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sábado, 8 de setembro de 2012

O episódio da lâmpada



Estava cumprindo a quarentena no hospital onde acordei após meu sono de dez anos. Era tardezinha. Eu acabava de tomar o chá de erva cidreira que me deram acompanhado de um belo pão com manteiga, um pão quentinho como eu não comia fazia tempo – isso sem levar em conta os dez anos – é que mesmo antes de dormir eu já desejava um pãozinho desse mesmo jeito, que me fazia parecer ter voltado à infância... Comer aquele pão me lembrava bons momentos, uma simples mistura milenar de trigo e água que era incrementada pela minha mãe com a quantidade exata do recheio perfeito para um pão quentinho, a manteiga.
Decidi passear pelo hospital, conhecer gente nova. Caminhando pelos corredores aleatoriamente olhando para as fotografias nos murais, nos recortes de revista que falavam sobre os pacientes importantes e desimportantes que haviam sido “salvos” naquele centro de ajuda, como ainda eu não tinha visto a não ser por aquelas séries americanas que passavam na televisão antes da Rede Globo começar a fazer minisséries tão boas como as produzidas nos Estados Unidos.
Sentado, calado e olhando para o teto; foi assim que estava ele, Antônio de Macedo e Maria, pelo menos foi o que a enfermeira me disse quando a indaguei sobre aquele sujeito que me fez dar tantas gargalhadas que quase não consegui escrever este capítulo só por lembrar aquela cena de alguns muitos anos atrás.
Disse olá e me apresentei da forma mais simpática possível. – E você, como se chama? – perguntei com toda delicadeza e respeito, pois não sabia como iria reagir aquele sujeito meio... pensativo, talvez. Porém ele nada me respondeu, apenas me olhou, não nos olhos, e pôs-se a voltar a admirar o teto, que era tão comum como o teto da sua casa, a não ser que você more numa casa sem forro, num palacete ou debaixo duma ponte de concreto, com todo respeito.
– Hei, senhor! – chamei pela segunda vez, desta cutucando-o no ombro. Ele, além de não responder, não me olhou, nem se moveu como no primeiro contato.
– Amigo, vamos conversar! O gato comeu sua língua? Vamos cara... vamos bater um papo, eu lhe pago um cafezinho... – ele nem deu atenção.
Percebi que poderia estar falando com uma pessoa simplesmente grossa, que não gostasse mesmo de conversar. Aquele cara poderia estar me esnobando, logo eu que fui tão amistoso, que já tinha feito amigos em todo o andar e metade do andar de cima ser ignorado por alguém que nem olhar nos meus olhos olhava...   
 – Vamos comer a lâmpada? – perguntei tentando descontrair, deixá-lo mais a vontade.
– O quê? – ele perguntou com os olhos arregalados, olhos de quem está sendo perseguido por policiais militares armados e despreparados.
– Vamos, me ajude a puxar este banco... Nós vamos comer esta lâmpada e vai ser agora­ – me levantava como se realmente quisesse a lâmpada.
 Eu já tinha percebido que ele era um doido e quis me divertir. Mas ele se agarrou ao banco e disse:
 – Não! Não! Não!... Não quero comer a lâmpada! Ela deve ter gosto de cebola. Não me dê por favor, por favor, por favor, por favor, por favor...
Nessa hora o doido começou a chorar enquanto eu já ficava sem ar de tanto rir. Os outros pacientes, entre eles deveria estar o segurança da rodoviária, caíram na gargalhada assim como eu. Aquela imagem era mesmo engraçada. Um doido, que deveria ter uns setenta anos, chorando como um bebê chamando a mãe para que ela não o deixasse comer aquela lâmpada, que ora devia ter gosto de cebola, ora devia ter gosto de vaga-lume, causando-o, assim, azia, que ele chamava de vulcãozinho no bucho.
Eu tinha que ter pedido uma cópia da fita à segurança do hospital, só para ver o povo todo caindo no chão, inclusive alguns enfermeiros, quando ouviam: – ­“Eu não quero ter um vulcãozinho no bucho, mãe! Eu não quero...” – e mais – “isso deve ter gosto de cebola crua, e eu não como cebola crua, porque cebola crua é ruim, é por isso que eu não como cebola crua, se eu achasse bom cebola crua eu comia cebola crua, mas como eu não gosto de cebola crua, eu não como cebola crua, porque cebola crua é ruim...” – O pobre dizia e chorava, aos soluços, ao mesmo tempo. Mas aí chegou uma psicóloga metida a dona da verdade, e do doido, acabando com a brincadeira.
Daí em diante, eu não precisava sair à procura de gente para conversar, as pessoas é quem me puxavam assunto partindo, é claro, da história da lâmpada com o doido Antônio de Macedo e Maria.
  

Trecho de Após o sono de dez anos
romance - Rodrigo Slama