Semana bosta.
Preguiça, ansiedade. Gente fazendo merda. Livros não caem do céu, que burrice! Mas
é isso. É sábado e tem peça legal e de graça na Rampa. Tem que chegar cedo para
pegar lugar e aproveitar a pipoca de gratuita. – Eles fazem peça de graça e dão
pipoca por que são bons, pai? – Não. É
para ter desconto no imposto. – Mas isso é ruim? – Não, todo mundo ganha. A
gente, o artista e a empresa que se promove. – Ah – disse em tom de “entendi” e
encerrou o assunto. Se ela entendeu, quem, diabos, sabe? Às vezes, é mais
esperto se fazer de doido para não endoidecer de verdade. Preciso anotar isso. –
Quer pipoca? – Sim. E fomos para a fila. Três filas. Três grandes filas. Pipoca
de graça, tudo bem. No fim de uma delas, apenas, sacos cheios de pipoca nas mãos
dos que esperavam. – Qual a diferença entre as filas? – Esta é paga, as outras
duas são de graça. – Ah, Obrigado. – Hei, vamos para a fila da pipoca de graça!
A
fila não andava. O pipoqueiro colocava, propositalmente, bem menos pipoca na
pipoqueira a fim de enfadar a clientela. – Olha, já fui reclamar com a
organização. Esse pipoqueiro está ganhando dinheiro e não está botando nem
metade do milho que a panela dá conta de uma vez – a senhora desconhecida
falava comigo. – Olha aquela lá, olha como
aquele pipoqueiro faz mais pipoca! – Aquela é paga, senhora – respondi
gentilmente. – Eu sei, mas se ele consegue fazer aquela quantidade de pipoca,
esses de graça também podem fazer assim. A Marquise tá pagando a eles – retrucou
educadamente austera. Ela tinha razão. Não existe pipoca de graça. Eu tinha acabado de
explicar isso para a pirralha. Mas é sábado. Não vou me estressar por pipoca de graça... vou só assistir à
peça.
–
Hei, bora lá arrumar um lugar e ver o filme? Olha como eles estão colocando pouca
pipoca. Não vale a pena. – Sim – e me surpreendi, fosse antes, eu não ganharia
tão fácil, sem chantagem. Aquela manada esperando dois punhados de pipoca servida
em um saco grande e colorido estava me angustiando, irritando a senhora desconhecida e entediando mais outros que escolheram não se manifestar apesar de perceber a sacanagem.
Naquele dia mais cedo, estava pensando se ainda vale a pena sair de casa... tem
tudo na TV, com imagens ótimas, som excelente e com perpétuos lugares no meu
sofá retrátil, além de Coca Zero na geladeira e nenhum estranho. Na grama em
frente ao palco, evidentemente, não tinha mais nenhuma cadeira. Ficamos lá, em pé,
com uma visão relativamente honesta. Não chegamos mais cedo... Paciência. Inequívoca
resiliência. Na nossa frente, uma família de caboclos de estatura média, filhos
bonitos, um deles no colo da mãe enquanto o carrinho descansava. Ao nosso redor,
pessoas iam chegando e se acomodando. Aplaudimos o curta que abria a peça, o
diretor, os dubladores. Já já subiriam ao palco novamente e estrelariam Sinapses de Darwin.
Peça
boa... muito boa. Era Slipknot, Mad Max, Minions, Divertidamente, Revolução
Francesa. Obviamente poético, de muito bom gosto aquela bateria foda no coração
e a absoluta guitarra na cabeça. Dois músicos fodas da cidade. Admiro-os com
inveja. Que peça linda! Que bacana todo mundo ali de graça, fazendo reels,
tirando fotos com flash, comprando espadas brilhantes do senhorzinho ambulante,
crianças correndo e idosos trazendo grandes sacos coloridos com pouca pipoca.
Que harmonioso caos. Isso não tem em casa, isso não tem nem num teatro fechado! Era o teatro raiz, com artistas de elite, gente da Globo, gente de teatro
internacional e boa parte do público ignorantes a tudo isso, só com o belo para
admirar.
Perdi
entre oito e quatorze minutos de peça alheio em pensamentos com argumentos
precisos, com coisas que me estressam e que não devem valer minha energia. – Fulana,
vem cá. – Com licença – ordenou a fulana que poderia dar a volta, não custava
nada, não mexeria com ninguém. Aumentariam dois ou três passos, muita coisa... –
Oi, Dona Joana. – Essa peça é infantil ou de adulto? – Olha, Dona Joana, nem eu
mesmo estou entendendo muito bem. Tem hora que é de criança, tem hora que é de
adulto – disseram e se calaram. O que é peça de adulto? Tem que ter piroca, sexo,
violência, vazio existencial, dívidas? E se for peça de criança, adultos jovens
e velhos não podem ver, caralho? Que coisa idiota, que raiva idiota! Sim, eram
duas tontas que não ficaram mais de doze minutos vendo a peça entre o casal que
estava à nossa frente e tiveram de se separar por ou um capricho alheio. Direitos não
podem ser privilégios, um outro pensamento intrusivo, mas coerente, me dominava.
De um lado, o homem e dois filhos no chão – duvido que viam algo; no meio, Fulana
e Joana; e, do outro lado, a mulher e o bebê de colo no colo.
Sapiens
de sapiência morosa saíram, a família simpática se juntou novamente, a peça, então,
voltou. – Tá entendendo? – Tô, pai, e tá muito legal! Ela assistiu à peça toda
de pé, postura horrível, sem reclamar. Aplaudimos, fotografamos. Nós dois e
todos ali. Maravilhados. Mais aplausos para os agradecimentos emocionados da Companhia.
A emoção do público, apesar de dispersa, era notada; claramente muito menor que a dos que reviam na mente suas jornadas de artistas costumeiramente
desvalorizados, seja pela crítica, por quem compra espadas iluminadas do meio
da apresentação ou quem atrapalha ao menos três grupos certamente interessados para
assistir a no máximo dez minutos de uma peça que não se define como adulta ou
infantil. Não é sempre, mas às vezes eu também gosto da minha profissão.
Fim
de festa, muitos felizes, o carro no lugar deixado, sem flanelinha, sem
arrombamento. Era a brisa do rio, os barcos no porto, o milho Yoki premium mais
caro do que a lógica prevê esperando para ser estourado e temperado com sal e
manteiga de garrafa. Era ali agora, filme em casa, sem gente falando, sem
espada piscando, sem foto com flash, sem idosos inconvenientes e acompanhantes
amarguradas, sem fila, sem criança gritando ou correndo ou gritando e correndo,
com Coca Zero e um controle remoto capaz de pausar a história se tiver uma
improvável distração externa.
Rodrigo Slama