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quinta-feira, 23 de maio de 2019

A nobre arte de Ígor





– Um dia eu ainda saio dessa cidade.
– Pra onde você pretende ir?
– Pra qualquer lugar. Só não quero ficar aqui.
– Como assim? Por quê?
– Aqui, meu amigo, não tem nada de bom. Ninguém reconhece meu esforço, nenhuma mulher quer casar comigo...
– E em outro lugar seria diferente?
– Com certeza. Na capital, iriam perceber que minha arte vale mais do que pensam.
– Desculpe, mas eu não acho que na capital alguém vá gostar de colagem com feijão.
– Como assim?
– Ígor, só quem cola feijão em desenhos com papel carbono são crianças do jardim de infância. Por isso ninguém leva a sério o que você chama de arte.
– Até você? Há vinte anos eu utilizo esta técnica em minhas artes plásticas.
– E qual foi a última vez que alguém elogiou?
– Não lembro. Justamente porque aqui ninguém me valoriza...
– Não é isso. Só criança faz colagem de feijão.
           
Até mesmo o melhor amigo foi duro ao criticar sua arte. Desde o Jardim da Infância, Ígor fazia colagens de feijão preto em desenhos copiados com papel carbono. Talvez se ele aprimorasse a técnica, se usasse vários tipos de feijão ou fizesse os desenhos à mão livre, ele poderia ter algum reconhecimento, mas não. O artista incompreendido não abria mão da técnica que aprendera quando nem ainda saber escrever o nome.
Um dia, tomou coragem. Foi para a primeira cidade grande que conseguiu. Lá, expôs em praça pública as suas colagens. Algumas pessoas paravam para olhar, teve uma turista estrangeira que tirou fotos, mas ninguém, ninguém comprou nada. Ninguém nem elogiou.
Ígor decidiu mudar a estratégia. Foi para a frente do museu, quem sabe, ali, gente que entende de arte de verdade não iria reconhecer os seus talentos? Nada adiantou. O dinheiro começou a acabar. O artista chegou ao ponto de não produzir mais quadros novos para economizar feijão. Já estava pensando em voltar para o interior quando o melhor aconteceu.
Às nove horas da manhã de uma terça-feira, um carro dirigido por um juiz embriagado o acertou. Ígor morreu, mas, graças à nobre arte que o levou àquela calçada, o juiz foi condenado a se aposentar com salário integral e a pagar vinte cestas básicas, que atenuaram a fome algumas famílias da periferia.


2017