Os
Poodles foram ignorados... depois os Golden, os gatos pelados. Calopsita já
era, mas ainda tem quem goste. Já passaram o Kichute, os lenços de pescoço, o
tomara que caia, Crocs... tudo passa. Ninguém come mais palha italiana, paleta
mexicana, mas o Ninho com Nutella e o pistache resistem.
–
Isso são apenas negócios... somente produtos.
–
Até os cachorros?
–
Claro, todos os animais, videogames, raquetes de beach tennis! Tudo é só um
jeito de ganhar dinheiro.
–
Mas com os bebês é diferente, né, mãe?
–
Olha... sei que é difícil aceitar, mas não... Com os bebês não é diferente.
Eles são produtos.
–
Como pode alguém achar que bebês são produtos?
–
Então... tudo começou com amor mesmo. As pessoas gostavam, queriam ter os bebês...
Era um tempo de certo alívio. O país, mesmo imperfeito, saía de um tempo muito
sombrio, um dos mais sombrios até aquele momento. Por isso, todo mundo tinha
muito afeto represado, muito amor guardado. Lembra das aulas sobre pandemia?
Então, muita gente tinha perdido filhos, pais, irmãos e avós. Era normal que
quisessem preencher aquele vazio. E sociedade é sempre assim... vez ou outra
aparece uma moda, um delírio coletivo, ou qualquer outro sentimento
compartilhado e cativante.
Tal
qual cachorros exóticos e tie-dye, o desejo por ter um bebê cativava muita
gente. Outras tantas criticavam, talvez também quisessem um objeto de amar para
si, talvez era preocupação com o próximo mesmo ou só o desejo de falar qualquer
coisa nas redes sociais. Instrumento de covardes e introvertidos, a internet
deu voz e segurança a gente de tudo quanto é natureza. Na TV, era o direito à
impunidade rondando quem debochava das instituições, seja por golpes ou bets; nos
livros, uma tentativa honesta de resgatar vozes isoladas, vencidas pelo
colonialismo; nos braços de muitos, lindos bebês com suas coleções de roupas,
brinquedos e perfis bombados nas mais diversas redes virtuais e em muitos
encontros presenciais... lembra, foram anos de reclusão, agora, com os bebês,
havia necessidade de fazer festas de aniversários, batizados até partos confraternizantes.
–
Mas, por que, mãe, os bebês viraram um produto?
–
Nossa sociedade precifica tudo, meu filho. Compra-se tudo, até o afeto, até o
amor, até a felicidade. Se um bebê demanda roupa, festas, brinquedos, likes e
tudo mais, evidentemente alguém vai arrumar motivo para lucrar com tudo isso. Assim,
o que era para ser apenas uma coisa prazerosa, um estilo de vida, uma missão ou
sei lá o quê, é transformada num grande negócio, ou já nasce para sê-lo.
Pois
é, os bebês entraram no desejo de muita gente. Sem qualquer preparo ou
planejamento prévio, as pessoas queriam cada vez mais bebês. Então, a própria
produção virou um mercado, uma vez que nem todo mundo conseguia seu próprio
bebê. Demandava tempo e as mulheres, em sua maioria, estavam super ansiosas
para cuidarem dos seus próprios projetos.
–
Mas ninguém fez nada para que esse negócio fosse impedido? Claramente, é uma
coisa que faz mal pra todo mundo, não é?
–
Sim, mas quem controla o desejo? Muito poucos. Por exemplo, tinha uma ou outra
mãe que já tinha mais de dúzia de filhos. Como quem coleciona sapatos e bolsas,
nunca era o suficiente. Eu mesma conheci uma que tinha cinco bebês. Como se
fosse uma coleção de gatos vira-latas que a gente vai recolhendo na rua para
completar o álbum, sabe? Era criança branca, preta, ruiva... A mãe tinha cinco;
todos diferentes uns dos outros.
–
E isso é um problema, mãe?
–
Na verdade, não é um problema não. Mas as outras pessoas não entendiam e
começaram a perseguir quem usava seu próprio tempo para cuidar de um ou de vários
bebês.
–
Mas as mães não incomodavam ninguém, não é?
–
Nem as mães e nem os bebês. Eles estavam ali em paz... mas o ser humano sabe
ser bastante ruim. A perseguição foi tanta que muitas mães não quiseram mais
cuidar dos seus bebês. No começo, elas só faziam o básico, até que todo carinho
entre mãe e filhos acabou. Muitas simplesmente abandonaram ou deram seus
filhos.
–
Tem problema dar os filhos?
–
Também não. Uma pessoa tem direito ao arrependimento, certo? Todo mundo pode
mudar de ideia. E a grande maioria das que não queriam mais cuidar dos seus
bebês, simplesmente arrumavam quem tinha mais atenção para dispensar a uma
criança.
–
E por que, apesar disso, as coisas chegaram a este ponto?
Enquanto
elaborava a resposta, a mãe assistia a um filme na sua cabeça. Via os bebês
sendo negligenciados e abandonados. Ela era mãe também e vivia imaginando que
não queria que seus filhos passassem por isso. Foi aí que nasceu o Orfanato Pequena
Beca.
–
Eram tantos bebês rejeitados que faltou quem cuidasse. Tinha gente que tinha
mais de trinta já. Era impossível dar conta de todos. Em alguns lugares do
país, houve quem montasse orfanatos como o nosso, mas boa parte dos inocentes
não conseguiu ser resgatada e simplesmente desapareceu. Foram consumidos pelo
tempo.
A
campainha toca. Correios. Ela recebe uma caixa bem grande depois de assinar um
papel. Ansiosa, corre para a mesa onde o filho espera em frente a um bolo de
aniversário. Treze velas ainda apagadas decoram o pequeno bolo que é apreciado
por centenas de outras crianças, a grande maioria bebês. A mãe abre o pacote,
retira um corpo apenas com pernas de dentro da caixa e troca a cabeça e os
braços do Nicolas de corpo. Ela também muda o cabelo e faz um buço leve no
rosto do menino. Todos cantam parabéns para você, a mãe corta e serve o bolo.
Só ela come.