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sábado, 14 de junho de 2025

R'Orfanato

 


Os Poodles foram ignorados... depois os Golden, os gatos pelados. Calopsita já era, mas ainda tem quem goste. Já passaram o Kichute, os lenços de pescoço, o tomara que caia, Crocs... tudo passa. Ninguém come mais palha italiana, paleta mexicana, mas o Ninho com Nutella e o pistache resistem.

– Isso são apenas negócios... somente produtos.

– Até os cachorros?

– Claro, todos os animais, videogames, raquetes de beach tennis! Tudo é só um jeito de ganhar dinheiro.  

– Mas com os bebês é diferente, né, mãe?

– Olha... sei que é difícil aceitar, mas não... Com os bebês não é diferente. Eles são produtos.

– Como pode alguém achar que bebês são produtos?

– Então... tudo começou com amor mesmo. As pessoas gostavam, queriam ter os bebês... Era um tempo de certo alívio. O país, mesmo imperfeito, saía de um tempo muito sombrio, um dos mais sombrios até aquele momento. Por isso, todo mundo tinha muito afeto represado, muito amor guardado. Lembra das aulas sobre pandemia? Então, muita gente tinha perdido filhos, pais, irmãos e avós. Era normal que quisessem preencher aquele vazio. E sociedade é sempre assim... vez ou outra aparece uma moda, um delírio coletivo, ou qualquer outro sentimento compartilhado e cativante.

Tal qual cachorros exóticos e tie-dye, o desejo por ter um bebê cativava muita gente. Outras tantas criticavam, talvez também quisessem um objeto de amar para si, talvez era preocupação com o próximo mesmo ou só o desejo de falar qualquer coisa nas redes sociais. Instrumento de covardes e introvertidos, a internet deu voz e segurança a gente de tudo quanto é natureza. Na TV, era o direito à impunidade rondando quem debochava das instituições, seja por golpes ou bets; nos livros, uma tentativa honesta de resgatar vozes isoladas, vencidas pelo colonialismo; nos braços de muitos, lindos bebês com suas coleções de roupas, brinquedos e perfis bombados nas mais diversas redes virtuais e em muitos encontros presenciais... lembra, foram anos de reclusão, agora, com os bebês, havia necessidade de fazer festas de aniversários, batizados até partos confraternizantes.

– Mas, por que, mãe, os bebês viraram um produto?

– Nossa sociedade precifica tudo, meu filho. Compra-se tudo, até o afeto, até o amor, até a felicidade. Se um bebê demanda roupa, festas, brinquedos, likes e tudo mais, evidentemente alguém vai arrumar motivo para lucrar com tudo isso. Assim, o que era para ser apenas uma coisa prazerosa, um estilo de vida, uma missão ou sei lá o quê, é transformada num grande negócio, ou já nasce para sê-lo.

Pois é, os bebês entraram no desejo de muita gente. Sem qualquer preparo ou planejamento prévio, as pessoas queriam cada vez mais bebês. Então, a própria produção virou um mercado, uma vez que nem todo mundo conseguia seu próprio bebê. Demandava tempo e as mulheres, em sua maioria, estavam super ansiosas para cuidarem dos seus próprios projetos.

– Mas ninguém fez nada para que esse negócio fosse impedido? Claramente, é uma coisa que faz mal pra todo mundo, não é?

– Sim, mas quem controla o desejo? Muito poucos. Por exemplo, tinha uma ou outra mãe que já tinha mais de dúzia de filhos. Como quem coleciona sapatos e bolsas, nunca era o suficiente. Eu mesma conheci uma que tinha cinco bebês. Como se fosse uma coleção de gatos vira-latas que a gente vai recolhendo na rua para completar o álbum, sabe? Era criança branca, preta, ruiva... A mãe tinha cinco; todos diferentes uns dos outros.

– E isso é um problema, mãe?

– Na verdade, não é um problema não. Mas as outras pessoas não entendiam e começaram a perseguir quem usava seu próprio tempo para cuidar de um ou de vários bebês.

– Mas as mães não incomodavam ninguém, não é?

– Nem as mães e nem os bebês. Eles estavam ali em paz... mas o ser humano sabe ser bastante ruim. A perseguição foi tanta que muitas mães não quiseram mais cuidar dos seus bebês. No começo, elas só faziam o básico, até que todo carinho entre mãe e filhos acabou. Muitas simplesmente abandonaram ou deram seus filhos.

– Tem problema dar os filhos?

– Também não. Uma pessoa tem direito ao arrependimento, certo? Todo mundo pode mudar de ideia. E a grande maioria das que não queriam mais cuidar dos seus bebês, simplesmente arrumavam quem tinha mais atenção para dispensar a uma criança.

– E por que, apesar disso, as coisas chegaram a este ponto?

Enquanto elaborava a resposta, a mãe assistia a um filme na sua cabeça. Via os bebês sendo negligenciados e abandonados. Ela era mãe também e vivia imaginando que não queria que seus filhos passassem por isso. Foi aí que nasceu o Orfanato Pequena Beca.

– Eram tantos bebês rejeitados que faltou quem cuidasse. Tinha gente que tinha mais de trinta já. Era impossível dar conta de todos. Em alguns lugares do país, houve quem montasse orfanatos como o nosso, mas boa parte dos inocentes não conseguiu ser resgatada e simplesmente desapareceu. Foram consumidos pelo tempo.

A campainha toca. Correios. Ela recebe uma caixa bem grande depois de assinar um papel. Ansiosa, corre para a mesa onde o filho espera em frente a um bolo de aniversário. Treze velas ainda apagadas decoram o pequeno bolo que é apreciado por centenas de outras crianças, a grande maioria bebês. A mãe abre o pacote, retira um corpo apenas com pernas de dentro da caixa e troca a cabeça e os braços do Nicolas de corpo. Ela também muda o cabelo e faz um buço leve no rosto do menino. Todos cantam parabéns para você, a mãe corta e serve o bolo. Só ela come.

 

* Imagem gerada por IA 

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