de Jesus! – bradou o jovem obreiro, já achando que a culpa de tudo era sua, por adulterar o ponche ungido da galera com mais vinho do que deveria.

– Por favor, enviado do Satanás, saia da minha igreja em o nome de Jesus.

O rapaz saiu. Levou uma garrafa de vinho e o violão da igreja. Ninguém reclamou. Mariana o seguiu. Fazia já um tempo que ela estava achando a igreja meio esquisita e já vinha cogitando sair apesar dos pais.

– Irmãos da mocidade, futuro da nossa congregação! – dizia o pastor para a juventude tentando se recompor. – Um filho do inimigo trazido à nossa casa de Deus por uma ovelha desgarrada quis plantar a semente da discórdia aqui. Mas vocês sabem que eu sou um enviado de Deus na Terra, Amém?

– Amém, pastor! – os jovens repetiram com mais vontade.

– Ele pode entender de violão e de garotas, mas de Assembleia eu entendo, Amém? Conto com vocês para me multiplicar os votos em mim assim como Jesus multiplicou o pão e os peixes, Amém igreja?

– Amém pastor!

– Louvado seja o nome do senhor Jesus! – disse o obreiro.

– Obreiro.

– Sim, pastor.

– Traga vinho ungido pra gente comemorar nossa candidatura com a mocidade, Amém?

– Pastor...

– Sim, irmão.

– Acabou o vinho.

– Acabou o vinho ungido?

– Acabou.

 

Rodrigo Slama 26/05/22

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quinta-feira, 5 de maio de 2022

Devolução, revolta, desordem – Deus, o Diabo e a Morte

 



– Javé! Javé, seu cretino! Abra logo essa porta!

– O que foi, cão do inferno? Me deixe em paz. A cada dois mil anos é isso... Não dá um tempo de paz!

– Javé, eu te liguei esses dias, em 2018 depois de Cristo, e você prometeu que ia resolver aquela bronca lá do babaca da Terra.

– E não resolvi?

– Resolveu, mas o filha da puta tá pra entrar lá em casa de novo.

– Lu – tentou, Deus, acalmar o amigo – Eu não tenho nada a ver com isso. Eu já disse que a Morte tem seus próprios planos... eu estou muito ocupado com essa merda de universo pra me preocupar com um infeliz lá da Terra.

– Porra, Javé! Cadê sua palavra?

– Para de me chamar de Javé, Lúcifer, você sabe que não gosto mais desse nome demodê.

– Vai pra uma porra, Deus! Eu não quero aquele arrombado lá em casa. O Adolf desde que chegou me perturba... Veio um tal de Olavo dia desses... puta-que-te-pariu! Num aguento mais essa vida, não!

– Já falei que não posso fazer nada. Sai daqui logo que tenho mais o que fazer... tô com um projeto de dinossauro não-orgânico aqui pra um planeta medíocre de Andrômada e eu estou empolgado.

– Porra nenhuma! O infeliz tá quase entrando e eu não quero!

– Caralho, Diabo, tua obrigação é abrigar uns cretinos... faça seu trabalho quieto!

– Não. Desta vez, não.

– Ah, vai dizer agora que vai se rebelar de novo? Toda era é isso agora?!

– Olha aqui, Javé. Se vira com esse B.O.... Eu mesmo não quero.

– Porra, eu devia ter te feito mortal... eu não te aguento e nem eu posso contigo. Olha, vou chamar a Morte aqui pra resolver isso agora.

 

– Chamou, meu Deus?

– Chamei, sim! Olha aqui, não mata o... Qual o nome do infeliz?

– Jair, Javé!

– Morte, não mata o Jair agora não o que o Cramunhão aqui não gosta dele e tá putinho comigo.

– Senhor, eu não posso adiar mais isso. Eu tenho uma lista enorme de tarefas a cumprir... O senhor sabe que nunca durmo e...

– Sim, eu sei... eu que te fiz, caralho!

– Desculpe, pai. Eu não quis dizer isso, é que...

– Olha, eu num quero esse puto lá em casa não.

– Satanás, se cale que eu vou resolver.

O Diabo, temeroso pela falta de resolução do seu problema, se calou desta vez.


– Morte, por favor, adia essa merda desse homem, por favor.

– Mas, senhor, eu já adiei demais!

– Quem manda nessa merda de Universo?

– O senhor, meu Deus.

– Então faz o que eu tô te mandando, caralho!

– Mas, meu pai, o senhor mesmo me criou para cumprir a minha missão. Eu já adiei muito esse trabalho e...

– Morte, tu não tá querendo obedecer a Deus, é isso? – retrucou o capiroto.

– Com licença, mas eu só devo satisfação ao meu pai.

– Uma porra! Quase todo mundo que você mata vai lá pra casa... eu num aguento mais um monte de alma sebosa, não, seu otário!

– Com licença, senhor Diabo, mas eu só devo me reportar a Deus.

– Então, porra! Faz o que tô te mandando. Não mata esse cara! – disse bem nervoso, o criador de tudo.

– Senhor, me perdoe, mas não posso cumprir esta ordem.

– Ah, fodeu mesmo! Outro rebelde! – disse Deus furioso enquanto o Diabo aguardava impaciente.

– Olha, Deus – disse a Morte. – Eu já estou cansada mesmo dessas ironias, dessas ordens. O senhor não quer, tudo bem? Não mato esse ser humano, mas também não vou mais matar ninguém! Estou entregando meu cargo.

– O quê?

– Isso mesmo, senhor! Me recuso a matar mais qualquer coisa da Terra. Estou me demitindo. Adeus.

A Morte, simplesmente, saiu da sala de reuniões do paraíso deixando tanto o Deus quanto o Diabo perplexos.

 

Rodrigo Slama, 05/05/22

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quarta-feira, 20 de abril de 2022

Clandestino neon

 



– Cara, isso não vai dar certo.

– Mas eu quero, tô pagando!

– Nem tudo é questão de dinheiro. Você tem certeza do que quer fazer?

– Lógico! Tá me chamando de menino?

– Então, não costumo, mas você vai ter que assinar um termo de consentimento.

– Eu assino, porra! Só faz o que eu tô te pagando pra você fazer.

 

Sessão de um sábado inteiro. Fechamento de costas. Um trabalho filha da puta. Termo assinado, pix feito. O otário nem questionou o valor. Foda-se, babaca é pra se foder mesmo.

 

– Ô seu arrombado, o que você fez nas minhas costas?

– Oxente! A tatuagem de Bolsonaro que você pediu.

– Deixe de putaria, você sabe muito bem o que você fez.

– Sei, e daí?

– E daí que eu tô parecendo um palhaço agora. É só eu tá num canto escuro que todo mundo ri de mim, seu galado!

– E?

– E daí que eu vou te processar, seu merda!

– Mas você assinou um termo, tem até foto sua sorrindo depois da tatuagem... agradecimento no Instagram...

– Sim, mas não tava no acordo que você ia botar tinta neon nessa porra, não!

– Não posso fazer nada.

– O quê? Você vai tirar essa merda ou eu...

– Ou eu o que, palhaço? – disse o tatuador enquanto percebia seu segurança chegando mais perto e intimidando o feroz cliente.

– Eu... eu vou te processar!

– Processe!

– Olha... – o cara tava se fazendo de santo se mijando com medo do Armarinho, o segurança. – Quanto você quer para ajeitar esse negócio? Já procurei outros tatuadores, gente que remove tatuagem... todo mundo disse que não tem jeito... que essa sua técnica é exclusiva e ninguém pode fazer nada.

– Eu sei. Só eu sei trabalhar com essa tinta aqui no Brasil...

– Então, por favor, quanto você quer para apagar ou cobrir isso?

– Nada. Eu não vou mexer.

– Mas...

– Eu te avisei que nem tudo era por dinheiro... você assinou concordando que tudo que eu fizesse em você era responsabilidade sua e pedido seu. Não vou fazer nada!

– Por favor! – já se ajoelhando. – Todo mundo tá me zuando... tem foto minha rodando um monte de grupo de WhatsApp. Você precisa me ajudar!

– Eu preciso que você saia do meu estúdio que já já tá chegando cliente.  

– Me ajuda! Às vezes aparece até quando eu estou de camisa se ela for clara. Eu não posso viver com isso!

– Armarinho!

– Sim, chefe.

– Tira esse idiota daqui e não deixa mais ele entrar no prédio.

– Tá certo!


Rodrigo Slama 20/04/22

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quarta-feira, 13 de abril de 2022

Não fazem sentido

 




– Um, dois, três, quadro...

– Quatro, três, dois, um!

– O Capitão já anda brocha...

–  E o Tenente aliviado!

– Um, dois, três, quadro...

– Quatro, três, dois, um!

– O General só quer picanha.

– O Major quer Leite Moça.

– Um, dois, três, quadro...

– Quatro, três, dois, um!

 

– O que tá acontecendo ali, Tenente? Que cantoria subversiva é essa?

– Capitão, os Soldados estão nervosos, senhor!

– Cadê a sua autoridade, Tenente?

– Já ameacei, senhor. Mas eles não me obedecem.

 

Tenente e Capitão foram até a tropa, que seguia rindo depois da corrida e se negava a arrancar os tocos do quartel.

 

– Atenção, pelotão. Sentido!

– Os soldados, os cabos e o Sargento olharam para o Tenente e começaram a rir.

– O que está acontecendo com vocês? Desde quando se negam a respeitar seu Tenente? – bradou o Capitão muito revoltado, mas sem saber como reagir àquela inédita rebelião.

– Ô Capitão, ninguém aqui tá mais a fim de obedecer não. A gente tá de saco cheio já.

– Viu, Capitão?!

– Todo mundo tá preso! Já para a cadeia!

– Ô Capitão, a gente não tá a fim, não.

– É, ninguém tá a fim de ser preso, não.

– É... vem prender a gente, Capitão.

– Vem nada... ele não tá prendendo nem o Tenente – disse o Sargento, que tirou risada de todo mundo e deixou o Capitão vermelho de raiva e o Tenente vermelho de vergonha.

 

Sem saber como reagir para que os praças obedecessem, o Capitão mandou fazer logo um churrasco com cerveja boa para todo mundo, não só mais para os oficiais. Tinha acabado de chegar um camião de produtos para o batalhão, presente de todo mês do presidente militar. O Tenente tomou seus comprimidos azuis, levou mais outros para o Capitão e foram para a caserna enquanto todo mundo se divertia comendo, bebendo e jogando futebol.


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Rodrigo Slama 13/04/22