Páginas

sexta-feira, 29 de maio de 2015

O cheque em branco

Eu estava na fila do banco. Faltavam algumas pessoas para ser atendidas. Eu tremia. Estava com um cheque em branco do meu pai. Eu tremia. Aquilo era, de certa forma, errado, mas eu precisava pegar todo o dinheiro da conta corrente... raspar o tacho. Iria preencher ali na hora o valor todo. Eu tremia, temia, mas me continha... não iria deixar um centavo no banco.
Tinha 16 anos. Morava numa cidade pequena do interior de São Paulo. Todos me conheciam, sabiam que eu era responsável. Desde que meu pai tinha ficado doente, eu quem fazia todo serviço burocrático da casa. Ia no banco trocar os cheques, fazia as contas do mês, calculava o quanto tinha na dispensa e o que compensava mais comprar para a feira.
Meu pai já estava muito doente, e eu aprendi a falsificar sua assinatura. Ninguém percebeu. Eu ia ao banco todo mês pegar o dinheiro necessário para pagar as contas de casa. Mas naquele dia era diferente... eu iria pegar todo dinheiro da conta corrente, não iria deixar um centavo furado para contar história. Eu já estava cansado daquilo tudo!
A minha vez já estava chegando. Tinha umas três pessoas na milha frente na fila. Eu suava. Já sabia exatamente o que iria fazer com o dinheiro, já estava tudo planejado. Entreguei o cheque um pouco nervoso, mas contido. No caixa, a atendente me dava alguns cruzados novos; parado no semáforo em frente ao banco, o carro da funerária convidava os moradores da cidade para o enterro do meu pai ao som de Ave Maria Gounod.

terça-feira, 26 de maio de 2015

A magia do São João

            



            Há muito tempo eu não sei o que é comer uma boa canjica, já que aqui em São Paulo canjica é diferente. Aqui o povo não acende fogueira, não assa milho verde, e faz umas arrumações estranhas e dizem que é quadrilha.
            Meu sonho é voltar, nem que seja por um dia, à minha terra, no dia de São João...

...

Três anos depois.

– Já faz dez anos que a gente tá morando aqui em São Paulo, não é homi? – disse minha mulher.
– É morena, e daí?
– E daí que a gente podia ir lá pra o Rio Grande do Norte, visitar minha mãe no interior e dançar forró na festa junina.
– É o que eu mais quero, minha flor, mas, trabalhando de pedreiro, com que dinheiro eu vou pagar o ônibus?
– Sabe, meu bem, eu fiz uma promessa a São João, disse que se ele me fizesse ganhar a rifa da geladeira eu ia vendê ela e usar o dinheiro pra ir curtir a festa dele, lá no nosso interior, na nossa terra.
– E você comprou aquela rifa, mulher. Poxa! Cinco reais é dinheiro...
– Homi, cê não me aperreie que eu achei cinco reais na frente da padaria.
– E por que você não comprou leite pros meninos? Cê sabe que aqui o governo não dá leite igual lá.     
– Ah, meu nêgo, São João vai nos abençoar, a gente vai viajar, vai voltar pro nosso Seridó.
– Se bem que se a gente conseguisse mesmo ir pra lá eu nem voltaria mais pra São Paulo, viveria lá mesmo, voltaria pra roça...
– Quem sabe? Quem sabe?...

Uma Semana depois...

            – Morena, minha linda, minha flor... – alvoroçado chamei por Severina.
            – Que é, nêgo? O que aconteceu?
            – Nossa vida vai melhorar! Fui promovido a mestre de obras.
            – Que ótimo, Clenilson. Já não era sem tempo, dez anos de pedreiro... – Severina me abraçou e me cheirou o cangote. – Amanhã é o sorteio da rifa. Quem sabe essa onda de sorte não assopra na sacolinha?
            – É... mas se a gente ganhar...
            – O quê?
            – Nada, deixa pra lá.

No dia seguinte, o resultado da rifa saiu. Severina ganhou a tal geladeira duplex inox e frost free.

– Olha, me amor. Ganhamos a geladeira, podemos vender e viajar! – muito feliz Severina veio me mostrar o canhoto da rifa. – Podemos hoje mesmo buscar na loja...
– Tá Severina, nós vamos buscar, mas não vamos vendê.
– Por que não? – com os olhos tristes ela me indagou. 
– Porque nós não vamos mais viajar. Não posso largar o trabalho logo agora que fui promovido, meu salário vai triplicar, vamos mudar de vida. Daqui a um ano, quando saírem minhas férias, a gente viaja.
– Mas eu prometi a São João! – indignada ela tentou me argumentar.
– Cumpra a promessa ano que vem.
– Mas...
– Sem mas nem meio mas – meio ignorante eu dei o dito.

Severina correu até o quarto e, de joelhos, rezava a São João com um terço na mão.
“Meu Santo, São João, faça com que o Clenilson mude de ideia e viaje com a gente para o interior para prestigiar sua festa, meu Santinho, São João...”
Vendo aquela situação, me arrepiei... o que a gente mais queria era passar o São João com a família e quando a gente é abençoado tenho que optar entre uma benção e outra... Quando morávamos na seca, quando as adutoras não passavam na cidade, nosso sonho era vir pra São Paulo pra mode criar os filhos melhor. O Alexanderson mesmo... está trabalhando comigo de servente, não dou mais um ano ele já vira pedreiro e pode se mudar daqui de casa com a mulher e o filho...
Tempo depois, fui dormir com o coração pesado, com o sorriso sem querer levantar do rosto. Deitei sozinho na cama, Severina ainda estava rezando, agora de voz baixa pra eu não ouvir. Não impeço ela de acender vela de noite, mas rezar de voz alta atrapalha meu sono e eu tenho que acordar cedo no dia seguinte, ainda mais agora que sou mestre de obras e vou começar amanhã a comandar os peões.
– Você não quer deixar sua mulher cumprir a promessa que fez a mim, Clenilson, você não pode impedi-la disso, ela me pediu uma graça e eu concedi – me disse São João. É... ele mesmo, segurando a cruz na mão esquerda e um novilho na mão direita, imediatamente me ajoelhei e beijei seus pés.
– São João, meu santo, não é por mal, mas se eu abandonar o emprego agora vou perder a maior oportunidade da minha vida... O senhor, mais que ninguém, sabe o quanto eu quis essa promoção, logo agora que o senhor me concedeu essa garça eu tenho que esforçar para não perdê ela – com medo de olhar nos olhos do santo, eu disse com a voz tremendo e quase rouca.
Assim que passou a mão sobre minha cabeça, depois que terminei de me defender, meu Santo João desapareceu numa nuvem de fumaça deixando um perfume que não tinha sentido antes em toda minha vida.
Acordei suado, era mais ou menos duas e meia. Não dormi mais.
No dia seguinte, lá no trabalho, disse para o chefe que precisava viajar na semana seguinte, ele disse que tinham acabado de me contratar como mestre de obras e que eles realmente precisavam de mim... ele não poderia e não queria me dar esses dias de folga, e me alertou que se eu fosse sem seu consentimento seria demissão por justa causa, por abandono de emprego, sei lá... agradeci e no final do expediente já tinha minha ideia formada.
– Severina, venha cá, minha morena!
– O que foi Clenilson? – ela apareceu com a cara assustada.
– Cadê a geladeira? Não estou vendo ela aqui.
– É... Vendi – me olhou como um cachorro que tinha comido a carne que estava descongelando na janela.
– Vendeu? Vendeu pra quê?
– Tive um sonho com São João, e ele me disse pra vender e cumprir a promessa.
Fiquei calado e espantado por um longo instante...
– Foi mesmo, minha nêga?
– Foi, Clenilson... Ele...
– Não precisa me dizer nada – peguei ela e abracei.
– Pode arrumar as mala, amanhã mesmo nós pegamos o ônibus, pergunta se Alexanderson vai querer ir com a mulher.
– Já perguntei, ele prefere ficar...
Fui tomar banho e chorei. Não chorava fazia tempo, acho que desde menino.

...

Dançamos e abraçamos muito nossa família e nossos amigos. Ficamos dez dias exatos, estava feliz demais pra me preocupar com o trabalho. Um irmão meu tinha comprado uma granja e estava criando camarão, me ofereceu emprego, me pediu para ficar, falei pra ele que pensaria e agradeci, tinha voltar pra São Paulo, nossa vida estava toda lá, se não arrumasse outro trabalho, iria arrumar um modo de voltar.

...

Assim que a gente chegou a São Paulo procurei a firma. O chefe lá olhou muito pra mim com as sobrancelhas abaixadas na direção do nariz e disse:
– Clenilson... – fiquei com o coração batendo. – Olha só: você me desobedeceu, pedi pra não viajar, pois estávamos precisando de você... Se não fosse a demanda de serviço, não te aceitava nem como servente, mas... pode começar, ou melhor, pode voltar pra seu cargo de mestre de obras amanhã mesmo, mas com uma condição.
– Qual, doutor?
E me olhando fulminantemente – Só você deixar esse sorriso pular fora dos beiços agora mesmo.
Abracei o engenheiro formado. No dia seguinte, voltei... com mais ânimo e mais fé em São João do que nunca.



27 de maio de 2009

terça-feira, 19 de maio de 2015

Tia Alcinéia


Tia Alcinéia foi a minha professora da alfabetização. Terminei o mestrado há pouco tempo e confesso que não me lembro de alguns professores. Mas de Tia Alcinéia, que me ensinou a codificar e decodificar o português há vinte anos, eu me lembro. Lembro muito bem, infelizmente.
Tia Alcinéia era baixinha, gorda, calva, com alguns dentes faltando e com os que sobravam meio podres. Ela era, como deveria ser toda alfabetizadora da época, extremamente tradicional. Tão tradicional que hoje eu conto os castigos que ela me passava aos meus alunos e eles não acreditam, acham que é coisa de desenho da Fox. Eu repetia, sempre que fazia algo errado, duzentas vezes na folha de ofício “Não devo fazer x coisa”. Não me lembro o que aprontava, não me lembro o que escrevia, mas lembro das lágrimas molhando o papel branco que o lápis fatalmente furava e eu tinha que passar tudo a limpo.
Tia Alcinéia me marcou... Certa vez, vendo tevê com minha mãe, apareceu uma mulher com este nome. Eu gelei. Já adulto. Gelei. – Lembra de Tia Alcinéia, Rodrigo? Que tomava seu refrigerante? – disse minha mãe. Não só me lembro como até hoje eu agradeço a quem seja lá que foi que me ensinou a abrir uma lata.
Tia Alcinéia era quem abria meu refrigerante. Os meus dedos, tadinhos, eram pequenos, eu não conseguia abrir a latinha. Tinha que pedir para a única pessoa com dedos fortes da turma: a professora. O problema é que, além de dedos fortes, ela tinha dentes podres e faltando, e ainda tinha um péssimo hábito: o de dar o primeiro gole.
– Tia Alcinéia está tomando meu refrigerante! – contei pra minha mãe. Ela foi lá, claro, reclamar... aprendi a reclamar com a minha mãe. Não sei se Tia Alcinéia ouviu o pedido ou simplesmente pararam de me mandar latas de refrigerante, mas de uma coisa eu sei e não esqueço. Este nome e uma saudade: Tia Alcinéia. 

domingo, 17 de maio de 2015

Fala papai!

– Neném, fala papai!
– ...
– Fala mamãe!
– Mamãe.
– Fala vovó!
– Vovó.
– Fala titia!
– Titia.
– Fala vovô!
– Vovô.
– Fala papai!
– Mamãe.

sábado, 9 de maio de 2015

As descobertas de Zé Getúlio (01)


  José Getúlio era do interior, num grotão bem longínquo, numa cidade tão pequena que nem era conhecida como cidade. Como tantos outros, Zé Getúlio veio tentar a vida na capital. Alguém o tinha falado das maravilhas daqui como a praia, as gringas... Zé Getúlio não sabia nada além de lavorar. Trabalhava no pesado desde menino, desde que começou a perceber-se como parte da natureza, mesmo sem saber.
            No ônibus, a caminho da maior cidade do seu estado, José se admirou com algumas coisas como o posto de gasolina, por exemplo. Mas nada o impressionou mais do que um avião, que ele vira rasgando o céu como um anu. – A sua cidade era tão isolada que nem avião passava por cima –. A não ser por uma vez num filme que passava na televisão do seu Tobias, apontador de jogo de bicho, Zé Getúlio nunca tinha visto um avião, achava bonito... O pobre parecia um matuto, ou melhor... Parecia uma criança num planetário, impressionava-se com tudo que de novo via.
            Na capital, assim que chegou, Zé foi procurar serviço, lá mesmo na rodoviária nova, que cá entre nós, de nova não tem nada, não é mesmo? Um homem, vendedor de lanches, disse que sem estudos José só encontraria serviço de peão. José com os olhos mais brilhantes que a sua mãe quando ganha flores no único dia ano que você diz que a ama, perguntou se o vendedor podia lhe dar um endereço, uma referência... qualquer coisa que o ajudasse encontrar lugar pra trabalhar, e assim o vendedor o fez, deu o endereço de uma empreiteira. Sem lanchar, pois não tinha muito dinheiro, José Getúlio procurou o tal lugar indicado pelo velho e bom vendedor.
            A sede da empresa era na zona sul. No caminho, José viu o mar pela primeira vez, pensou em voz alta: “– Que açude mais grande, quem será que o dono dele?”. Uma senhora, que também era do interior, mas morava aqui fazia mais de ano, disse que aquilo não era um açude, mas, sim, o mar. – “O Mar?!?!”. Zé Getúlio desceu imediatamente, queria ver o mar mais de perto. Só que o caminho até a empresa era longe, e nosso herói já não tinha mais dinheiro para ir até lá de ônibus. Assim que se deu conta disso, se enjoou da praia, mas teve de aturá-la por um bom pedaço do caminho até o local indicado no endereço.
Suado, cansado e faminto, Zé Getúlio chegou em pleno horário de pico, quando os trabalhadores estavam a todo vapor. Ele tentou falar com algum encarregado, mas o pessoal do escritório tava em outro canteiro. Devido à sua simplicidade e à sua linguagem, caiu no encanto do mestre de obras que lhe ofereceu água e um pão com mortadela. José se fartara de água. Só pensava em beber como um camelo desde que vinha seguindo debaixo do som. Ele olhava a água de coco nas barraquinhas da praia, mas lembrava do seu bolso vazio e furado.
            O mestre permitiu que José dormisse na obra, no dia seguinte falaria com alguém. Zé Getúlio sonhava acordado, pensava em como sua velha mãe iria achar bonito o mar, os ônibus com assentos confortáveis, roletas e letreiros luminosos. Ele fazia planos, queria uma vida melhor, por isso esqueceu do difícil primeiro dia e dormiu como um bebê após a amamentação.

            No dia seguinte, Zé acordou junto com o sol. Mesmo sem o seu galo, Billy, ele levantou na mesma hora de sempre.      O mestre de obras convenceu seu superior a contratar José Getúlio, mas logo veio o primeiro empecilho: José não tinha RG, CPF e Carteira de Trabalho, mas ainda bem que carregava o registro dentro de um pano alvo e um saco plástico, cuidava daquele único documento com o maior cuidado e temor.
            Um arquiteto estagiário se ofereceu pra levar Zé pra fazer os documentos, ele estava indo pro aeroporto, iria ver se a mala que tinham extraviado na sua última viagem havia sido recuperada, já que por telefone não se resolve nada mesmo, na volta, poderia levar o Zé para tirar os documentos.
            No início Zé, ficou acanhado, com vergonha do moço estudado e de carrão. Mas logo foi se soltando, pois viu que César era um cara legal.
– Você já foi no aeroporto, Zé? – perguntou César.
– Não, senhor– respondeu como quem fala pra dentro, o pobre do José Getúlio.
– Que isso, rapaz? O Senhor está no céu. Me chame de você – respondeu simpaticamente César.
– Tá Certo, Doutor? – falou mostrando mais a voz desta vez.
– Que porra é essa de doutor? Deixe de ser matuto e me chame de você, galado – César ria e dava tapinhas no ombro de Zé.
José Getúlio não sabia ainda o que significava galado, mas deduziu pelo tom de César que galado queria dizer amigo, e sorriu todo pomposo e pensou: – Se o povo do interior souberem que virei amigo de doutor, vão querer votarem ni mim para político e tudo.
– Ô, eu vou passar no aeroporto rapidinho, depois a gente passa na Central do Cidadão pra tirar seus documentos, ok?
Zé Getúlio disse que sim com a cabeça. Tentou não transmitir o nervosismo e o entusiasmo que estava sentido por saber que iria conhecer o aeroporto. Ele pensava em sua mãe, sua velha mãe que nunca tinha saído do sertão, ela ficaria feliz ao conhecer o mar como ele o fez no dia anterior, e também o aeroporto. José conversava consigo mesmo e, em pensamento, prometia a si mesmo trazer sua mãinha no próximo ano, quando ele haveria de ter um bom dinheiro, pois iria se esforçar mais que tudo para se dar bem na obra que caiu do céu para sua extrema alegria.
 Os olhos do nosso protagonista brilharam, talvez um brilho mais intenso do que quando o céu ameaça chuva no sertão entre o meio e o fim do período de estiagem, assim que viu o primeiro avião já no céu, César, ao perceber tal encantamento, decidiu levar Zé Getúlio no segundo andar do aeroporto para que ele visse a pelo menos uma decolagem.
   Assim que se deu conta do que estava vendo, assim que percebeu um avião decolando, Zé não conteve sua curiosidade e espanto e perguntou ao arquiteto:
– Cadê a rampa, homi?
– Que rampa, Zé?
– A rampa por onde o avião sobe. A rampa.