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terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Suco de Caju

Acontece desde o dia que me perdi na mata da Barreira. Eu estava a procura de caju, pois me bateu uma vontade enorme bem aqui, no órgão dos desejos, de tomar um suco bem gelado. E como painho pegava todos os cajus dos cajueiros do quintal pra vender quase nunca eu tomava meu suco favorito, que ficava ainda melhor quando mainha fazia. Ela peneirava o suco, adoçava na medida certa. E eu, que nunca tive muita paciência, me desesperava pra fazer e beber logo.
Além de recolher os cajus do quintal, meu pai também andava pela mata da Barreira procurando mais frutas para enriquecer a barraca. Ele sabia todas as trilhas, as que eram visitadas por soldados e as que nunca eram lembradas no itinerário dos aviadores. Aprendi com ele a andar por aqueles matos, conhecia todas aquelas trilhas, guardava na memória todas as bifurcações e encruzilhadas, inclusive lembrava ao meu pai do caminho certo quando ele se confundia, por isso não sei como naquele dia eu me perdi.
Provavelmente meu pai e os outros barraqueiros já tinham passado por lá, pois já não havia nenhum cajuzinho. Fiquei encucado, meu pai não tinha me chamado, olha que ele preferia que eu perdesse aula do que deixasse de ajudá-lo a recolher caju, já que nessa época minha mãe tava de resguardo, e os outros meninos eram muito pequenos para começarem a trabalhar. Mesmo percorrendo todos os caminhos que conhecia não encontrava de jeito algum a matéria-prima para o mais delicioso dos líquidos existentes na face da minha memória, o suco de caju.
Andei, andei e andei até me cansar e me perder das trilhas e caminhos conhecidos, logo eu que achava conhecer todo aquele emaranhado de rastros, e o pior é que eu não encontrava nem se quer um caju de fazer remédio. À noite já ia chegando, eu estava tão cansado que resolvi procurar logo uma árvore para dormir. É... é melhor dormir numa árvore! Nunca se sabe o que pode aparecer no meio do mato à noite, uma raposa, um foragido de Alcaçuz... Sei lá! Só sei que naquele momento era melhor dormir numa árvore do que ter que continuar procurando, em vão, o caminho de casa.
Eu me preocupava com mainha, “ela deve estar preocupada comigo”, pensava eu em voz alta. Eu pouco me lixava para o meu pai que só daria pela minha falta no dia seguinte, quando iria me acordar bruscamente para ajudar a recolher caju e outras frutas para vender, e o pior é que eu não podia ficar com três ou quatro cajuzinhos azedos para fazer meu suco. Olha que eu ainda não tinha tomado suco de caju nessa safra.
Meu pai não se importava comigo, nem com minha mãe ou meus irmãos menores, ele gastava todo o dinheiro apurado na venda das frutas com cachaça e rapariga, inclusive ele insistia em me levar consigo para a farra, dizia que eu já era um “homi” e precisava frequentar lugares de tal. A minha mãe, pobre mulher, não o deixava me levar, dizia que cabaré não era lugar para um menino de menos de oito anos. E toda vez que minha mãe ia contra meu pai apanhava muito, bem mais do que nas vezes em que ele a espancava sem motivos, acusando-a injustamente de roubar o dinheiro da barraca, dando-lhe socos e chutes, isso quando não a batia com corda molhada com um nó na ponta.
Meu pai nunca soube, mas eu é quem roubava uns trocados ou outros da barraca dele para comprar farinha para os meus cinco irmãos menores comer, já que se não fosse assim nós iríamos morrer de fome, pois ele, na glória de sua sabedoria, não deixava minha tia trazer um pouco de macaxeira de sua pequena horta de fundo de quintal, meu pai dizia que era dele o dever de manter a família, decerto era, mas hipocritamente ele não cumpria, ele nunca cumpria o que dizia.
Passei aquela noite em claro, com frio, fome e medo. Num raro cochilo, de cima do galho do de um cajueiro sem fruto, sonhei que estava comento muito caju, doce de caju, torta de caju, caju à milanesa... Era tanto caju, mas tanto caju que nem mesmo todas as barracas da beira da Rota do Sol tinham juntas, e no melhor do sonho me veio mainha com uma jarra de suco de caju, naquele sonho eu bebi e comi tanto caju que até hoje, desde aquele dia em que me perdi, acontece de eu ficar com enjoo, e acabando por vomitar, toda vez que sinto o cheiro de suco de caju.

sábado, 5 de dezembro de 2009

Pitombo e a mediunidade

Pitombo, que tinha esse apelido por ser loucamente apaixonado por pitomba e esperava o ano inteiro pra saborear a fruta que amava, sofria com ataques de loucura, como dizia a família, inclusive a mãe, e a vizinhança, que sabia mais da vida de Pitombo do que ele próprio... Aliás, vizinhos têm esse dom, o dom de saber mais dos atos, do coração e da cabeça dos outros, mais mesmo do que qualquer confessor, melhor do que qualquer melhor amigo.
Pitombo ouvia vozes, ou pelo menos era isso o que ele dizia. Quando não aguentava mais, o coitado se debatia no chão, gritava, esperneava segurando a cabeça com força com as duas mãos empurrando na altura dos ouvidos, como se isso impedisse que as vozes de sua loucura gritando desejos impraticáveis ressoassem como sinos de bronze.
Certo dia, um pastor passava pela porta e ouviu os gritos de Pitombo. Ele pediu pra entrar e fazer uma oração, disse que seu deus poderia ajudar aquela alma, que aquilo não era loucura, eram espíritos, ou melhor, obras de um encosto que precisaria ser expulso daquele corpo, para que o seu coração, então, virasse morada do tal deus. Como não tinha nada a perder, a mãe de Pitombo permitiu que o pastor fizesse uma oração. Ele a fez. Porém, como se fosse mentira, Pitombo levantou do chão e agarrou a gravata do pequeno pastor o levando ao enforcamento... A sua sorte foi que os irmãos do endemoninhado chegavam da pesca naquela hora e puderam socorrê-lo.
Com isso, felizmente ou não, descobriram que realmente o problema de Pitombo era de fato espíritos (quem lê até pensa que ele já tinha ido a dezenas de psiquiatras e tudo mais, mas não)... E decidiram levá-lo não só à igreja do pastor visitante, mas também a centros espíritas, a um padre exorcista, e até a uma loja maçônica que não se deu nem ao trabalho de abrir as portas.
Resumindo, já que não posso ou quero me alongar, Pitombo passou a frequentar a igreja do pastor visitante nas sextas, com intuito de descarregar os demônios de suas costas; no sábado, ele ia pro centro participar de uma mesa branca que prometia cuidar dos espíritos de luz que necessitavam de um médium, enquanto que aos domingos ele participaria da primeira missa do dia para que Nossa Senhora o ajudasse.
Com três meses, ele já apresentava melhoras. Não me pergunte por quê. Não se sabe em quais dos templos ele foi realmente ajudado. Os mais leigos dizem que foi Deus, Nossa Senhora ou uma guia espiritual que ajudou Pitombo a se livrar dos males. Eu, que sou apenas o contador dessa história e mais leigo que os leigos que comentam esse caso, digo que foi a fé, mas fé em que eu não sei.

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Dias Ímpares

Paínho me disse uma vez: - Filho não saia de casa nos dias ímpares, você não que ver sua mãe chorar de dor. Nunca acreditei nisso, mas obedecia sem reclamar.
Eu só saía de casa dia 02, 04... enfim... só em dias pares. Odiava os meses que têm 31 dias, pois ficava dois dias seguidos trancafiado.
Paínho nunca me fez entender ao certo o motivo de meu recato nos dias ímpares. O pessoal da escola já sabia, a professora não dava falta e “obedecia” as crendices do meu pai.
No dia 03 de março de 2005 meu querido pai morreu, nesse dia eu não quis sair de casa, estava triste. No dia seguinte foi o velório, ele foi enterrado no cemitério do Alecrim, nós morávamos lá perto. O enterro foi triste, minha mãe chorava assim como minhas tias, só quem não chorava era minha irmã que ria, tadinha! Ela não sabia o que estava acontecendo, mas eu sim. Eu sabia que nunca mais iria ver meu pai, pelo menos eu podia sair de casa todos os dias sem problemas... É! Toda tragédia tem seu lado positivo, assim pensava eu com oito, na verdade quase nove, anos de idade.
Os dias foram se passando, Aninha, minha irmãzinha, perguntava: - Mã, adê Paínho? Minha mãe chorava e dava comida a Ninha ao mesmo tempo. Eu começava a sentir necessidade de sair de casa, mas não saía, só nos dias pares. Era engraçado, meus amigos me chamavam pra jogar bola, e eu sempre dizia que não podia porque Paínho não deixava, mas agora eu poderia sair sem problemas, fosse dia 07 ou 13. Mainha até dizia: - Manuel, vá brincar! Você precisa se distrair, meu filho, vá!
Assim foram se passando os dias, as semanas... E era missa de um mês da morte do meu pai. Eu nunca entendia como ele apenas pediu a mim que não saísse nos dias ímpares, minha mãe ia à feira, Ninha ia à creche, e eu? Eu permanecia com meu pai em casa, ele lendo e estudando, e eu estudando e esperando o dia acabar.
Mãinha deixava Ninha na creche e saía para procurar emprego. Só meu pai trabalhava em casa, trabalhava dia sim e dia não. Ele era vigia! Paínho, no dia que tinha vago, os ímpares, não saía de casa pra nada, o meu velho gostava muito de ler jornais e a revista Época. Eu, de tão traumatizado com a prisão domiciliar, detestava e odiava qualquer tipo de jornal e revista, exceto as de mulher pelada, que Marcelo Henrique levava pra escola de vez em quando.
Mãinha não encontrara emprego. Decidiu fazer bolos e salgados pra vender. Ela pediu empréstimo ao banco, foi até fácil conseguir, pois paínho era funcionário público e mãinha ficou com a pensão, pensão esta que não era suficiente, já que maior parte da renda de Paínho vinha de artesanatos que ele fazia e mandava pras velhinhas do centro comunitário venderem.
Eu tomei o hábito de ficar em casa nos dias ímpares. Ficava sozinho. Uma das coisas que mais odiei nesse período foi quando a televisão pifou. Ah! Como eu fiquei irado, peguei ar, viu? Mas mesmo assim não saía de casa.
Logo me deu curiosidade de saber por que Paínho trocava os dias de folga, que eram sempre os ímpares, pra ficar lendo, lendo, fazendo artesanato dos mais variados, e lendo. Corri até a estante de livros e peguei um que se chamava Memórias Póstumas de Brás Cubas. Ele me chamou a atenção logo na primeira página onde havia escrito mais ou menos assim: “Dedico este livro ao primeiro verme que me comeu...”, não sei... ou melhor, tenho certeza de que não são estas as palavras utilizadas por Machado de Assis, o escritor da obra, sabe? Eu com nove anos e meio achei muito difícil entender aquele livro. Era gozado. As memórias eram do tal Brás Cubas, mas quem escreveu foi Machado de Assis.
Paínho gostava também de ler gibis, eles ficavam na prateleira de baixo da estante. Li todos eles, um mais legal que o outro. Descobri que muitos dos desenhos que eu assistia na televisão, que mãinha disse que ia comprar, porém não tinha comprado ainda, estavam também nos gibis do meu pai. Mas era mais divertido no gibi, pois eu poderia ficar o dia inteiro lendo. Eu fazia muito isso. Eu não gostava de esperar até o dia seguinte para saber o que tinha acontecido com o Super-Homem após ter sido trancado numa cela com grades de criptonita.
Na medida em que os gibis iam acabando, eu ia subindo a prateleira. Lá tinha A Ilha do Tesouro, Peter Pan.... e inúmeros outros livros massas. Quando eu chegava da escola, nos dias pares, eu corria pra estante. A diretora do colégio tinha proibido mãinha de me deixar levar livros pro colégio, pois eu só queria ficar lendo na sala de aula.
Conforme os anos foram passando, eu fui lendo os livros de paínho, que agora eram meus. Mãinha dizia que era minha única herança. Ninha foi crescendo e eu fui a ensinando a gostar de gibis. Ela adorava ler gibi. Num belo dia quem eu encontro no meio da prateleira do meio? Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Eu o segurei frente aos olhos por alguns segundos, longos e admiráveis segundos e o pus contra o peito pra pensar...
Decidi por fim ler o tal livro que eu não consegui passar da primeira página. Sentei na cadeira de balanço de paínho, que ficava mais ou menos na frente a estante de livros, e comecei a ler aquela obra.
Li novamente a dedicatória, li a primeira, a segunda e todas as páginas daquele livro. Passei a manhã de um dia ímpar lendo aquele livro. Pense num livro massa! Machado de Assis foi mesmo o maior gênio da literatura nacional, e Brás Cubas, aquele malando! Começa o livro contando como foi o velório, seu próprio velório. A gente se pergunta: Se já sabemos desde o início que ele morreu que graça tem? Não vou dizer! Leia também Memórias Póstumas e você vai saber.