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sábado, 14 de junho de 2025

R'Orfanato

 


Os Poodles foram ignorados... depois os Golden, os gatos pelados. Calopsita já era, mas ainda tem quem goste. Já passaram o Kichute, os lenços de pescoço, o tomara que caia, Crocs... tudo passa. Ninguém come mais palha italiana, paleta mexicana, mas o Ninho com Nutella e o pistache resistem.

– Isso são apenas negócios... somente produtos.

– Até os cachorros?

– Claro, todos os animais, videogames, raquetes de beach tennis! Tudo é só um jeito de ganhar dinheiro.  

– Mas com os bebês é diferente, né, mãe?

– Olha... sei que é difícil aceitar, mas não... Com os bebês não é diferente. Eles são produtos.

– Como pode alguém achar que bebês são produtos?

– Então... tudo começou com amor mesmo. As pessoas gostavam, queriam ter os bebês... Era um tempo de certo alívio. O país, mesmo imperfeito, saía de um tempo muito sombrio, um dos mais sombrios até aquele momento. Por isso, todo mundo tinha muito afeto represado, muito amor guardado. Lembra das aulas sobre pandemia? Então, muita gente tinha perdido filhos, pais, irmãos e avós. Era normal que quisessem preencher aquele vazio. E sociedade é sempre assim... vez ou outra aparece uma moda, um delírio coletivo, ou qualquer outro sentimento compartilhado e cativante.

Tal qual cachorros exóticos e tie-dye, o desejo por ter um bebê cativava muita gente. Outras tantas criticavam, talvez também quisessem um objeto de amar para si, talvez era preocupação com o próximo mesmo ou só o desejo de falar qualquer coisa nas redes sociais. Instrumento de covardes e introvertidos, a internet deu voz e segurança a gente de tudo quanto é natureza. Na TV, era o direito à impunidade rondando quem debochava das instituições, seja por golpes ou bets; nos livros, uma tentativa honesta de resgatar vozes isoladas, vencidas pelo colonialismo; nos braços de muitos, lindos bebês com suas coleções de roupas, brinquedos e perfis bombados nas mais diversas redes virtuais e em muitos encontros presenciais... lembra, foram anos de reclusão, agora, com os bebês, havia necessidade de fazer festas de aniversários, batizados até partos confraternizantes.

– Mas, por que, mãe, os bebês viraram um produto?

– Nossa sociedade precifica tudo, meu filho. Compra-se tudo, até o afeto, até o amor, até a felicidade. Se um bebê demanda roupa, festas, brinquedos, likes e tudo mais, evidentemente alguém vai arrumar motivo para lucrar com tudo isso. Assim, o que era para ser apenas uma coisa prazerosa, um estilo de vida, uma missão ou sei lá o quê, é transformada num grande negócio, ou já nasce para sê-lo.

Pois é, os bebês entraram no desejo de muita gente. Sem qualquer preparo ou planejamento prévio, as pessoas queriam cada vez mais bebês. Então, a própria produção virou um mercado, uma vez que nem todo mundo conseguia seu próprio bebê. Demandava tempo e as mulheres, em sua maioria, estavam super ansiosas para cuidarem dos seus próprios projetos.

– Mas ninguém fez nada para que esse negócio fosse impedido? Claramente, é uma coisa que faz mal pra todo mundo, não é?

– Sim, mas quem controla o desejo? Muito poucos. Por exemplo, tinha uma ou outra mãe que já tinha mais de dúzia de filhos. Como quem coleciona sapatos e bolsas, nunca era o suficiente. Eu mesma conheci uma que tinha cinco bebês. Como se fosse uma coleção de gatos vira-latas que a gente vai recolhendo na rua para completar o álbum, sabe? Era criança branca, preta, ruiva... A mãe tinha cinco; todos diferentes uns dos outros.

– E isso é um problema, mãe?

– Na verdade, não é um problema não. Mas as outras pessoas não entendiam e começaram a perseguir quem usava seu próprio tempo para cuidar de um ou de vários bebês.

– Mas as mães não incomodavam ninguém, não é?

– Nem as mães e nem os bebês. Eles estavam ali em paz... mas o ser humano sabe ser bastante ruim. A perseguição foi tanta que muitas mães não quiseram mais cuidar dos seus bebês. No começo, elas só faziam o básico, até que todo carinho entre mãe e filhos acabou. Muitas simplesmente abandonaram ou deram seus filhos.

– Tem problema dar os filhos?

– Também não. Uma pessoa tem direito ao arrependimento, certo? Todo mundo pode mudar de ideia. E a grande maioria das que não queriam mais cuidar dos seus bebês, simplesmente arrumavam quem tinha mais atenção para dispensar a uma criança.

– E por que, apesar disso, as coisas chegaram a este ponto?

Enquanto elaborava a resposta, a mãe assistia a um filme na sua cabeça. Via os bebês sendo negligenciados e abandonados. Ela era mãe também e vivia imaginando que não queria que seus filhos passassem por isso. Foi aí que nasceu o Orfanato Pequena Beca.

– Eram tantos bebês rejeitados que faltou quem cuidasse. Tinha gente que tinha mais de trinta já. Era impossível dar conta de todos. Em alguns lugares do país, houve quem montasse orfanatos como o nosso, mas boa parte dos inocentes não conseguiu ser resgatada e simplesmente desapareceu. Foram consumidos pelo tempo.

A campainha toca. Correios. Ela recebe uma caixa bem grande depois de assinar um papel. Ansiosa, corre para a mesa onde o filho espera em frente a um bolo de aniversário. Treze velas ainda apagadas decoram o pequeno bolo que é apreciado por centenas de outras crianças, a grande maioria bebês. A mãe abre o pacote, retira um corpo apenas com pernas de dentro da caixa e troca a cabeça e os braços do Nicolas de corpo. Ela também muda o cabelo e faz um buço leve no rosto do menino. Todos cantam parabéns para você, a mãe corta e serve o bolo. Só ela come.

 

* Imagem gerada por IA 

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Pipoca de graça, sinapses invadidas

 



Semana bosta. Preguiça, ansiedade. Gente fazendo merda. Livros não caem do céu, que burrice! Mas é isso. É sábado e tem peça legal e de graça na Rampa. Tem que chegar cedo para pegar lugar e aproveitar a pipoca de gratuita. – Eles fazem peça de graça e dão pipoca por que são bons, pai?  – Não. É para ter desconto no imposto. – Mas isso é ruim? – Não, todo mundo ganha. A gente, o artista e a empresa que se promove. – Ah – disse em tom de “entendi” e encerrou o assunto. Se ela entendeu, quem, diabos, sabe? Às vezes, é mais esperto se fazer de doido para não endoidecer de verdade. Preciso anotar isso. – Quer pipoca? – Sim. E fomos para a fila. Três filas. Três grandes filas. Pipoca de graça, tudo bem. No fim de uma delas, apenas, sacos cheios de pipoca nas mãos dos que esperavam. – Qual a diferença entre as filas? – Esta é paga, as outras duas são de graça. – Ah, Obrigado. – Hei, vamos para a fila da pipoca de graça!

               A fila não andava. O pipoqueiro colocava, propositalmente, bem menos pipoca na pipoqueira a fim de enfadar a clientela. – Olha, já fui reclamar com a organização. Esse pipoqueiro está ganhando dinheiro e não está botando nem metade do milho que a panela dá conta de uma vez – a senhora desconhecida falava comigo.  – Olha aquela lá, olha como aquele pipoqueiro faz mais pipoca! – Aquela é paga, senhora – respondi gentilmente. – Eu sei, mas se ele consegue fazer aquela quantidade de pipoca, esses de graça também podem fazer assim. A Marquise tá pagando a eles – retrucou educadamente austera. Ela tinha razão. Não existe pipoca de graça. Eu tinha acabado de explicar isso para a pirralha. Mas é sábado. Não vou me estressar por pipoca de graça... vou só assistir à peça.

               – Hei, bora lá arrumar um lugar e ver o filme? Olha como eles estão colocando pouca pipoca. Não vale a pena. – Sim – e me surpreendi, fosse antes, eu não ganharia tão fácil, sem chantagem. Aquela manada esperando dois punhados de pipoca servida em um saco grande e colorido estava me angustiando, irritando a senhora desconhecida e entediando mais outros que escolheram não se manifestar apesar de perceber a sacanagem. Naquele dia mais cedo, estava pensando se ainda vale a pena sair de casa... tem tudo na TV, com imagens ótimas, som excelente e com perpétuos lugares no meu sofá retrátil, além de Coca Zero na geladeira e nenhum estranho. Na grama em frente ao palco, evidentemente, não tinha mais nenhuma cadeira. Ficamos lá, em pé, com uma visão relativamente honesta. Não chegamos mais cedo... Paciência. Inequívoca resiliência. Na nossa frente, uma família de caboclos de estatura média, filhos bonitos, um deles no colo da mãe enquanto o carrinho descansava. Ao nosso redor, pessoas iam chegando e se acomodando. Aplaudimos o curta que abria a peça, o diretor, os dubladores. Já já subiriam ao palco novamente e estrelariam Sinapses de Darwin.

               Peça boa... muito boa. Era Slipknot, Mad Max, Minions, Divertidamente, Revolução Francesa. Obviamente poético, de muito bom gosto aquela bateria foda no coração e a absoluta guitarra na cabeça. Dois músicos fodas da cidade. Admiro-os com inveja. Que peça linda! Que bacana todo mundo ali de graça, fazendo reels, tirando fotos com flash, comprando espadas brilhantes do senhorzinho ambulante, crianças correndo e idosos trazendo grandes sacos coloridos com pouca pipoca. Que harmonioso caos. Isso não tem em casa, isso não tem nem num teatro fechado! Era o teatro raiz, com artistas de elite, gente da Globo, gente de teatro internacional e boa parte do público ignorantes a tudo isso, só com o belo para admirar.

               Perdi entre oito e quatorze minutos de peça alheio em pensamentos com argumentos precisos, com coisas que me estressam e que não devem valer minha energia. – Fulana, vem cá. – Com licença – ordenou a fulana que poderia dar a volta, não custava nada, não mexeria com ninguém. Aumentariam dois ou três passos, muita coisa... – Oi, Dona Joana. – Essa peça é infantil ou de adulto? – Olha, Dona Joana, nem eu mesmo estou entendendo muito bem. Tem hora que é de criança, tem hora que é de adulto – disseram e se calaram. O que é peça de adulto? Tem que ter piroca, sexo, violência, vazio existencial, dívidas? E se for peça de criança, adultos jovens e velhos não podem ver, caralho? Que coisa idiota, que raiva idiota! Sim, eram duas tontas que não ficaram mais de doze minutos vendo a peça entre o casal que estava à nossa frente e tiveram de se separar por ou um capricho alheio. Direitos não podem ser privilégios, um outro pensamento intrusivo, mas coerente, me dominava. De um lado, o homem e dois filhos no chão – duvido que viam algo; no meio, Fulana e Joana; e, do outro lado, a mulher e o bebê de colo no colo.

               Sapiens de sapiência morosa saíram, a família simpática se juntou novamente, a peça, então, voltou. – Tá entendendo? – Tô, pai, e tá muito legal! Ela assistiu à peça toda de pé, postura horrível, sem reclamar. Aplaudimos, fotografamos. Nós dois e todos ali. Maravilhados. Mais aplausos para os agradecimentos emocionados da Companhia. A emoção do público, apesar de dispersa, era notada; claramente muito menor que a dos que reviam na mente suas jornadas de artistas costumeiramente desvalorizados, seja pela crítica, por quem compra espadas iluminadas do meio da apresentação ou quem atrapalha ao menos três grupos certamente interessados para assistir a no máximo dez minutos de uma peça que não se define como adulta ou infantil. Não é sempre, mas às vezes eu também gosto da minha profissão.

               Fim de festa, muitos felizes, o carro no lugar deixado, sem flanelinha, sem arrombamento. Era a brisa do rio, os barcos no porto, o milho Yoki premium mais caro do que a lógica prevê esperando para ser estourado e temperado com sal e manteiga de garrafa. Era ali agora, filme em casa, sem gente falando, sem espada piscando, sem foto com flash, sem idosos inconvenientes e acompanhantes amarguradas, sem fila, sem criança gritando ou correndo ou gritando e correndo, com Coca Zero e um controle remoto capaz de pausar a história se tiver uma improvável distração externa.

 

Rodrigo Slama

*Imagem do Google

terça-feira, 1 de outubro de 2024

Maconha, Rivotril, Tadala

 


 

Ele já estava estressado pelo jogo da Eurocopa. Nos últimos tempos, não eram só os jogos dos campeonatos do Brasil que via, mas maratonava, ensandecidamente, qualquer jogo transmitido ao vivo em telas tortas do YouTube. Era melhor ver futebol do que só falar de eleição, pelo menos. Hoje, as telas da TV e do celular estão em simbiose, antes só um ou outro. Droga! Ambos fazem parte de sua cognição lapidada para se aproveitar da segurança do lar para fazer qualquer coisa que achava que quisesse.

               “Olha só! Além de poder abortar, agora tá liberado fumar maconha. Faz o L!”. Dizia irritado ao olhar o WhatsApp. Não adianta discutir com ele. É teimoso... E  estava irritado porque a Holanda perdeu. Ah, não... ele não tem nada de Holandês, mas certamente perdeu, de novo, dinheiro para a tal da bet. Curioso, não é?... a outra Beth roubava da África e morreu santa... Agora outras bets tiram dinheiro de gente desesperada para comer melhor ou de gente fraca das ideias... Será que tem alguma relação estre estes nomes? Não sei. Nem quero saber mesmo. Só queria que aqui em casa fosse mais seguro do que a rua. Talvez faça isso na crença da proteção, mas ele é o principal agressor... ele e seus amigos que endossam barbáries.

               Tive que passar o resto da noite ouvindo o mesmo discurso que está longe de ser retrógrado, apenas, mas verdadeira ferramenta de lavagem cerebral, doutrinação em massa... Fake News é foda! Mata gente, rouba gente, prende gente.  Nos dias seguintes, foi aquela ladainha. “Quarenta gramas de maconha pra todo mundo? A minha pode jogar fora!” Seria engraçado. Eu jogaria a dele “fora”, e teria mato pra aguentar mais uma semana ou mais, dependendo, ele mesmo. Enquanto isso, ele torcia para a legalização das apostas no Brasil. “A bet é boa, mas um cassino me deixaria rico!” Pobre iludido. Iludido... Irritado. Se irritou tanto que tive que dar vinte gotas de clonazepam. Praticamente, não fazia efeito, mas era bom pra acalmar.

               “Agora, todo mundo vai ter que abortar e fumar maconha! Nunca fumei, não vai ser hoje que vou ficar fumando droga!” Verdade. Nunca deu tapa. Nada. Disse. Mas fumava charuto cubano com os amigos, bebia toda bebida que estivesse à disposição. Além disso, era remédio pra dormir, remédio pra acordar, remédio pra foder. Remédio pra não surtar, remédio pra ficar de boa, WhatsApp, caminhadas pela pátria, igreja... Grupo. Grupos! Calma... Tudo escrito, reescrito, prescrito... Foi o médico que passou, foi o pastor que disse, foi o grupo, foram os grupos! Talvez seja remorso porque batia na gente, na minha mãe... Ok, parou faz sete anos, mas batia. Batia.

               Hoje, é maconha, mas já foram as cotas, a pec das domésticas – nunca tivemos empregada –, qualquer coisa que o grupo dissesse... Era fácil, sem reflexão, sem culpa, mas também sem gozo. Era tudo uma balança que nunca era igual. Por mais que ele defendesse a moral, nada poderia limpar sua consciência. Trair a minha mãe não era nada. Nada também de maconha, mas um padê para beber mais era normal na juventude. Lança? Até hoje dá saudade. Cloridrato de Tadalafila é item da lista de feira. Segundo confidência de mãe, nem deve tomar com ela. E, como não sai de casa, não deve tomar com ninguém. É ele, o álcool, os estimulantes e o celular. Sempre o celular!

              

               Já faz semanas e a maconha não sai da sua cabeça. Me disse pra tomar cuidado... se fumasse maconha, acabaria virando sapatão. Oi? Não adianta. Eu não queria me desgastar. Mas ignorar não era fácil, talvez, nem preciso. Era ali. Um rio correndo entre mim... Quais drogas posso? Quais crimes posso? Muito menos que homens, muito menos que héteros, muito menos que brancos.

 

– Toma.
– Opa!
– E aí?
– Muito boa. As suas são sempre boas.


Rodrigo Slama

*Imagem do Google

quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

Desígnio e despropósito

 





Novo escritório, novo emprego. Casos de família, herança, briga de vizinhos por mangueira no meio dos lotes... Doutora Tereza estava num bom momento de sua vida.
        – A doutora é casada? – perguntou a recepcionista. Uma senhora indistinta, seus sessenta anos e poucos.  

          – Boa tarde, Dona Socorro. Por que a pergunta?

          – Ah, não leva a mal não, doutora. Que a senhora tem tantos anéis nos dedos, que não dá pra saber de aliança.

           – Eu gosto de anéis, mas, sim, tenho um companheiro.  

           – Então não é casada...

           – Como não?

           – Mulher casada tem marido. Foi na igreja o casamento?

           – Não – respondeu Tereza, um pouco constrangida. Mal tinha começado no escritório novo e a já se sentia invadida, julgada.

            – Hoje em dia tá assim, né? O importante é ser feliz.

            – Verdade! – e fitou alguns dos papéis que levava.  

            – A senhora é feliz, doutora?

            – Olha... eu sou, mas eu estou um pouco ocupada, podemos terminar esse papo depois?

            – Tem quantos filhos?

            – Oi?

            – A senhora tem quantos filhos?

            – Nenhum...

            – E quer ter?

            – Não sei, então...

            – E como é feliz sem filho? – perguntou com toques de desaforo à desconfortável inquirida.

Tereza parecia estar numa praia ensolarada de águas quentes ameaçada por um iceberg invadindo a areia como um gigante jet-ski controlado por um patriota enraivecido enquanto saudava a neve que caía. Nada fazia sentido, mas ela, de alguma forma, contemplava, sem transparecer tensão, aquele questionário infindo sobre tudo, exceto trabalho, seu motivo de estar ali. A recepcionista, sem deixar mais que poucos segundos para a advogada raciocinar, solta!

             – É porque, doutora, a mulher só é completa quando tem um filho, sabia?

             – Oi?

             – A mulher só é completa quando tem um filho. É o maior propósito das nossas vidas. Deus...

             – Então, senhora, olha aqui uma coisa! – Tereza levantou a calça do terninho que usava e deixou à mostra sua prótese.

             – Me desculpa, doutora. Mil perdões.

 E nunca mais falaram além das brevidades pseudocortesas do dia a dia. Não sabia Tereza se todos aqueles ataques travestidos de intenções amistosas tinham sessado por conta do deboche com que atacou para se defender ou da pena que possa ter recebido. Talvez fosse a dó. Mente limitada não entende o sarcasmo.



Rodrigo Slama, 21/12/23


* Imagem criada por IA

sexta-feira, 9 de junho de 2023

A colônia dos velhos sisudos

 




Estava cada vez mais difícil controlar os velhinhos. Se dessem mais drogas, não acordariam. Era a colônia dos velhos sisudos. A grande maioria era homem, todos ali não sabiam amar. E já faziam hora extra. Já estavam esquecidos, definhando, enteiando. Evidentemente, algo tinha que ser feito.

Chamaram uma nova fisioterapeuta. Garota vanguardista. Analisou a clientela, em corpo e lisura. Sabia que seria difícil, porém aceitou. Seria sua primeira experiência registrada... era recém-formada, nem sabe ao certo como foi chamada para uma entrevista... Começava o período de experiência e deveria conquistar aqueles velhos carrancudos.  

Na primeira semana, tudo ótimo. Moça bonita, simpática. Mas logo enjoaram. Ninguém tentou mais impressionar a profissional levantando um halter de meio quilo. Teve que bolar um plano. Eles, apesar dos oitenta médios, eram apenas meninos. Jogos iriam ajudar. Deu certo. Até demais.

Brincadeiras, à primeira vista bobas, revelavam-se uma potente ferramenta para o desenferrujar das velhas juntas. Logo logo, na gana do jubiloso triunfo, competiam e declaravam o campeão do dia. Durou mais duas semanas assim, enjoaram. Depois que todo mundo já tinha ganhado ou perdido, o tédio voltou a abraçar os longevos. A fisio teve uma ideia.

– Quem for o vencedor da semana vai ganhar um cigarro!

– Cigarro?

– Pigarro?

– Que finado?

– Cigarro mesmo?

– Opa! Agora eu jogo...

– É... vocês num falaram que tinham vontade de fumar de novo? Que agora não faz sentido cuidar da saúde, etc? Então... vou dar um cigarro pra quem for o vencedor da semana. Daí vocês voltam a se esforçar.

– É uma carteira de cigarro?

– Claro que não. Apenas um cigarro?

– Um cigarro?

– Que catarro?

– Quem fuma só um cigarro?

– Então, não trago nada.

– Uma carteira, vai. A gente divide.

– É, a gente divide!

– Carta pra mim?

– Mas eu não posso entrar aqui com uma carteira de cigarros para vocês. Se alguém pega vocês fumando...

– Não vão pegar.

– Quem tá cantando?

– Vão pegar não, doutora.

– Doutora, você traz o cigarro, a gente brinca e cuida da carteira.

– Pois é.

– Ah, bom... agora eu vou jogar.

Segunda-feira, chega a fisioterapeuta com mais jogos. Os velhinhos se animaram... no final do dia, perguntaram do prêmio.

– Calma! Na sexta-feira a gente vai saber quem é o campeão.

– Mas a senhora vai dar o cigarro, doutora?

– Opa, também quero.

– Maria?

Sem prometer nem acabar com a esperança, seguiu com os exercícios. Não se lembravam de quando estiveram mais empolgados, os moradores do asilo. Tudo por conta de uma carteira de cigarros. E ela veio. Seu Eugênio foi o campeão. Recebeu o contrabando e dividiu com todos que queriam. Cada um cuidaria de não ser pego e racionaria até a próxima semana, quando Seu Alberto seria o campeão e também dividiria, como dividiu Dona Aurora na semana seguinte e na outra, pois ganhou novamente.

Semana após semana, os velhinhos faziam todos os exercícios propostos. Nunca estiveram tão felizes! Claro que perceberam o boró rolando, mas os benefícios, àquela altura da vida, eram, por incrível que pareça, melhores. O cigarro virou o motivo de alegria até para os velhinhos que nunca tinham fumado antes. Por sorte, outra parte do corpo pararia de funcionar antes da fumaça atacar os pulmões.

– Alguém chama a polícia!

– Ajuda, por favor!

– Quem pegou o cigarro?

– Maria! Maria!

A confusão foi generalizada. Seu Osvaldo, o campeão da semana, ao contrário dos colegas, disse que não dividiria os cigarros. Àquela altura, já haviam criado uma microeconomia local e, como em qualquer cadeia, os cigarros passaram a ser uma moeda valorizadíssima. E o que era brincadeira virou coisa séria. Não deu polícia porque idoso morrer em asilo de queda é a coisa mais comum do mundo. Foi a queda mesmo que vitimou o infeliz egoísta, mas ninguém fala que foi Dona Nair, munida de sua cadeira elétrica, quem, dolosamente, levou o Osvaldo ao chão. Azarado Oswaldo, nem teve sorte de cair sem bater a cabeça num grande vaso de barro cheio de babosas.

 

Rodrigo Slama 09/06/2023

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quinta-feira, 25 de maio de 2023

The first of them

 


        Agora, nós já estamos terminando. Somos as últimas folhas da caatinga caindo na acendalha de uma estiagem eterna. Até onde chegaria a nossa Evolução se continuássemos aqui por mais alguns milhares de anos? Sabe o que é curioso?... Eu sempre quis ver o fim do mundo. Egoísmo? Não sei, mas também queria ver o que seria do mundo sem mim. Talvez seja este mundo agora. Assim... Sei nem se a gente ainda está aqui.

Os poucos que nasceram depois da pestilência não duraram muito. Nem chegaram a aprender a falar direito. Não sabiam de nada. Nem sei se a gente pode chamar de ser humano... apesar da casca ser a mesma, por dentro eram todos ocos, mas também, nós não conseguimos ensiná-los muito bem sobre nada. Era só tentar sobreviver. E não dá para sobreviver carregando uma criança que nem sabe correr ainda, chora, come... Eu mesmo não dei conta disso.

Era 2023. Nem me lembro quanto tempo passou depois disso. Nos perdemos nas contas ou as contas se perderam propositalmente. A humanidade tinha acabado de sair de uma pandemia violentíssima... havia uma renovação da confiança na Ciência... a vida voltava à naturalidade. Shows lotados, muita gente nas ruas, estádios lotados... E foi justamente aí que começou o nosso flagelo.

Depois de quase trinta anos, o Botafogo venceu o campeonato brasileiro. O motivo de alegria, choro, pagamentos de promessas e muita zoação – tanto dos que perderam pelos que venceram – também foi a centelha no nosso fim. De uma hora para a outra, por mais impressionante que possa parecer, milhões de camisas do alvinegro carioca passaram a ver a luz do sol depois de décadas. Muita gente nem lembrava que tinha camisa, nem que já tinha comemorado um título, fora muita gente que nasceu depois disso. Teve gente que herdou ou guardou uma camisa como lembrança de um pai, tio ou avô e quis, também, usar em sua homenagem... Botafoguenses ou não.

Foram tantas camisas guardadas, desgastadas, amareladas e mofadas circulando pelo país que houve uma grande onda de alergia que, basicamente, fez com que os seres humanos fossem semeadores de vários cruzamentos de fungos. De tanto espirro e escarro, esta grande orgia cogumelar originaria o Cordyceps Botafoguensis, nosso algoz. E para fungos não existe vacina, muito menos funcionariam remédios de verme.

Rodrigo Slama, 25/05/23
           
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quinta-feira, 11 de maio de 2023

Entre sapos, pombos e cookies




– Cara, tu já reparou no cocô do sapo?
– Como é, mano?
– O sapo, pô. O cocô!
– Claro que não! Ó as viagem...
– Cara, eu vi um sapo cagando metade dele de bosta.
– É o quê? – chega engasgou rindo.
– É, pô. Um sapo, tá ligado? Cagou quase a metade dele de bosta.
– Isso é impossível!
– Rapaz, eu tô dizendo! Fui ver, o sapo come mosca pra caralho por dia. A gente ia tá muito fodido sem sapo, viu?
– Mas de onde você veio com esse papo de sapo, doido?
– Ouxe! Tu já reparou no cocô do sapo?
– Puta-que-me-pariu, eu tenho mais o que fazer!
– Pois eu vi.
– E daí, viado? Que que tem o sapo cagar grande?
– Que que tem? Que que tem que ainda bem que é sapo!
– Ouxente!?
– Já pensou se fossem pombos?
– É o que, noiado?
– Já pensou se os pombos cagassem quase metade do corpo de bosta?
– Que papo de doente, cara...
– Mas, digaí, já pensou?
– Ia ser uma merda!
– Ia sim, Quinta série! – rindo somente pela imaginação e pela amizade. A piada, claro, foi rasa.
– Pombo come o quê?
– Não deve ser mosca.
– Por quê?
– Porque sapo come mosca, pô.
– E pombo não pode comer mosca, não?
– Se sapo come mosca pra caralho, ia faltar mosca...
– Ia se massa!
– Mas aí o sapo não ia ter comida.
– Quem liga pra sapo, bicho?
– Ouxe! Tu já reparou no cocô do sapo?

Rodrigo Slama, 11 de maio de 2023. 

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segunda-feira, 20 de março de 2023

As férias de Cristo

 

 


Depois de muitos anos sem pisar na Terra, resolveu ir num lugar que não frequentava muito. Pegou a mochila, um mapa impresso e um casaco pesado. Queria ver as pinturas sobre ele de que tanto falavam.

– Museu grande da porra! Maior que muita igreja por aí! – pensou boquiaberto o Senhor.

Foi pegar um guia, tinha de um bocado de idioma, menos no seu. Quem liga para a língua de Jesus? ... Passou de sala em sala. Mirou. Achou estranho ser pintado como um homem bem branco, mesmo nascido no árido... Andava e revia o mesmo retrato de sua vida. Se via apenas como um signo, limitado.

 – Meu Senhor, chegou antes do previsto das férias?

– Pois é, Biel. A galera lá é muito esquisita. Só tem pintura minha sendo morto.

– Não é de se estranhar, Senhor Jesus! A Sua morte é simbólica para a Humanidade... marca seu tempo, sua moral...

– Sim, mas SÓ me pintam morrendo... no máximo ressuscitando. Fiz tanta coisa, mas só querem mostrar meu sangue, meus olhos, minha coroa de espinhos!

– E o que seria melhor que retratar a Salvação do Mundo?

  O quê? Fiz vinho do bom, multipliquei os pães, fiz o peixe ser compartilhado pelo povo, curei uma pá de gente e o só sabem me pintar morrendo?

– Não é sobre Sua morte, é sobre toda Sua vida!

– Ah, vá!

– E da igreja que Senhor queria ver, gostou?

– Não entrei. Tava muito caro o ingresso. Achei melhor gastar o dinheiro com cerveja.

 

Rodrigo Slama 20/03/23

*Imagem do Google 

sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Companheiro Ema e o Barba

 


Deu tudo certo, a festa foi linda e nenhum incidente que oferecesse algo além de mais vergonha aos famigerados e fundamentalistas lunáticos aconteceu. Dia 01 de janeiro de 2023. No relógio, já era dia 02, mas o dia só muda quando a gente dorme. E o Presidente – sim, sempre, ele, com P maiúsculo – não poderia dormir sem cumprir mais um ritual, improtocolado.

– Olá, meu velho amigo.

– Opa! Quanto tempo... Estava te esperando.

– Eu sei, Companheiro Ema, mas o dia hoje foi corrido. Vim pra cá assim que deu, sabe?

– Não tô falando de hoje, Barba. Você sabe o que eu e as outras Emas passamos?

– Mas, companheiro. Não dependia de mim!

– Tem menino novo aqui que acha que é mentira que aqui já teve morador legal. Eu conto as histórias e o pessoal nem lembra. Dos antigos, só fiquei eu.

– Sinto muito. Eu fiquei sabendo.

– Mas não veio aqui fazer uma visita.

– Eu não podia. Eu também fiquei preso por conta de todo esse golpe contra o país.

– Barba, a JurEma, minha esposa, morreu!

– Sinto muito. Sei o que você está sentindo.

– Sabe não, Barba! Você tá casado com uma gata. Eu já tô velho e ninguém daqui me quer.

– Eu vou mandar botar mais algumas emas fêmeas aqui no jardim.

– Não é sobre isso, cara. Você não tem noção!

– Eu tenho, companheiro. Estou aqui hoje para falar contigo. Eu poderia estar transando agora e tô aqui! – disse o Presidente sorrindo.

– Ah, vá. Mas não tem noção mesmo! O maluco queria me dar remédio de malária, meu irmão.

– Mas você fez muito bem em ter bicado ele, companheiro! – disse o Presidente meio cansado, mas rindo bastante com o reencontro.  

– Saiu no jornal, né?

– Saiu em tudo quanto é canto! Até eu que não tenho celular vi os memes.

– Ainda bem que alguém riu desta história – disse Ema claramente mais leve.

– Agora as coisas vão mudar. Vamos tomar cerveja e comer picanha, companheiro... e...

– Porra, Barba, tu vai meter esse papo carnista pra cima de mim?

– Desculpa, companheiro Ema. Vou mandar lá no cocho aquela ração premium que você gosta.

– Sério? – perguntou a ave extremamente animada.

– Claro, companheiro. Eu disse que a gente ia sorrir de novo.

– Verdade... tô rindo aqui e nem tenho dentes – disse Ema sorrindo.

– Vamos sorrir muito ainda, companheiro. Está só começando.

 

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Rodrigo Slama 30/12/22

sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Futtobōru




Fazia tempo que os deuses japoneses não trabalhavam tanto. Quando a tecnologia, a civilidade e a educação dedicam-se ao avanço social, ópio deixa de ser eficaz. Mas em tempos de Copa do Mundo até o mais ateu acredita. Quando o assunto é futebol, não existe lógica, ideologia ou compaixão à dor alheia, restam o amor, o bairrismo e a fé.

A fé boa, neste caso, uma fé que quer a dor do outro apenas por levar alguns gols. É uma guerra sem mortos - sem contar os da construção dos campos -, sem sangue, sem espada ou tiro. Uma luta com o único objetivo de sorrir, apesar de tudo. - Pobre menino suíço, em pelo menos algo o Brasil tinha que ser melhor! Olha que Deus não seria brasileiro nem se pudesse escolher, ou melhor, sobretudo se pudesse escolher. 

As divindades que tocavam o Brasil - e são muitas! - estão há muito ocupadas com a miséria e o ódio para terem tempo de ver futebol. Daí quem trabalha na Copa, claro, são os deuses de quem tem barriga cheia e teto para morar. Certamente, os outros até tentam, mas são os dos abastados os que trabalham mesmo neste período. Uns só de quatro em quatro anos mesmo. Os do Brasil não. Pelo menos pra isso não precisamos de ajuda. Hachiman e Benzaiten, no entanto, faz tempo tomaram pra si a missão de alegrar seu povo, mesmo que a sociedade quase nunca precisasse deles. Pelos menos, pelo futebol, eram lembrados... Gostavam de se sentir úteis. 

Não, os seres que ouvem os costa-riquenhos não são mais poderoso. Tengu, Kannon, Amaterasu e todos os outros estavam era mesmo de ressaca naquele domingo de fim de novembro. Foram dias de festa. Ganhar da Alemanha não foi fácil... claro que vacilaram, mas compensariam contra a Espanha. Estes deuses, como seus fiéis, ainda são aprendizes, mas não arredavam da missão que aceitaram há poucas décadas mortais: os antepassados japoneses estão no caminho de conseguirem seu primeiro campeonato mundial de futebol. Para isso, pelo menos, eles têm motivação. Para mais nada são necessários naquela ilha oriental.


Rodrigo Slama 01/12/22

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quinta-feira, 24 de novembro de 2022

Do pó à luz

 




Eles conseguiram dar o golpe. Houve resistência, guerra civil. Lula morreu, Chuchu derreteu. Acabou. Havia 215 milhões aqui, não sobrou mais nada. Uma terra arrasada. O continente dizimado. Sobrou pouca coisa. Era melhor continuar num estado de exceção ou ter morrido todo mundo? Vai saber... Agora tudo é pó. Não existe mais nada, não há mais nada.

Anos passaram. O sol começou a aparecer. Alguns humanos começaram a retornar à superfície. Todo mundo apavorado. Todo mundo sem criticidade. Sobreviveu só a massa. Os intelectuais, líderes, políticos... todos morreram. Pareceria que o país fora fadado à extinção, não fossem os homens magros saídos das cavernas.

Aos poucos, todos se agruparam. Não tinha sobrado mesmo muito lugar pra viver. O que outrora o Sudeste, era apenas o centro... o que restou. Uma ilha sem vizinhos, sem floresta, sem qualquer coisa que lembre um país ou mesmo uma comunidade. Era apenas uma terra destruía, cercada de mato e nenhum fruto. Tudo um deserto de ervas daninhas e sobras de concreto e construções.

Não havia gente, quase. Uns morreram na guerra, outros pelo colapso da energia e do ar. Sobreviveram por quase duas décadas no submundo, nos esgotos, nos rincões. Alguns comeram carne humana, outros se restringiram a ratos e tatus. Sobreviveram, afinal, não se sabe por misericórdia ou maldade divina. Mas estavam de volta e conseguiram respirar.

Não demorou muito, veio o salvador. O mais velho, o único líder sobrevivente. A única pessoa que poderia tocar o Brasil em frente. Era ele, tinha que ser ele, era a vez dele. O que ele não pôde fazer antes, faria. Governaria o país pela escolha unânime dos sobreviventes. O golpe que motivou a guerra enfim mostrava a que vinha. Era a elite de volta ao poder. Era Minas de volta ao poder. Aécio Neves, presidente aos oitenta e dois anos.

 

Rodrigo Slama 24/11/22

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sexta-feira, 18 de novembro de 2022

A Cartomante e o Cético

 



Casa de Tranca-Rua. Cartomante. Mãe Clara de Oyá.

Tinha sempre consulta. Tinha vezes em que nem desvirava para almoçar, diziam. Duvido. Duvido de tudo e fui ver, disse. Passei uns dias indo. A leitura das cartas não me pegaria como pegou Camilo. Não! Eu não me deixaria me envolver pelas palavras, promessas, amores e fama de lá. Mas voltei. Voltei em outros horários e forcei uma amizade. Nossa, fazia tempo que eu não conhecia gente nova, ela agradecia por ter alguém pra falar de macho, passear... essas coisas.

– Bicha, faz tanto tempo que não saio numa sexta ou num sábado.

– Bora, mulher. Bora tirar um dia de folga.

– Tenho compromisso com Dona Maria Padilha.

– Você tem é boleto, né, mulher?

– Como é?

– Nada não – disse se fazendo de besta.

O tempo passou, não disse o quanto. A gente foi ficando amigo. Ela um tempão chamando que queria ir pro samba no Beco da Lama. Mas já disse que não posso, que tenho psicólogo. Faz meses que tento trocar de horário, mas esse é o único. Enquanto eu fazia análise, Clara dava consulta. E eu justamente discuti isso naquela sessão. Já fazia meses que eu era ‘amigo’ daquela cartomante que eu já estava com pena da mulher. Ela não era má, era apenas meio doida, acreditando na própria mentira. De qualquer maneira, eu não queria lá e desmascarar a charlatã, só queria que ela suprisse suas carências de outras maneiras.

– Mãe Clara, olha só. Tava pensando aqui. Meu psicólogo tem um amigo pra indicar que também tem horário na quinta. Você num tava querendo deixar de atender na quinta de noite?

– É, mas eu quero parar da dar consulta pra ir pro samba, pro funk...

– Ah, mas então vá sozinha.

– Você sabe que não vou sem você.

– Então faz assim. Faz duas sessões de terapia e eu perco uma minha pra sair contigo.

– Num preciso de psicólogo!

– Tá, mas eu preciso, mulher.

Riram e marcaram as consultas. Foram ao Beco na terceira semana, mas ela tinha gostado da análise e retornou para um longo ciclo. Agora ela faz cursinho para o ENEM e está trabalhando numa loja de tecidos. A renda baixou muito, mas não tinha como continuar depois que acordou. Nada mais baixou, conseguia ver que enganava, quebrou a confiança. Ainda não despachou tudo, mas retirou o letreiro da vista do rio. Não era nem caso de psiquiatra não, tá vendo?, disse.

Quanto ao amigo, ele nunca mais pensou em desmascarar a amiga. Ele estava, justamente, trabalhando o fato de estar começando a se sentir mais conectado a algum tipo de energia. Mas tudo é energia, não? Somo matéria e matéria troca energia com o ambiente. Será que eu sou médium?, perguntava. Será que eu tirei Clara do caminho, da religião, doutor?


Rodrigo Slama, 18/11/2022


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quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Pastor 8 - Patriota de ocasião

 



– Irmãos, vamos orar pelo novo presidente. Deus escreve certo por linhas tortas. Tudo o que acontece é por vontade divina, amém?

– Amém! – disse a igreja em coro.

– Pastor?

– Sim, irmão. Diga a sua dúvida porque hoje Deus está falando comigo mais do que o normal, amém, igreja?

– Amém!

– Pastor, o senhor me desculpe, mas a gente fez setenta e sete dias de jejum pra reeleger o mito e agora a gente vai rezar pro nove dedos?

– Sim, irmão! – disse firmemente o pastor para espanto dos cochichos que ratificavam a razão do irmão.

– Por quê?

– Olha só, irmão. Você está duvidando da vontade de Deus?

– Claro que não, pastor. Mas a gente agora vai ter que orar pra bandido?

Cochichos e mais cochichos se espalharam pelo salão. A igreja estava quase cheia, exceto por alguns membros que foram pedir ajuda dos militares nas ruas da cidade. O pastor não concordava com isso... A igreja tem fazenda, vende muita coisa... tem lavanderia também... muito investimento. Tudo para ajudar na obra do senhor, segundo.

– Nos tempos de Cristo, a população também escolheu Barrabás. O povo é assim. Gosta de bandido.

– Sim, e nós vamos ter que aturar isso orando? A gente devia ir pro quartel junto com os outros irmãos!

 A igreja não sabia a quem apoiar. O irmão estava certo para eles, errados, mas o pastor era o pastor. Apesar de errado, era pastor. Mas é aquilo, né? É demais esperar coerência de neopentecostal. É sacanagem com o gado, eles bugam!

– A gente vai orar para que ele não feche nossas igrejas e não transforme os banheiros das escolas em lugar de pedofilia, amém? A gente vai continuar lutando contra o inimigo. O Diabo só está preso até hoje porque a gente ora para ele fique preso, amém?

– Amém, pastor! Tá amarrado, em nome de Jesus.

– Eu não aceito orar para aquele ladrão. Eu quero que as forças armadas botem os tanques nas ruas e mate ele, amém.

– Amém! – disse a igreja, sem refletir.

– Se ele morrer, quem assume é Alckmin, não ajuda em nada e o tinhoso ainda vira herói e a petralhada nunca mais sai do poder.

– Tá amarrado! Tá repreendido!

– Pastor, eu não vou ficar aqui orando por Luladrão não, eu vou pra rua lutar pela nossa liberdade, por Deus e pela família!

– Eu também vou! – gritou um adolescente que estava com a camisa da CBF por debaixo do terno barato.

– Virou rebelião agora? Isso é coisa de comunista! – gritou o pastor quase perplexo.

– Tá amarrado!

Sem que precisasse mandar, os demais irmãos cercaram o irmão rebelde, estiraram as mãos e começaram a bater os pés direitos fortemente contra o chão enquanto gritavam palavras de ordem na intenção de expulsar um demônio. Não existia demônio algum naquele corpo desalmado. Porém, maluco, é que o cara ficou puto, e com certa razão. O próprio pastor dele e os irmãos ali rezando contra ele e a favor do Lula, na sua cabeça. Emputeceu-se. Saiu da igreja, entrou na sua caminhonete importada e arrebentou o portão da frente acertando três irmãs e uma estátua – pois é! – de Abraão que tinha na entrada do templo... rasgou até a bandeira de Israel que envolvia a escultura.

Entre os membros da igreja tinha de toda gente. Dois policiais que estavam no culto armados contiveram o irmão, que gritou: – Fariseus! Patriotas de ocasião! Vocês estão virando as costas para o mito, para Deus, para a liberdade e para a família!

As palavras pareceram pesar. Desde a unificação da Itália é assim. O fascio é inquebrável, mas combatível.  Parte da igreja pediu misericórdia. O pastor mandou soltar o irmão. Rapidamente, chegou uma ambulância para os feridos. Ninguém prestou queixa. Hoje não tem culto. O pastor liberou os irmãos para irem para a porta do quartel, mas tá passando lá pra levar a palavra, rezar pra muro e pneu e pegar as doações, afinal, agora que Lula tá podendo fechar igreja, as doações são ainda mais importantes. O dízimo já tinha sido ajustado pra 22% desde agosto. Todos concordaram. Quem não pode pagar tá indo mais vezes a igreja para fazer uma faxina, preparar uma comida gostosa pros obreiros ou emprestar uma menina bonita pro pastor.


Rodrigo Slama 16/11/22

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terça-feira, 25 de outubro de 2022

Entre loucos e cachorros: esperança

 


Era uma terra de loucos. Loucos de pedra, que atiravam na lei com granadas.
Era uma terra de loucos. Ponto. E mais um ponto.

 

– Mano, como eu tô ansioso pra domingo!

– O que tem domingo, viado? – perguntou Miguel.

– Eleição no Brasil. Segundo turno.

– Eleição onde, cara?

– No Brasil, pô. Lá na Terra!

– Quem liga pra Terra atualmente?

– Ué? Tem canto mais legal pra gente se preocupar?

– A Terra é um absurdo, Yesalel. Há pelo menos mil anos ninguém daqui nem sabe notícias de lá.

– Mas, Miguel, tá um pandemônio lá no Brasil, na Terra.

– Diabo de pandemônio? Demônio já era. Nem ele mesmo quer saber dele. Já virou lenda demais.

– Eu sei que o senhor e o resto do pessoal já saturou. Mas o universo anda perfeitamente calmo. A única emoção genuína vem da Terra.

– Cara, a Terra já era há muito tempo! Nem sabia que ainda existia... A gente deixou pra traz faz uma era! Os caras lá escolheram um bandido, macho. Pai num quer mais saber de lá, não. Entre todos os lugares em que Javé se fez carne, lá foi o pior. A Terra não merece nada da gente, não! Vai arrumar o que fazer!

– Desculpe-me, senhor. Mas tem gente boa na Terra.

– Não vês a petulância paradoxal do que dizes? Se é gente não pode ser boa! Não aprendeu nada nestes séculos e séculos de invento em vida?

– Mas tem, realmente, gente boa lá.

– Eles não sabem o que é bondade!

– Alguns sabem.

– Agora pronto. Eu agora tô errado!

– Não quis dizer isso, senhor.

– Mas foi justamente o que você disse, Yesalel!

– Me perdoe, Miguel, mas, realmente, tenho apreço pelos homens.

– Você tem apreço por coisas inúteis!

Neste momento, Yesalel se perdeu na sua visão da Terra.

– Tá vendo, nem percebe o que eu tô falando! – disse o comandante de todo exército divino, Senhor de todos os soldados de todos os universos.

– Desculpe, senhor general. Me distraí com esse cachorrinho caramelo brincando com a moto?

– Cachorro?

– É! Olha só!

Miguel parou um segundo em sua existência infinita e admirou um cachorro sem raça definida correndo atrás de uma motocicleta. O cachorrinho não queria derrubar o motociclista. Apenas queria correr junto a quem conseguisse alcançar o vigor de suas quatro patas. O cão se ria sozinho pacificamente.

– Isso é na Terra? – Perguntou Miguel.

– É sim! Lá no Brasil.

– Nunca ouvi falar do Brasil. O que tem lá?

– Tem um escroto no poder. Mas parece que sai no próximo domingo.

– Sempre tem escrotos no poder... Tanto aqui quanto lá. Mas diz... esse cara que lá governa gosta de cachorro?

– Gosta não, senhor. Nem de cachorro, nem de gente... não gosta de nada que tenha beleza, inocência ou remeta à esperança.

– Qual o nome desse ditador?

– Jair Messias, senhor.

– Messias?

– Sim, messias.

– Domingo é quando?

– Em cinco dias humanos.

– Só?

– Sim.

– Tá bem. Vou lá. Mas não é pelos homens, Yesalel.

– Gostou do cachorrinho.

– Muito!


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Rodrigo Slama, com esperança e sem medo de ser feliz 
25/10/22

sexta-feira, 2 de setembro de 2022

Laranja, verde, branco, números

 



 

Era uma novidade de mais de vinte anos. Uma esperança frágil, desconfiável de quase metade dos descidadãos. Poucos permaneciam marginalizados frente à escolha, quase pseudo, mas existente. Vinha de avião, canoa, escoltada. Ela vinha! Chegava em todo lugar, chegava onde não havia saúde, onde não havia lazer, onde não havia comida e onde, sobretudo, não há educação!

O tempo todo na TV até hoje. É fácil! Laranja, verde, branco, números, foto e letras. Uma antiga caixa conhecida e vítima de terraplanismo, mentira fundamentalista para manter o poder em marionetes, um poder pouquissimamente perfurado por uma base de boa vontade, mas de pouca instrução, pouca desconfiança e pouca credibilidade. Uma base vítima da desinformação, do desestudo dos milhões rejeitados e de quem projeta a permanência da miséria em todo futuro alheio.

Resistência! Símbolo de inclusão, modernidade, democracia. Para quem? Não para todos, claro, mas o melhor do que existe, melhor fruto do que o limitado cérebro primata conseguiu alcançar. Segura, o que há? Quem é ela? Quem ela guarda, o que ela guarda, o que nos aguarda? Ah... ela não chega, sonhamos, jamais um sonho perfeito, mas o fim do pior pesadelo de toda uma gênese, inédita a duas, algozmente legitimado pela nossa salvadora apunhalada por quem se sorriu jubileu no inverno eterno infernal da última geração.

Não sei, ninguém sabe. Toalhas não cantam, telefones não caminham às escolas. E o café clareia, o feião afina, e o coração aperta, a cana já não basta, até o futuro escureceu. Foi embora o lirismo, só versos e cenas de resistência aparecem nas telas. E é tanta tela que ninguém vive mais.

 

Rodrigo Slama 01/08/22