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domingo, 13 de fevereiro de 2022

Esse cu não tem dona!


 



Mais um caso difícil para o juiz. Depois da repercussão do “Pênis de duas cabeças”, aparecem duas irmãs siamesas que compartilhavam o mesmo corpo e o mesmo namorado. Com vinte e cinco anos, já estavam acostumadas à vida, afinal, era a única forma de viver que conheciam.

Há quase um ano com Josiel, Larissa queria sexo anal, e ele estava animado com a ideia. Mas Letícia se recusava. Por algum motivo, Letícia só sentia dor enquanto Larissa sentia o prazer. Difícil para a medicina explicar esse fenômeno. Aos dezesseis, quando começaram a ativar sua vida sexual, tentaram com os ficantes da época. Sim, elas tinham dois ficantes. Eram duas, afinal. Numa tentativa de agrado mútuo, quiseram experimentar dar o cu, mas Letícia não gostou. Tentaram com os dois meninos, mas nenhum agradava a menina da direita. Criou-se, ali, mais que uma experiência, mas um trauma.

Em miúdos trocados, resolveram que não iam mais namorar mais de um. Afinal, era apenas um buceta para dar conta. Depois de vários relacionamentos frustrados, afinal a maioria dos homens e mulheres com quem se relacionavam estavam mais em busca de realização de fetiches ao invés de um compromisso sério, conheceram Josiel num aplicativo de relacionamentos. Para evitar a fetichização do corpo delas, resolveram colocar apenas fotos de rosto. Quando Joesiel descobriu, depois de algumas muitas semanas de conversa, já estava apaixonado pelas duas, não tinha como voltar atrás. A idealização que tinha do objeto do seu amor era maior que qualquer corpo, superior a qualquer sobra ou falta de algo.

As duas amavam Josiel e Josiel as amava como uma só. Não tinha tabus entre eles além do sexo anal proibido por Letícia. Não adiantaram as promessas, os argumentos de tentativas. Nada fazia com que Letícia liberasse o ânus compartilhado para penetração. Josiel, é claro, queria... e muito deste querer era fomentado por Larissa, doida para ser comida por trás novamente, agora, pelo cara que ela gosta. Estava cheia de expectativas.

– Juiz, o cu também é meu... eu tenho o direito de dar pro meu namorado se eu quiser, não? – perguntou afirmativamente a Letícia.

– Não, seu juiz. Ela não sente a dor que eu sinto. A gente já fez exame, mas nada explica. Ela não tem carinho pelo cu dela porque o cu dela é meu!

– Calma, Larissa! – pediu simiexaltada a irmã. – Esse cu não tem dona!

 

Rodrigo Slama 12/02/22

 *Imagem do Google

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quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Amarga Odontíase

 

 


Infelizmente, terminou a pandemia.

A gente já pode sair sem máscara. Ninguém usava mais máscara mesmo! Um bom bocado de vacina deu certo e logo a imunidade da população mundial chegou a padrões seguros. Enfim o normal voltava. O velho normal, com bar, escola, terreiro cheios. No Rio de Janeiro, as escolas de samba preparavam os carnavais, os maracatus ensaiavam em Pernambuco e o Amazonas prometia uma Festa de Boi como nunca se viu.

Mas Josefa se lamentava. Ninguém entendia direito e muito poucos desconfiavam. Pra ela, infelizmente, a pandemia tinha terminado.

Com quase sessenta anos e poucos pés de galinha, mais do que a sua melanina, a falta de sorriso contribuía para a economia de marcas de expressões no rosto. Desde a adolescência, se acostumou a pouco rir, a pouco chorar, a pouco manifestar qualquer sentimento. Na verdade, Maria Josefa tentava não alimentar nenhum sentimento... bom ou triste, alegre ou ruim, nada que sentia era manifesto... tudo guardado, embalado, escondido.  

Mas durante um ano, Josefa estava visivelmente mais alegre. Seus olhos sorriam. Até mais rugas apareciam. Gente parente que nunca tinha ouvido sua risada, acostumava-se, inicialmente com certa desconfiança, a reconhecer sua gargalhada.

“É falta da igreja”, disse um sobrinho ateu. “É nada, deve ter arrumado um pé de lã”, retrucou o marido covarde. “Gente, deixa ela. Ela só tá feliz”, respondeu a filha mais nova que fazia faculdade.

A felicidade, porém, estava ameaçada. A pandemia tinha acabado. Todo mundo saía sem máscara e Josefa tinha que sair assim também. Sem máscara, não sorria; sem máscara, tinha vergonha, sabe? Tinha vergonha.

Rodrigo Slama 14/10/20


Imagem do Google (Revista Exame) 

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Fake Plastic Dicks

 


Foi a pandemia.

Nunca gostei muito de computador, celular pra mim era pro básico. Pornografia então, jamais.

Mas foi a pandemia, eu juro!

Eu tinha um namorado, ficamos sem nos ver por quatro meses. No início, ah, no início foi duro, mas me acostumei. Me acostumei comigo, me acostumei com o sexo virtual, meus dedos, meus brinquedos que chegaram atrasados do Mercado Livre.

Aí todo mundo começou a relaxar. Estavam abrindo bares, estavam abrindo igrejas. Estavam, olha!... Estavam abrindo shoppings! Tu acha? Eu deveria encontrar o Maurício. Já eram cinco meses incompletos de isolamento. Eu nem sabia mais qual era o seu gosto. Nem meu gosto em sua barba, só meu gosto nos meus dedos.

Aqui em casa era foda. Meus pais, mesmo liberais, viviam em casa. E ainda tinha Vó Petra, não, na boa, não rola. E eu sabia que queria soltar todos os gritos e gemidos sufocados pelo isolamento. Na casa dele era foda, ele morava com o pai, bicho alcóolatra, sabe, rolava não.

Motel? Cê tá doido? Imagina se alguém infectado usa antes da gente. Não quero adoecer. Vovó é idosa, esqueceu.

Tá bem, tá bem. Vamos pro motel amanhã. Você passa aqui e me pega. Não, Maurício, não vou de Uber, você passa aqui no seu Uber e me pega já que seu pai bateu o carro. Não. Já disse que não vou pegar Uber sozinha pra ir pra motel. Não estou nem aí, o problema é seu.

Pernoitamos no motel. Foi uma merda. Acho que Maurício esqueceu como se trepa ou então fui eu. Ele gozou três vezes. Na terceira durou mais de meia hora, certeza, mas não faz diferença.

A gente ainda tentou outras vezes. Eu fui enrolando também. Disse que tava com Covid, disse que tava com enjoo, disse que tava com daltonismo.... Olha, eu enrolei como podia até não poder mais.

Acabou a pandemia, mas não quero saber de ninguém, na boa. Nem homem, nem mulher. Acho que fui eu, sabe. Acho que foi a pandemia.

Sim. Foi a pandemia.

- Maria Tereza, encomenda pra você!

Já vou, mãe. Peraí, não abre o pacote!

 

Rodrigo Slama  26/08/2020

sábado, 22 de agosto de 2020

O Beco

 

Era uma vez uma cidade à beira mar. Tinha dunas, tinha Buggy, tinha um monte de coisa que não serve pra nada, mas todo mundo gosta. Mas tinha uma coisa boa. Boa de verdade, sem hipocrisia, enfim. Tinha. Tinha um povo, um povo meio feliz, meio reacionário, meio bolsonarista, mas meio feliz às vezes.  

Mas tinha o Beco, ah... tinha o Beco, tinha o Samba. Cerveja, Loló, Brisadeiro? Quero! Tinha uma galera que sempre se via, nem se conhecia, sempre se encontrava, mas se via. Via sempre. Toda quinta, todo sábado ou toda quinta e sábado, mas tinha.

- Boy, vai querer pó hoje?

Quero não, mano, quero nada. Quero curtir.

Olha ela lá, a negra. Linda. 

Também tem o ex da ex, a ex com outro, a futura desconhecida que amo sozinha, tem ela com outro também, tem ela com outra, olha! Tudo. Tudo tá lá. Não! Tudo tava lá. Hoje mais nada, nem eu. Não estou, nem fui, ninguém está ou foi. Só o vírus vai.

Não tem samba, não tem alegria, não tem Devassa por 4? Tá caro, perto de Neide é 3. Não tem mais nada.

Meladinha? Tem não, amigo. Nem tenda eletrônica, nem vômito no Uber e o Uber reclamando que preferia vômito do que nada. Nada. Só vírus.

Como me viro? Saber!?

- Mano, tudo tá voltando, o Beco vai voltar.

Vai nada. Agora não. Não tão cedo. Duvido este ano. Nada. Nada não. Nada mesmo. Nada do mesmo jeito. Será que um dia volta? Claro que volta. Volta mesmo? Vota sim. Sei lá. Muito tempo. Qual ônibus é mesmo? Quanto dá o Uber? O quê? Vocês não vão rachar? Vamos, eu pago. Não? Ninguém tá indo? Só o vírus mesmo? Real? Real e oficial? Real e oficial!

Poxa era assim que ela dizia, era assim a sua gíria.

- É, mano, mas nem ela tá lá!

E tá onde?

- Eu sei lá. Tu não sabe! Não sabe?

Sei não.

- Mas e a senhora?

Que senhora?

- A senhora que te acompanha desde o nascimento?

Ah, tá aqui ué?

- Ela tá lá no Beco também?

Claro. Vai sempre comigo onde estou. Desde que o samba é samba.

- Verdade. E você gosta?

Sei lá. Acho que não. E que vou fazer?

- Sei lá. Tu sabe?

Como?

- Sei lá. Tem saudades?

De que?

- Do Beco e dela, ué.

Claro. Do Beco, dela, da senhora. Tenho saudade de tudo.

- Mas ela nunca vai voltar e a senhora tá sempre contigo.

Sei lá, cara. É assim. Pronto.

- E tá apavorado?

Não mais. Só triste mesmo.

- Há. Então tá bom. Conta mais então.

Era uma vez uma cidade à beira mar. Tinha dunas, tinha Buggy, tinha um monte de coisa que não serve pra nada, mas todo mundo gosta. Mas tinha uma coisa boa. Boa de verdade, sem hipocrisia, enfim. Tinha. Tinha um povo, um povo meio feliz, meio reacionário, meio bolsonarista, mas meio feliz às vezes. Tinha o Beco...

 

Rodrigo Slama 22/08/20


*Imagem do Google 

quinta-feira, 23 de maio de 2019

A nobre arte de Ígor





– Um dia eu ainda saio dessa cidade.
– Pra onde você pretende ir?
– Pra qualquer lugar. Só não quero ficar aqui.
– Como assim? Por quê?
– Aqui, meu amigo, não tem nada de bom. Ninguém reconhece meu esforço, nenhuma mulher quer casar comigo...
– E em outro lugar seria diferente?
– Com certeza. Na capital, iriam perceber que minha arte vale mais do que pensam.
– Desculpe, mas eu não acho que na capital alguém vá gostar de colagem com feijão.
– Como assim?
– Ígor, só quem cola feijão em desenhos com papel carbono são crianças do jardim de infância. Por isso ninguém leva a sério o que você chama de arte.
– Até você? Há vinte anos eu utilizo esta técnica em minhas artes plásticas.
– E qual foi a última vez que alguém elogiou?
– Não lembro. Justamente porque aqui ninguém me valoriza...
– Não é isso. Só criança faz colagem de feijão.
           
Até mesmo o melhor amigo foi duro ao criticar sua arte. Desde o Jardim da Infância, Ígor fazia colagens de feijão preto em desenhos copiados com papel carbono. Talvez se ele aprimorasse a técnica, se usasse vários tipos de feijão ou fizesse os desenhos à mão livre, ele poderia ter algum reconhecimento, mas não. O artista incompreendido não abria mão da técnica que aprendera quando nem ainda saber escrever o nome.
Um dia, tomou coragem. Foi para a primeira cidade grande que conseguiu. Lá, expôs em praça pública as suas colagens. Algumas pessoas paravam para olhar, teve uma turista estrangeira que tirou fotos, mas ninguém, ninguém comprou nada. Ninguém nem elogiou.
Ígor decidiu mudar a estratégia. Foi para a frente do museu, quem sabe, ali, gente que entende de arte de verdade não iria reconhecer os seus talentos? Nada adiantou. O dinheiro começou a acabar. O artista chegou ao ponto de não produzir mais quadros novos para economizar feijão. Já estava pensando em voltar para o interior quando o melhor aconteceu.
Às nove horas da manhã de uma terça-feira, um carro dirigido por um juiz embriagado o acertou. Ígor morreu, mas, graças à nobre arte que o levou àquela calçada, o juiz foi condenado a se aposentar com salário integral e a pagar vinte cestas básicas, que atenuaram a fome algumas famílias da periferia.


2017

segunda-feira, 24 de setembro de 2018

O cidadão de bem



– Essa cidade tá muito perigosa!
– O país todo tá. Pega.
– Mas tá foda, pô. Esses dias meu pai foi assaltado, levaram o carro dele.
– Foi mesmo? Como ele tá?
– Tá puto... não tinha seguro e encontraram o carro batido. Pega.
– Peraí... Mas ele sofreu alguma violência física?
– Não, pô... mas é foda.
– É...
– Se o cidadão de bem andasse armado... isso não acontecia. Pega.
– Que conversa... Toma.
– Se meu pai tivesse armado, não teriam roubado ele.
– Como que foi o roubo?
– Ele tava entrando no carro e renderam ele.
– Por trás?
– Foi, pô... foda. Oh, pegaí.
– Mas se ele tivesse com arma na cintura do que iria adiantar?
– Se o bandido soubesse que todo mundo podia tá armado não iria assaltar. Passa aí.
– Ou então já ia chegar atirando.
– Tu acha?... Toma.
– Tô de boa. Claro!
– Depois que inventaram esse negócio de Direitos Humanos só a gente que se ferra... bandido tá tudo solto. Apagou.
– Toma o isqueiro. Né assim não! Direitos Humanos não defendem bandido não... na Declaração só diz que todo mundo tem que ser julgado de acordo com as leis.
– Lei só serve pra bandido... Dá pra conversar com você não, mano!
– Pô, negão, pensa um pouco! Tu acha que andando armado você vai tá mais protegido?
– Se o bandido souber que todo mundo anda armado... não vai assaltar. Tem comida aí?
– Tem pão com mortadela lá na cozinha... pega lá.


* Baseado (rs) em fatos reais...

sábado, 2 de setembro de 2017

Um pênis de duas cabeças

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- Toda noite eu acordo com sua mão no meu pênis. Aquilo já estava virando um pesadelo. Eu não aguentava mais ver o meu próprio corpo ser violado daquela maneira. Não queria ser tocado daquele jeito, não queria ser estimulado por ele, seu juiz...
- Toda noite é a mesma agonia. Eu demoro a dormir... tento dormir depois dele, mas ele sempre dá um jeito de acordar e me masturbar enquanto eu durmo. Ele diz que o meu pênis é dele, que ele tinha direito sobre o meu corpo. Mas isso é um absurdo! Eu não aguento mais aquilo e, por isso, procurei a justiça...
O outro ouvia tudo aquilo calado.
- E parece que tudo piorou. Durante o banho, com a desculpa de limpar, ele aproveita e me toca daquele jeito imundo. Eu reclamo, ele para, mas volta. E ainda vê pornografia na minha frente... eu nunca gostei disso, seu juiz, mas ele sempre foi tarado!


No julgamento, o juiz analisa o caso dos irmãos siameses que dividem o mesmo pênis. 

sexta-feira, 25 de agosto de 2017

O rolezeiro

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– Bora, cara! A gente vai se atrasar.
– Calma. Tô terminando aqui.
– Que merda, velho. Parece uma mulher se arrumando... puta-que-pariu!
– Parceiro, eu tô terminando aqui.

Na festa, todas mulheres olham pra ele. Estava de bermuda branca, camiseta de marca comprada no camelô do Alecrim, elásticos coloridos num aparelho que não precisava usar, óculos espelhados - apesar de ser noite - e um corte de cabelo bem peculiar.
– Tá vendo, parceiro? Todas as mulheres estão me olhando...
– Percebi.
– Quer fazer uma aposta?
– Que aposta?
– Quem pegar mais mulher aqui na festa come o cu do outro?
– Como é? Olha as ideias!
– Bora? Sabe que vai perder, né?
– É impossível você pegar mais mulher que eu aqui.
– Então bora apostar o cus!
– Tá apostado, então.

Duas horas depois, a Festa dos anos 80’ terminou. O rolezeiro não pegou uma mulher sequer. O amigo, que não estava interessado em perder a aposta, mas, ao mesmo tempo, não tinha pretensões de ficar com muitas meninas, ficou com uma garota com quem trocou telefone e promessas de reencontros.

– Porra, parceiro... Não sei o que aconteceu hoje. Toda festa que eu vou as minas ficam loucas comigo.
– Mano, você tem que analisar cada situação. Tem que saber qual é o público da festa. Tava na cara que você não ia pegar ninguém vestido desse jeito.
– Foda. Agora já era, vou ter que te dar o cu.
– Relaxa, cara. Quero comer teu cu não.
– Como é?
– Não quero comer teu cu! Só apostei porque sabia que você ia perder.
– Que papo é esse, parceiro?
– Ué?

– Aposta é aposta... pode botando esse pau pra fora e comendo meu cu, parceiro!

sexta-feira, 1 de julho de 2016

Beatriz e Tiago



Aos quatorze anos, ele não era um adolescente normal como todo adolescente deve ser. De manhã, ia para a escola. Não sentava nem na frente e nem no fundo, não ficava quieto, mas não era do grupo da conversa. À tarde, ele ia pro inglês e aprendia novamente o que via nos jogos. Além do inglês, fazia judô. Nunca passou da segunda faixa, mas não achava tão ruim usar o quimono. À noite, revezava seu tempo entre jogos on-line e o pornhub, mas estudava quando estava perto das provas, sobretudo para as provas de recuperação.
Nunca namorou, mas era seu sonho. Todas as noites, antes de dormir, pensava na menina mais bonita da sala, que era disputada pelos caras mais populares das festas que ele ia e nas festas às quais ele não era convidado. Nos seus devaneios, eles eram um casal. Namoravam há tempos, comemoravam datas importantes, trocavam presentes... Na vida real, eles mal se falavam. Pertenciam a grupos tão distintos que não tinha nem como conversar.
Beatriz era inteligente, linda e gostava de ler. Tiago era medíocre, pálido e assistia a filmes dublados. Ela era de classe média, ele era riquíssimo. Um dia, mandou flores, mas não assinou o cartão. Quem entregou foi o coordenador da escola que disse ser de um admirador secreto. Durante as noites, ele sonhava antes de dormir. Durante as noites, ela estudava antes de sonhar.
Aos trinta anos, Beatriz realizará todos os seus sonhos.  

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Rastro de feijão descomido






Fazia três dias que eu não cagava. Eu nunca tinha ficado entupido antes. Na verdade, o meu problema sempre foi o contrário... eu, geralmente, cago demais. O problema é que minha mãe fez uma farofa muito boa no natal e sobrou quase tudo. Como adoro farofa e ninguém aguentava mais comer resto da ceia, me esbaldei naquele balde de farofa temperada. Comi tanto que a merda ficou presa no meu intestino e não saiu nem com reza braba.
Meio envergonhado, pedi ajuda à minha mãe. Me deu laxante. Um quarto do recomendado. Pense num laxante porreta! Estava no curso. Tinha tomando o remédio na hora do almoço, antes de sair. Durante as primeiras aulas, não senti uma pontada sequer no bucho. Achei que não iria fazer efeito e teria de tomar de novo. No intervalo, aproveitei a caminhada até a cantina para peidar um pouco... já estava começando a me sentir aliviado, mas vontade de cagar que é bom nada. Bom... que eu cagaria só em casa, no conforto do meu sanitário.
Fim da aula. Fui sem muita pressa, mas sem a calma de sempre, para o ponto de ônibus costumeiro. Caminho até em casa era breve, mas que se alongava devido ao horário, ao trânsito e à quantidade de pessoas espremidas no coletivo. Consegui pegar lugar sentado. Quase sempre eu conseguia, porque a o curso ficava antes do centro, e lá que subia muita gente. Sentei na janela, pouco antes do meio do ônibus. Ouvia Kate Perry no celular. Gosto muito de Kate Perry, quase tanto quanto de Motörhead.
Estava quase na metade do caminho quando comecei a ouvir um ronco na minha barriga. Não era fome, tinha comido uma coxinha com bastante catchup, mostarda e uma maionese que que ficava quase todo horário de funcionamento da cantina do lado de fora da geladeira. Sabia que aquele ronco significava merda. Comecei a rezar para o ônibus chegar logo. Sabia que iria demorar ainda mais quase uma hora para chegar ao meu destino. A cada freada, era um susto diferente. Queria peidar, mas tinha medo. Queria cagar, mas não podia. Pensei em descer do ônibus e procurar algum banheiro, mas acreditava que conseguiria chegar em casa na hora. Eu tinha de chegar em casa na hora!
A velha que estava sentada do meu lado desceu, sentou uma menina bem bonitinha com a camisa do Helloween. Eu já estava sem os meus fones de ouvido, porque a Kate Perry estava me deixando mais nervoso. Percebi que a menina ouvia Mc Ludmilla. Ela devia achar que a camisa era da festa de halloween, nem devia saber que é de uma banda. No tempo em que pensava nisso, me senti um pouco aliviado, até que o primeiro peido saiu. Queria muito que ele não tivesse sido barulhento e molhado, mas já era. Teria de segurar o cu agora. Uma freada era uma mancha além da minha cueca, mas na minha dignidade.
Pelo jeito, tinha saído mais merda do que eu pensei. Toda vez que o ônibus passava num quebra-molas, eu me sentia escorregando da cadeira. Até que a vontade apertou de vez. Eu já estava preocupado, mas a sensação era de que eu iria explodir pelo furico e eu tive que desapertar o caneco. Saiu merda. Saiu muita merda. Saiu mais merda do que alguém em plenas condições físicas poderia produzir. Era tanta matéria orgânica que eu sentia escorrendo pelas minhas pernas, entrando nos meus tênis e deixando no ar um cheiro de peido no banho incontrolável.
As pessoas começaram a tapar o nariz. A menina ao meu lado disfarçou e pediu parada. Não tinha mais gente de pé, mas as pessoas que estavam sentadas logo se levantavam para abrir as janelas superiores. Alguns arriscavam a colocar a cabeça para fora enquanto o casal de idosos atrás de mim comentava que esse governador desgraçado não estava arrumando o esgoto da região.  Nesse momento, liguei o botão do foda-se. Já estava cagado mesmo, se tivesse que sair mais, que saísse. E saiu. Continuou saindo mais e mais por alguns segundos, talvez minutos.
Enfim, chega meu ponto. Entre o ponto e a minha casa ainda precisava andar uns oitocentos metros. Levantei a alça da minha mochila para ela não encostar na minha calça e segui meu caminho. Os meus pés, mais o direito que o esquerdo, estavam, literalmente, encharcados de bosta. Nos primeiros cinquenta metros, fui deixando um rastro grosso de bosta que se estendeu mais modesto até a porta de casa. Parecia uma vaca, mas ao invés de capim saíam uns carocinhos de feijão.
Cheguei todo cagado. Minha mãe quase vomitou. Mandou eu tirar a roupa no quintal mesmo. Não deu pra reaproveitar a cueca. Não compensava lavar. Enquanto eu seguia para o banheiro, minha mãe tapava o nariz com uma mão e empunhava o cabo de uma vassoura na outra. Ela pegou minhas roupas, colocou no tanque e deixou a água correr como se não houvesse conta no fim do mês e tacou todo tipo de produto de lavanderia em cima.
Depois de estar de banho tomado, comecei a rir da história. Pensei como as pessoas do bairro iriam reagir ao ver o rastro de feijão descomido que jamais levaria para uma casa de doces, mas para o primeiro banheiro químico do carnaval de Olinda. E fiquei com certa pena do cara que iria limpar o ônibus depois e encontrar aquela poça de merda fedida nos pés do quinto assento do lado da janela direita. 

sábado, 31 de outubro de 2015

Pastor 03



– Pastor!
– Você novamente, irmão? O que foi desta vez?
– É que eu estive pesando...
– É justamente este o seu problema, meu amado! Você pensa demais... deixa as postas de sua mente aberta para o inimigo lhe colocar dúvidas sobre a sua fé! Amém?
– Amém. Mas, pastor, eu oro, faço jejum, contribuo com os dízimos e ofertas, compro todos os livros da igreja... invisto muito dinheiro na Obra do Senhor e não me sinto pleno!
– Meu irmão, esta sua inquietude só quer dizer uma coisa!
– O quê?
– Você precisa participar mais da Obra do Senhor! Amém?
– Amém. Mas como, pastor?
– Você precisa, além de dinheiro, dar o seu tempo para Deus. Por exemplo, o seu dia tem vinte e quatro horas, certo?
– Certo.
– Você dá duas horas e quarenta minutos para Deus?
– Não, pastor... certamente, não!
– Então! Você precisar ser obreiro em nossa igreja! Tenho certeza que o seu coração se encherá de Jesus e você não pensará mais em nada que lhe tire o foco em Cristo. Amém?
– Amém.
– A partir de amanhã, você pode sair do seu trabalho e vir direto para a igreja. Você vai começar pela provação da faxina. Amém?
– Amém...
– E todo final de semana você vai passar aqui!
– Mas e quando eu vou me divertir?
– Amado, você se divertirá aqui na igreja mesmo! O Senhor habitará o seu coração e lhe dará a alegria de Davi.

***
Numa reunião com os obreiros...

– Olha aqui! Quero saber quem foi o safado que pegou a grana dos dízimos e ofertas do culto de ontem à noite! Está faltando muita coisa! Quem era o maldito responsável pelo apurado de ontem?
– Era eu, pastor! Eu dei parte do dinheiro para uma irmã que passava necessidades... ela me disse que estava sem poder comprar alimentos...
– Maldito dos infernos! Como você, seu cretino, ousa tocar suas mãos pecaminosas no meu dinheiro!
– Achei que o dinheiro fosse para obra de Deus!

– E é! E não tem nada que dar para as pessoas! Elas que têm que nos pagar! Maldito seja você! Eu te amaldiçoo, ialamá baloquenchë, jucunataque! 

domingo, 25 de outubro de 2015

Meninas, mulheres




A primeira vez, me senti suja. Ele levantou o meu vestido e tocou em mim. Resisti, ameacei gritar. Foi embora. Não sabia se agradecia a Deus pelo livramento ou o culpava por ter permitido aquilo. Chorei, tomei banho. Enquanto lavava os meus seios ainda muito pequenos que tinham despertado o desejo imundo dele, pensava se aquilo aconteceria de novo.
Da segunda vez, ele veio preparado. Tapou minha boca antes que eu pudesse gritar chamando por alguém que estivesse distante. Tudo era longe. Com a mão livre, ele apertava forte os meus peitos, e enquanto eu sentia seu pau endurecer, ele me alisava entre as pernas. Me lambia o pescoço e cheirava a mão. Um barulho vindo de fora interrompeu sua festa.
Eu pensava o que tinha feito contra Deus para que ele permitisse isso. Antes que eu pudesse pensar em contar para alguém, ele veio até meu quarto à noite. Me ameaçou. Mataria a minha mãe, o meu irmão e depois me mataria. Apertou meu pescoço até me sufocar para provar o quanto sua palavra valia. Chorando, não produzi nenhum som e toda hora tentava não olhar na cara dele. Rezei, mas não dormi.
Desatenta, quebrei um prato enquanto preparava o almoço. Mais do que por esta bobagem, apanhei com cinto, levei murro. Me chamava de puta, dizia que eu era uma vadia. Se minha mãe não tomasse conta, acabaria engravidando de um vagabundo. Chorei, mas sem fazer barulho. Eu tinha ódio, eu tinha muita vontade de fugir, mas não tinha para onde. Xingava Deus por isso.  
À noite, naquele mesmo dia, eu ainda estava toda marcada por conta da surra. Fui dormir cedo, sono leve, preocupado. Meu coração apertava, eu remoía uma culpa que achava ser só minha. Senti aquela mão na minha bunda. Ele puxou minha calcinha, abriu minhas pernas e me penetrou. Sem soltar um pio, tentando nem chorar, virei mulher aos dez anos de idade. Não sei se doía mais lá embaixo ou no meu coração. Se eu pudesse, eu não o mataria. Eu mataria Deus por isso.
Minha mãe quase não falava comigo. Quando falava, era pra mandar fazer alguma coisa. Eu queria contar pra ela, mas achava que ela já sabia. E toda noite ele vinha no mesmo horário. Fazia sempre quase as mesmas coisas. De vez em quando, mandava eu fazer algo nojento. Sem soltar um som, fazia o que ele mandava. Durante o dia, ele me xingava. Não deixava mais eu ir pra escola, porque lá eu viraria puta. Puta era a palavra que mais usava para me agredir. Mal sabia o que era puta, mas eu preferia ser qualquer coisa do que ser eu.


terça-feira, 22 de setembro de 2015

Pastor 02




– Pastor.
– Sim, meu filho.
– Eu estou com um dúvida.
– Novamente, irmão?! Vejo que o inimigo está implantando a inquietude no seu coração. Se o seu coração não tem Deus, o Diabo toma conta, Amém?
– Amém. Pastor, é justamente sobre o coração que eu gostaria de falar.
– Pode falar, irmão! Deus me deu o dom da palavra, encontrarei a palavra certa para lhe confortar, Além?
– Amém. Pastor, é que eu estou com dúvidas sobre a minha orientação sexual.
– Como assim, irmão?
– Faz um tempo que eu tenho desejos por homens. Vivo trocando de namorada e não consigo gostar de nenhuma.
– Isso é coisa do Satanás! Isso é coisa daquele que quer lhe arrastar da igreja para te jogar numa sauna cheia de veados. O Satanás quer que você gaste todo seu dinheiro com perfumes, roupas de marca... ele está implantando esses desejos no seu coração para você ter cada vez menos dinheiro para o dízimo, para as ofertas e para os propósitos. Deus não gosta de gays, Amém?
– Amém. Mas, pastor, eu estou dando quase todo meu dinheiro em propósitos para esses meus desejos pararem... Eu andei lendo a Bíblia e não vi Jesus condenando em momento nenhum a homossexualidade.
– Mas você não pode confiar só no que sai da boca de Jesus de acordo com o evangelho. Em Levítico 18:22, Jesus fala “Não se deite com um homem como quem se deita com uma mulher; é repugnante”, Amém?
– Amém. Mas, pastor, este livro não foi escrito por Moisés... muitos e muitos séculos antes de Jesus?
– Está vendo, irmão, como o inimigo está te cegando! Antes mesmo de Jesus nascer ele já era Deus... e ele quem falava com Moisés. Amém?
– Amém.
– Olha. Você precisa deixar de frequentar festas. Você vai ficar em casa nos finais de semana lendo os livros que o bispo escreveu. Amém?
– Amém. Mas, pastor, não é melhor eu ler a Bíblia?
– Não, amado. Leia os livros do bispo que ele já leu a bíblia e deixou mais fácil de entendê-la. Pra entender a Bíblia, você precisa estar cheio do Espiro Santo, caso contrário, o inimigo te encherá de dúvidas. Amém!
– Amém, pastor!

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sábado, 19 de setembro de 2015

O comedor da escola



Bombado. Notas baixas. Uma ou duas reprovações. Alto índice de ocorrências por indisciplina. O comedor da escola é um sujeito bonito por fora e cheirando a ovo cozido e batata doce por dentro. As meninas o adoram... e ele, geralmente, se aproxima das estudiosas e nem sempre é pra conseguir cola.
Se fosse apenas cola... O comedor da escola já foi pego colando, já foi pego fumando, já foi pego estuprando. “Cu de bêbada não tem dono” é o lema do seu grupinho de amigos, que transcende a Constituição, mas não fere o regimento. Eles têm tempo pra beber, trepar, viajar, mas não estudam...  são os meninos que dormem durante as aulas, porque acordaram muito cedo pra treinar, como eles chamam a ida à musculação.  
Todos bebem com o comedor da escola. Todos resenham com ele. Ele vai embora bêbado das festas com o carro cheio de gente. O próprio carro que dirige aos dezessete anos sem habilitação, sem cinto, sem medo. Chega em Pirangi com a turma, continua bebendo com o som alto. Uma das meninas agora já é mulher. O arrependimento será esquecido nos próximos meses, nos próximos porres, quando passar na Federal.
O comedor da escola não vai passar na Federal, mas vai ser doutor! Já no primeiro semestre do curso de Direito da UnP, consegue estágio no escritório do pai, mas quer ser juiz como a mãe. Maldita OAB! Agora, ele tem de estudar. Com dinheiro, dá-se um jeito. Já tem sala própria, tem alguns clientes importantes...
           Está defendendo um rapaz de dezessete anos. Bombado. Notas Baixas. Uma ou duas reprovações. Alto índice de ocorrências por indisciplina. Uma batida com o próprio carro que dirigia sem habilitação, sem cinto e sem medo. Uma morte de um mendigo que dormia na calçada na madrugada. Causa fácil. Mais uma vitória.

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Crente que é gente




Carla era uma mulher sem muito amor. Era mãe de dois filhos já na faculdade, mas que moravam com ela. Era filha de pais aposentados que moravam no interior, mas que se falavam todo dia pelo telefone. A protagonista desta curta história era casada há 21 anos, e, durante muito tempo, o seu sonho foi estudar e trabalhar, mas tinha que cuidar da casa, cuidar dos filhos, cuidar do marido e das coisas da igreja.
            Enfim, para a sua felicidade, Carla conseguiu, depois da maturidade, entrar numa faculdade. Ela escolheu uma profissão de status, que lhe conferiria o respeito que ninguém, nem marido nem filho algum, já a haviam dispensado. Catou seus documentos e conseguiu um financiamento federal para estudar Direito numa decente universidade do seu estado. Ah... ela estava tão feliz... agora, como a sua irmã, que era médica formada na Universidade Federal, ela teria algum valor... Direito era um curso muito belo... poderia, além do diploma, lhe conferir dignidade, como se só quem tivesse um título emoldurado na parede tivesse o direito inalienável, como anos atrás, de ter dignidade neste país.
            Foi uma luta terminar o curso... no início, teve que se virar para pagar o material, os livros e ainda pagar pelos trabalhos e provas que não conseguia fazer... Afinal, não é uma, duas ou dezoito disciplinas que não se acompanha bem que fará um estudante universitário sair com menos bagagem, não é mesmo? E assim ela foi... fez os estágios, colou o grau... o marido, nestes cinco anos, havia sido promovido então eles já vinham pagando o FIES para não deixar tudo pra depois...
            O problema, caro leitor ou leitora, é que quando você paga para fazerem seus trabalhos, quando você paga para fazerem seus resumos, fichamentos, só te darem a parte pronta num seminário ou mesmo paga para fazer uma prova em dupla, você acaba saindo da universidade do mesmo jeito que entrou. Agora, Carla era uma doutora como diz no popular, mas não conseguia passar no exame da OAB e, consequentemente, exercer a sua profissão. Tinha um diploma na parede. Tinha apenas um diploma na parede.           
            O problema, sabe, não é nem a falta da carteira da Ordem ou o fato dela ter pago pelos trabalhos, enfim... O problema todo é a sua arrogância... a sua prepotência. Parece que, mesmo não tendo entrado de verdade no mundo do direito, a empáfia que alguns profissionais carregam a acompanha. Por isso, ela arruma briga com o padeiro, com o porteiro, com o professor dos seus filhos... Se um dia você cruzar com ela, não ouse falar em leis, direitos ou constituição em sua frente ou pelas costas, ou você será vítima – sim, vítima – de um discurso armado, pronto, no esqueleto, faltando apenas a cereja, a contextualização temporal e local para que ela tente passar por cima de você...
            Sim... como não conseguiu muita coisa em sua vida, agora, a sua alegria é passar por cima do ego alheio, da moral, da verdade... tudo que estiver acompanhando o seu opositor – todos que não concordam com ela são seus inimigos – será alvo de seus argumentos ancorados no senso comum com algumas palavras-chave prontas, em stand-by aguardando o momento oportuno.
          Quando consegue, raramente, passar por cima de alguém menos instruído, Carla se sente mais gente, mais ser humano, mais advogada formada... o seu marido, pobre coitado, nem entra mais na onda de sua esposa. Ele também participa de sua igreja que prega o amor eterno entre os casais, o ‘felizes para sempre’... e acha que é uma provação o que ele passa... como se o seu deus quisesse que ele sofresse tanto vendo a mulher pregar e ler uma coisa nos púlpitos da igreja e fazer absolutamente o contrário em sua vida real.
            É, meu amigo ou amiga, eu me preocupo muito com este tipo de pessoa que quer se tratorar através das outras, estes parasitas que têm seu ego inflado quando suprimem da forma mais baixa e mesquinha o direito dos outros. Quando eu encontro com Carla, eu finjo que ela ou eu somos um personagem... e tento não levar para o lado pessoal as asneiras que diz. Pra mim, agir desta forma é algo que vai contra o que eu sigo, o que eu prego, o que eu vejo e acredito. Eu creio que o mundo precisa de mais humanidade e menos arrogância. Carla, por sua vez, é crente que é gente. 

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

É medicina. É Federal!


Cara de médica, família de médica. Sonhava desde menina em ser médica. Era uma aluna semiexemplar... tirava boas notas, mas não mostrava muita humanidade. Ela era aquela menina que questiona o professor como um arguidor de banca de pós-graduação, só que sem saber de quase nada. Ao ter o questionamento sempre respondido e contradito, não concordava. Tinha lido em algum lugar que era diferente... O pai, que era médico, disse que tal conceito de biologia era diferente... A mãe, também médica, disse que tal concepção de linguagem era diferente... A irmã, estudante do último período de medicina, disse que o cálculo do problema de matemática era diferente. Estava tudo errado e não tinha argumentos para sustentar sua indiferença.
Médica, sim. Ela seria médica em breve. Claro que passaria no vestibular, mesmo com as cotas injustas que diminuem as chances dos filhos de quem trabalhou a vida inteira para pagar uma boa escola particular. Nicole acreditava em meritocracia. Achava que, ao estar naquela escola de ponta paga pelos seus pais que herdaram a profissão elitista dos seus avós, tinha as mesmas oportunidades de um aluno de escola pública. Não, mentira. Ela não tinha as mesmas oportunidades, na verdade, ela era prejudicada pelas malditas cotas. Malditas cotas! Uma discriminação com quem é negro, porque está dizendo que o negro não tem a mesma capacidade de alguém branco, loiro, de olhos claros e família de médicos.
Nunca maltratou os funcionários terceirizados da escola... mas nunca cumprimentou o porteiro ou o faxineiro... Na verdade, nunca reparou nos faxineiros. Mesmo dispensando uma educação falsa e, por várias vezes, falha aos professores e demais membros da equipe pedagógica, Nicole era a esperança da escola. Teremos, certamente, uma aluna aprovada em medicina este ano e garantir os mesmos resultados dos anos anteriores. Essa menina vai estampar nossos outdoors e fazer campanha com curativos coloridos no nosso site. Vamos ter muitos alunos... Inclusive, ela é boa candidata para tirar nota 1000 na redação.
Mediana. Não foi a primeira colocada. Se não fossem os cotistas, teria até ficado numa posição melhor no SISU. Não importa. O que importa é que Nicole é Federal. Já é médica. Nas suas redes sociais, médica em formação era o que mais se via... mesmo antes da matrícula na UFRN, afinal, ela já estava se preparando há anos para entrar na Universidade. Após a festa, regada a muita carne de primeira e whisky 18 anos, Nicole iria para Miami comprar as suas roupas para começar a faculdade. Trouxe várias sandálias e sapatos brancos, bolsas de marca, roupas de grife... mas o principal era o jaleco. Desde pequena, já tirava fotos com jaleco.
Era muito trabalho. Estudar medicina não é fácil pra ninguém. Estudar medicina e ter uma vida social badalada é mais difícil ainda. Fora as calouradas, era preciso continuar frequentando as festas disputadas do seu nicho social. Mas ela era guerreira. Ao contrário dos cotistas, ela tinha mais inteligência para conciliar os estudos às demais atividades. Ganhou um carro antes da viagem à Miami. Um carro importado, claro, quem é que dirige carro popular na faculdade de medicina? Só quem entrou pela cota. Como aquele carinha que era farmacêutico e aproveitou a cota por ser negro. Nada a ver. Ele já tinha até carro, tinha uma profissão. Como alguém se submete a um programa que te reconhece como alguém inferior?
Passaram os primeiros semestres. Começaram os estágios. Não sei por que tem que estagiar em hospital público também... era mais fácil eu ficar no hospital da minha família, é lá que eu vou trabalhar! E a especialidade? Está chegando o final do curso. Nicole não quer cuidar de criança, detesta crianças. Desta velho também, Deus a livre de ser geriatra. Com cardiologia também não queria mexer, só iria cuidar de velho, gordo e velho gordo. Não era muito chegada a sangue... não queria fazer cirurgia. De problemas de pele, ela também se esquivava... tem cada gente perebenta, não!  Anestesiologia parecia ser uma área legal. Ninguém era anestesista na família. Dava grana e, em tese, era só dar injeção.
Assim que formada, se tornaria a anestesista chefe do hospital. O anestesista que ocupava este posto foi convidado a cuidar dos residentes. Só faria supervisão e, de quanto em vez, iria para a sala de cirurgia. A nova médica da família agora tinha um jaleco de médico. Tinha uma sala de médico. Trabalhava no ramo médico de sua família. E continuava sem enxergar o faxineiro, nem dar bom dia ao porteiro e desconfiando sempre de alguém que fala diferente daquilo que os seus familiares e amigos médicos falam. Médico sabe mais que todo mundo, menos se o médico tiver entrado pela cota.


domingo, 12 de julho de 2015

O ator da Globo




– Rapaz, vou te contar...Todo ator da Globo é veado.
– Que onda... impossível todos serem veados.
– Mas são... todos são. Todo ator e diretor da Globo é veado.
– O Tony Ramos não é veado.
– É sim.
– Ouxe!
– Eu estou dizendo... é tudo veado na Globo.
– E o Lima Duarte, o Marcos Pasquim, o Rodrigo Lombardi?
– Cara, lá é tudo veado. Só consegue papel na novela os que dão o caneco para os diretores... todo diretor lá é veado... estou falando.
– O Marcos Paulo era veado?
– Está de sacanagem? Claro.
– Não acredito não.
– Olha, lá é tudo panela. Tem panela pra tudo. Reparou que há um ciclo de atores, que as novelas têm o mesmo grupo de atores?
– Sei, mas...
– Então. Quem decide é o diretor, que come os atores.
– E as mulheres?
– Elas são do grupo do pó!
– Como assim?
– Eles se reúnem para cheirar pó. Na Globo, todo mundo é viciado em pó.
– Impossível.
– Estou dizendo... Eles fazem festas nas casas dos diretores... elas cheiram e trepam...
– Se os diretores são veados, como comem as mulheres?
– Agora, pronto! Só porque o cara é veado ele não pode comer mulher?
– Pode...
– Então!
– Esta história está mal contada. É estatisticamente impossível todos serem veados e viciados em pó.
– Mas são. Estou dizendo. Todo mundo que trabalha na Globo é veado.
– E como você sabe disso?
– Fiz novela na Globo por dois anos.


segunda-feira, 6 de julho de 2015

A professora gata




Era uma menina linda. Todos da rua, da escola, das redes sociais mais badaladas a admiravam. Ela era linda, linda. – Tem cara de médica, essa menina – dizia sua tia advogada. – Já decidiu sua profissão, Giovana? – perguntou seu avô chato durante o último natal. – Vou ser professora!
Silêncio.    
Após os instantes de calma que antecedem os bombardeios, todos a questionaram, coitada da linda moça, o motivo pelo qual ela queria enfrentar uma vida sofrida de sala de aula com um salário miserável, sem contar no tipo de marido que iria arrumar. – Ninguém quer casar com uma professora... logo, logo, você vai ficar feia e gorda! – a prima dela, estudante de psicologia, bradou.
Contra todos e confiando em seu desejo, prestou vestibular entrou no seu sonhado curso de licenciatura. Ela continuou chamando a atenção de todos. Alunos de outros cursos, colegas, professores, professoras... Todo mundo era atraído pela beleza ímpar da jovem estudante. Muitos, sobretudo muitas, desacreditavam em sua vocação, achavam que ela estava fazendo hora no curso, adiantando disciplinas comuns até passar no seu vestibular certo.
– Olha só! Não passou em Direito e está aqui pagando produção textual I com a gente só pra adiantar o curso. Duvido que ela passe!
Mas passou. Não só passou na disciplina em questão como passou com notas bem acima da média em todas as disciplinas daquele primeiro semestre. E foi passando com louvor, com louvor, com louvor até a colação de grau e inevitável láurea.   
Durante os quatro estágios obrigatórios, foi se afinando cada vez mais à profissão. Ela tinha certeza que escolheu o curso e profissão certos. Em pouco tempo, já dava aula em escolas particulares. Mais rápido do que se imaginava, passou num concurso para a rede pública. E ao contrário da praga de sua prima, parecia ficar cada vez mais linda.  
Os meninos não perdiam a sua aula. Eram bastante concentrados. Não davam trabalho. No entanto, apesar de não tirarem os olhos da professora, as notas naquela disciplina não aumentavam nunca. Alguma coisa havia de errado. – Mas Giovana é uma pessoa tão capacitada! Acabou de passar na seleção de mestrado, analisamos a sua aula e foi perfeita! – argumentava em seu favor uma das coordenadoras.  
Não demorou muito até questionarem a sua competência. Giovana era linda. Mais linda do que muita atriz de tevê. – Ela está desconcentrando os alunos – um dos professores sugeriu. – Eu também, acho. Até me questiono se suas aulas são tão boas assim para ela trabalhar nas melhores escolas da cidade – corroborava uma professora já em final de carreia.
Eram ataques que não terminavam nunca. Ataques traiçoeiros, pelas costas, pois ninguém era capaz de argumentar com Giovana. Até questionavam o seu planejamento, todo o seu trabalho extraclasse, pois uma pessoa tão linda, tão em forma não deveria ter tempo de planejar aula e corrigir bem as provas, já que vivia em academias e clínicas de estética que ajudavam a sua beleza natural a se destacar.
No entanto, mais do que ter um corpo bonito, Giovana gostava do seu trabalho. Muita gente começou a insinuar que era a sua beleza que atrapalhava os alunos. Além de linda, ela era gentil, dinâmica. Os alunos adoravam as suas aulas. Mas algo nela, diziam, estava errado. Prometeu, então, a si mesma a se tornar uma professora inquestionável. A única coisa que dava margem para a discussão era a sua beleza, portanto, era isso que ela iria mudar primeiro.
Logo após a epifania, deixou de ir à academia, fazer suas corridas regulares, a frequentar os salões de beleza e estética. Além disso, ela abandonou a dieta, começou a comer compulsivamente na tentativa alucinada de evitar qualquer crítica.  
Em pouco tempo, o seu corpo começou a se modificar. Ela teve de comprar roupas novas, abandonar os saltos. O seu rosto também começou a mudar. Ela ganhou muitas espinhas, algo que não teve durante toda a puberdade. As suas bochechas, agora, faziam com que seus olhos se fechassem durante os sorrisos... Ela estava completamente mudada... até o cabelo mudou.
Em um ano, Giovana havia engordado muito. Não tinha mais beleza, pelos menos a beleza do padrão atual da sociedade. Restava apenas um arremedo do que um dia foi o seu principal atributo. Em dois anos, os alunos novatos já não sabiam da sua fama de bela, algo que os veteranos faziam questão de lembrar... mandavam fotos pelo WhatsApp, relembravam cenas da professora apagando o quadro de uma forma que eles julgavam sensual. E isso, de certa forma, a deixava triste.  
Os seus superiores, de todas as escolas, entenderam o seu empenho em melhorar a sua atuação profissional, mas algo ainda estava errado. Giovana havia engordado 73kg, mas as notas dos alunos ainda estavam baixas. Eles continuaram prestando atenção nas aulas, pois, de fato, as suas aulas eram bem significativas, mas as notas não subiam, mesmo quando era prova da mesma disciplina elaborada por outra pessoa.  
Três anos se passaram desde que deixou de ser a professora gata para ser a professora gordinha legal. Talvez fosse isso, eles induziram. Não era muito vantajoso para ela ser legal. Giovana não enfrentou dificuldades para entrar numa depressão e adotar uma postura mais ranzinza em sua vida. Não tinha mais um riso fácil, não era mais gentil. Havia se tornado física e psicologicamente um retrato fiel das pobres professoras do passado, as que servem de exemplo ruim. E as notas... as notas dos alunos não mudavam.
Tentou de tudo. Saiu da sua metodologia inovadora e assumiu um ensino pautado na memorização. Os alunos, agora, não tinham mais voz em suas aulas, que eram centradas, sobretudo, no livro didático sem fazer referência a nenhum conhecimento do mundo real. Mas as notas... as notas dos alunos continuavam as mesmas.
Foi demitida das escolas particulares. A escola pública em que trabalhava a colocou na biblioteca, pois não fazia sentido mantê-la em sala de aula. Para o seu lugar, as escolas contrataram uma professora recém-formada, cheia de energia, simpatia, alegria, vontade de inovar e beleza. E as notas dos alunos continuaram as mesmas notas baixas de sempre.


sábado, 13 de junho de 2015

Pastor

– Pastor.
– Sim, meu filho.
– Eu estou com uma dúvida.
– Diga qual a sua inquietude. Deus me deu o dom da palavra e da revelação. Se for da Sua vontade, as suas dúvidas serão sanadas, Amém?
– Amém. – Pastor, eu não estou entendendo algumas coisas que estão na Bíblia... que estão ou não estão.
– Como assim, irmão?
– Os dinossauros, por exemplo. Não estão na Bíblia.
– Eles não existiram.
– Não?
– Não. Se não estão na Bíblia, não existiram.  
– Mas e os fósseis?
– Tudo obra do inimigo para tirar o seu foco em Jesus, Amém?
– Amém. – Mas e toda teoria evolucionista. Os cientistas discordam que o homem veio do barro.
– Também é mentira. Artimanhas do inimigo. Olha, irmão, você já viu macaco virar gente?
– Não, pastor.
– Então. Se macaco virasse gente, não teria mais macacos no mundo, Amém?
– Amém. – Mas, pastor, se Deus fez apenas Adão e Eva, e se todos os seres humanos são seus filhos, por que somos tão diferentes. Asiáticos são de um jeito, africanos de outro, europeus mais ainda... deveríamos ser mais iguais, não?
– Olha, irmão, o inimigo está te fazendo questionar a obra de Deus. Apesar de sua incredulidade, eu te respondo. Você tem filhos?
– Tenho.
– Eles são iguais?
– Não, mas são bem parecidos.
– Se você largar um de seus filhos num deserto africano e outro no inverno russo, eles ficarão parecidos depois de alguns anos?
– Não, pastor. Mas você acha que o que vai viver na África e, consequentemente, ter a pele queimada vai fazer netos mais morenos que o outro que ficou na Rússia?
– Mas é claro, irmão. Por que não fariam?
– Porque...
– Olha – o pastor interrompeu de súbito. – Você não dá o dízimo há dois meses, não é verdade? Por quê?
– Porque eu estou com algumas dúvidas sobre a minha fé, pastor.
– Como você quer que Deus te proteja do Diabo se você não é fiel no dízimo, irmão? Faça um propósito com Deus. Dê seu dízimo em dia... pode parcelar os atrasados no cartão... e faça uma oferta do tamanho que você deseja a sua fé. Te garanto, em o nome de Jesus, que você não vai mais ser atormentado pelo inimigo, Amém?
– Amém.


sexta-feira, 29 de maio de 2015

O cheque em branco

Eu estava na fila do banco. Faltavam algumas pessoas para ser atendidas. Eu tremia. Estava com um cheque em branco do meu pai. Eu tremia. Aquilo era, de certa forma, errado, mas eu precisava pegar todo o dinheiro da conta corrente... raspar o tacho. Iria preencher ali na hora o valor todo. Eu tremia, temia, mas me continha... não iria deixar um centavo no banco.
Tinha 16 anos. Morava numa cidade pequena do interior de São Paulo. Todos me conheciam, sabiam que eu era responsável. Desde que meu pai tinha ficado doente, eu quem fazia todo serviço burocrático da casa. Ia no banco trocar os cheques, fazia as contas do mês, calculava o quanto tinha na dispensa e o que compensava mais comprar para a feira.
Meu pai já estava muito doente, e eu aprendi a falsificar sua assinatura. Ninguém percebeu. Eu ia ao banco todo mês pegar o dinheiro necessário para pagar as contas de casa. Mas naquele dia era diferente... eu iria pegar todo dinheiro da conta corrente, não iria deixar um centavo furado para contar história. Eu já estava cansado daquilo tudo!
A minha vez já estava chegando. Tinha umas três pessoas na milha frente na fila. Eu suava. Já sabia exatamente o que iria fazer com o dinheiro, já estava tudo planejado. Entreguei o cheque um pouco nervoso, mas contido. No caixa, a atendente me dava alguns cruzados novos; parado no semáforo em frente ao banco, o carro da funerária convidava os moradores da cidade para o enterro do meu pai ao som de Ave Maria Gounod.