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sábado, 21 de junho de 2025

Entre o semáforo aberto

 


 

Há dias adio escrever sobre isso. Quanto tempo uma lamparina cheia de gordura saturada demora para apagar? Apaga? O fato é que nunca acreditei na escrita como terapia ou autoajuda, ou de autoajuda. Mas por que não seria? Por textos atravessados, um eu literário, ou personagens, usamos linguagem, bem ou mal, bela ou imbecil, e todo texto de ficção ou não forma nossos divertidamente, inclusive, filme e título maravilhosos.

A demora em começar um novo parágrafo é metáfora da procrastinação companheira. Seja para cuidar melhor da minha filha, para cuidar mais de mim, para não fazer os projetos esquecidos, quase mortos que teriam alguma chance se vissem a luz que não passa pelo tampo da gaveta... Mas vamos lá. Vou começar pela morte, pela tragédia, por como eu queria não ter empatia e, assim, ser mais leve.

Não me lembro de ter perdido um aluno ou ex-aluno. Esta é a vantagem de ser professor de gente jovem... A gente vê as transformações nos seus estilos, vê sua rebeldia e espirituosidade... vemo-los indo para a universidade e vez em quando aparece uma notícia boa sobre alguém. Fulano foi fazer um intercâmbio, sicrano passou num concurso... As piores notícias que costumam chegar são de gravidez. Uma vida a mais, renovação da espécie... e a gente pensando que isso acaba com a vida de uma jovem promissora.

Minha aluna, ex-aluna... aluna era chata de tão legal, adolescente cheia de vida, apesar de não comer carne. Que estava estudando moda tinha sido a última informação que recebemos. O tempo passa... Fulano foi contratado por uma multinacional, sicrano passou em medicina. E a gente, na verdade, não pensa muito em quem já saiu da escola. Os desafios sempre aumentam... esse pessoal está cada vez mais preguiçoso para estudar, os velhos e os novos problemas nos envolvem, fora a burocracia, a economia, a hipocrisia.

Um dia depois do meu aniversário, quando esperava o bolo ficar pronto para comemorar mais um ano com minha família, várias mensagens pedindo orações para a Letícia apareciam nas redes sociais. Era sábado. Entrei, contra meus princípios, no grupo do trabalho e as notícias não eram boas. As orações, de todas as crenças, seriam necessárias. Não rezei, não rezo. Mas torci muito para que ela conseguisse. – Olha, já vi muita gente bem mal sair viva de um negócio feio – disse minha companheira – ela é nova, tem chance – conformou. Não teve. Seguiu-se o protocolo. No domingo, um dia depois do seu aniversário, foi declarada sua morte cerebral.

A gente não pensa em todos o tempo todo. A gente não acompanha todos. Dezenove anos. Estava indo para a faculdade quando o mototaxista que a levava avançou o sinal em alta velocidade e interrompeu uma vida e afetou tantas outras. Eu tenho uma filha, doze anos. Eu nem imagino de onde eu tiraria forças para querer qualquer coisa com a vida se acontecesse algo assim com ela.

Cinquenta e seis anos. Meu pai morreu jovem. Com vinte anos a mais que eu agora. Demorou um tempão para eu chegar aqui, mas está me parecendo pouco. Olho para frente e me parece pouco. Meu pai teve filho, conheceu neta, foi negligente com sua própria saúde apesar das análises, apesar dos conselhos, apesar até da própria fé. Foi embora cedo. Eu estou com medo de ir embora cedo. Letícia foi embora cedo e isso está pesando mais do que achei que pesaria para mim.

Lá fora, o Irã ataca Israel genocida. Trump não controla nem a California, Haddad sangra sozinho como um mártir sem seguidores. Bananinha fugiu, Zambelli fugiu, Bolsonaro está solto... E a família dela? E a mãe dela? Dezenove anos. Tinha amigos, tinha um projeto de vida, tinha sonhos. Na TV, Virgínia fatura, Direita se cala diante de promessa de indulto aos golpistas, Fux cão bem adestrado. E eu fui de triste a ansioso e irritado a semana inteira. Duas semanas de agonia por motivos diferentes que me compõem.

Por que uma bailarina gorda foi colocada para reger uma orquestra? Por quê? Por que o mecânico inveja o piloto e por que o piloto inveja o artista ou o agricultor? Não tenho feito as coisas direito, não tenho pensado direito. Às vezes passa o tom, a canção perde harmonia; o pianista solista não olha para o espelho, envergonhado perde o bonde e precisa correr mais um pedação. Dobra outra esquina, não está quase chegando. Um pouco mais de brasa, era além.

Caso, infelizmente, comum de trânsito do séc XXI. Poderia ser sua minha filha, com meu pai, nossa aluna, alguma conhecida do dia a dia. Poderia ter sido eu. Talvez por isso a castração, talvez por isso a frustração. Banho de água fria na madrugada. Quando do segundo gol, gritei palavrão e não podia. Talvez um troco modesto. Pedágio, multa. Tic-tac, tic-tac, tic-tac. Segue feliz pelo túnel. Não foi em vão. Sem direito e mais vontade de podar capítulos, envelheço felizmente.


R Slama, 20/06/25


*Imagem do Google

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