sábado, 15 de novembro de 2014
Meninos do sinal
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Rodrigo Slama
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Poemas
sexta-feira, 3 de outubro de 2014
O cego na praça
Era um cego na praça. Ele vendia quadros lindos
pintados a óleo. Quadros que retratavam paisagens magníficas, cenas de família.
Um cachorro que se parecia muito com o animal que deitava ao seu lado, um cão
velho, sujo e com uma ferida na orelha com muitos bichos.
– Quanto estão os quadros? – perguntei.
– Depende, meu filho. O quadro do cachorro sob a
sombra da tarde está cinquenta reais. O quadro do senhor sorridente abraçando o
seu filho que chora pela perda do dente custa setenta reais. Os preços variam.
Você se interessou por algum?
– Sim – fiquei curioso pra saber como ele sentia ao
descrever uma cena que nunca viu. – Gostei do quadro da senhora lendo.
– Foi? O que te chamou a atenção neste quadro?
– Não sei... achei a senhora simpática. Não entendo
muito de pintura – disse.
– Olhe bem para o seu sorriso. É um sorriso
simétrico, dificilmente alguém sorri assim. Cada lado de um ser humano é
diferente do outro... você tem uma orelha maior que a outra, um olho mais caído
que o outro, pode ter milímetros a mais
numa perna ou braço – o cego disse virado para o nada. E continuou: – O livro
que ela segura não é qualquer livro, é um livro de histórias infantis. Perceba
como as extremidades do livro estão gastas, como se ele fosse lido inúmeras
vezes durante a sua vida. A cadeira de balanço a qual a senhora está sentada também
não é uma cadeira comum... é uma cadeira de amamentação. Todos pensam que são
iguais, mas as linhas de uma cadeira de amamentação e uma cadeira de balanço
são diferentes. A cadeira de amamentação é um pouco mais leve de se olhar.
Fiquei espantado com
os detalhes da descrição. Não contive a curiosidade e perguntei:
– Como o senhor,
sendo cego, sabe tão bem sobre os quadros que está vendendo? O senhor é cego
mesmo.
– Gostaria muito de
ser um charlatão, mas, infelizmente, sou cego. Sei sobre os quadros porque fui
eu mesmo que pintei.
Fiquei sem reação. Perguntei o preço
do quadro da senhora. Ele disse que custava oitenta reais. Eu não tinha esse
dinheiro. Fui embora.
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Rodrigo Slama
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19:12
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Crônicas
sábado, 8 de setembro de 2012
O episódio da lâmpada
Estava
cumprindo a quarentena no hospital onde acordei após meu sono de dez anos. Era
tardezinha. Eu acabava de tomar o chá de erva cidreira que me deram acompanhado
de um belo pão com manteiga, um pão quentinho como eu não comia fazia tempo –
isso sem levar em conta os dez anos – é que mesmo antes de dormir eu já
desejava um pãozinho desse mesmo jeito, que me fazia parecer ter voltado à
infância... Comer aquele pão me lembrava bons momentos, uma simples mistura
milenar de trigo e água que era incrementada pela minha mãe com a quantidade
exata do recheio perfeito para um pão quentinho, a manteiga.
Decidi passear
pelo hospital, conhecer gente nova. Caminhando pelos corredores aleatoriamente
olhando para as fotografias nos murais, nos recortes de revista que falavam
sobre os pacientes importantes e desimportantes que haviam sido “salvos”
naquele centro de ajuda, como ainda eu não tinha visto a não ser por aquelas
séries americanas que passavam na televisão antes da Rede Globo começar a fazer
minisséries tão boas como as produzidas nos Estados Unidos.
Sentado,
calado e olhando para o teto; foi assim que estava ele, Antônio de Macedo e
Maria, pelo menos foi o que a enfermeira me disse quando a indaguei sobre
aquele sujeito que me fez dar tantas gargalhadas que quase não consegui escrever
este capítulo só por lembrar aquela cena de alguns muitos anos atrás.
Disse olá e me
apresentei da forma mais simpática possível. – E você, como se chama? –
perguntei com toda delicadeza e respeito, pois não sabia como iria reagir
aquele sujeito meio... pensativo, talvez. Porém ele nada me respondeu, apenas
me olhou, não nos olhos, e pôs-se a voltar a admirar o teto, que era tão comum
como o teto da sua casa, a não ser que você more numa casa sem forro, num
palacete ou debaixo duma ponte de concreto, com todo respeito.
– Hei, senhor!
– chamei pela segunda vez, desta cutucando-o no ombro. Ele, além de não
responder, não me olhou, nem se moveu como no primeiro contato.
– Amigo, vamos
conversar! O gato comeu sua língua? Vamos cara... vamos bater um papo, eu lhe
pago um cafezinho... – ele nem deu atenção.
Percebi que
poderia estar falando com uma pessoa simplesmente grossa, que não gostasse
mesmo de conversar. Aquele cara poderia estar me esnobando, logo eu que fui tão
amistoso, que já tinha feito amigos em todo o andar e metade do andar de cima
ser ignorado por alguém que nem olhar nos meus olhos olhava...
– Vamos comer a lâmpada? – perguntei tentando
descontrair, deixá-lo mais a vontade.
– O quê? – ele
perguntou com os olhos arregalados, olhos de quem está sendo perseguido por
policiais militares armados e despreparados.
– Vamos, me
ajude a puxar este banco... Nós vamos comer esta lâmpada e vai ser agora – me
levantava como se realmente quisesse a lâmpada.
Eu já tinha percebido que ele era um doido e
quis me divertir. Mas ele se agarrou ao banco e disse:
– Não! Não! Não!... Não quero comer a lâmpada!
Ela deve ter gosto de cebola. Não me dê por favor, por favor, por favor, por
favor, por favor...
Nessa hora o
doido começou a chorar enquanto eu já ficava sem ar de tanto rir. Os outros
pacientes, entre eles deveria estar o segurança da rodoviária, caíram na
gargalhada assim como eu. Aquela imagem era mesmo engraçada. Um doido, que
deveria ter uns setenta anos, chorando como um bebê chamando a mãe para que ela
não o deixasse comer aquela lâmpada, que ora devia ter gosto de cebola, ora devia ter gosto de vaga-lume, causando-o, assim, azia, que ele chamava de
vulcãozinho no bucho.
Eu tinha que
ter pedido uma cópia da fita à segurança do hospital, só para ver o povo todo
caindo no chão, inclusive alguns enfermeiros, quando ouviam: – “Eu não quero
ter um vulcãozinho no bucho, mãe! Eu não quero...” – e mais – “isso deve ter
gosto de cebola crua, e eu não como cebola crua, porque cebola crua é ruim, é
por isso que eu não como cebola crua, se eu achasse bom cebola crua eu comia
cebola crua, mas como eu não gosto de cebola crua, eu não como cebola crua,
porque cebola crua é ruim...” – O pobre dizia e chorava, aos soluços, ao mesmo
tempo. Mas aí chegou uma psicóloga metida a dona da verdade, e do doido,
acabando com a brincadeira.
Daí em diante, eu não precisava sair à procura de gente para conversar, as pessoas é quem me
puxavam assunto partindo, é claro, da história da lâmpada com o doido Antônio
de Macedo e Maria.
Trecho de Após o sono de dez anos
romance - Rodrigo Slama
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Rodrigo Slama
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10:58
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domingo, 30 de outubro de 2011
Chapeuzinho Vermelho e sua curiosidade sobre os lobos
– Vá na casa da sua avó, sua preguiçosa, e leve a cesta básica do mês – disse a mãe da Chapeuzinho Vermelho, uma menina de dezesseis anos que desde pequena usava um modelo original de chapéu cobiçado secretamente por todas as meninas da região.
– Não tô a fim, mãe! Todo mês eu levo essa cesta, por que você mesma não leva? Eu estou assistindo a nova temporada de Glee e não estou nem aí pra vovó...
– Você sabe que aquela velha não fala comigo desde que seu pai morreu naquele acidente de carro.
O acidente tinha sido há cinco anos e meio, desde então, a mãe de Chapeuzinho tinha que ajudar a sua ex-sogra porque ela ameaçava pô-la na justiça e retirar a horta que ela cultivava, idealizada pelo pai da Chapéu. Até hoje, as causas do acidente não foram completamente esclarecidas, mas sabe-se que o pai dirigia, e perdeu o controle. O problema é que ele era conhecido pela sua extrema atenção, não desfocava de nada por nada. Algo fez com que ele perdesse os sentidos. O estranho é que ele estava com o sexo rígido quando encontrado, uma leve mancha de batom em sua cueca e um sorriso de felicidade que espantou a todos. No carro, só estavam o pai e a mãe de Chapeuzinho Vermelho.
– Tá bom eu vou, falou a Chapéu, mas vou querer que aumente minha mesada daqui pra frente... todo mês é isso...
– Menina, não reclame! Já não basta o colégio caro que te pago, a internet, a conta do celular e todo prejuízo que você me dá...
– Tá bom, mas não enche o saco – disse a menina, saindo com a cesta e deixando a mãe falando sozinha... Quando estava atravessando a rua, escutou o grito de sua mãe, que dizia a mesma coisa todo mês a mais de cinco anos:
– Não vá pelo Bosque... tem muito lobo por lá e pode querer comer você.
Lobo era como as pessoas da região chamavam os rapazes que se aproveitavam de moças ingênuas.
Chapeuzinho Vermelho, que há muito não respeitava sua mãe – movida por uma índole rebelde da qual não sabia a origem –, foi, obviamente, pelo Bosque, o caminho mais curto, pois queria voltar logo para casa e continuar assistindo o seriado que parecia amar mais que sua própria segurança.
O Bosque é um lugar sombrio, um extenso corredor que ligava um lado da pequena cidade a outro, no entanto, a maior parte de sua extensão fica entre prédios antigos, alguns abandonados ou habitado por sem-tetos ou sabe-se lá Deus pelo quê. É conhecido pela quantidade de vagabundos e prostitutas que abriga. É quase que inteiramente calmo, mas não custa redobrar ou triplicar a atenção ao passar por lá, lembrando que só se dever fazer isso em caso de extrema necessidade.
Há muito, a Chapéu queria passar pelo Bosque e ver quem eram os tais lobos que todo mundo falava. – Será que são bonitões como o Cory Monteith? – se perguntava. Ela não sabia e nem tinha coragem para descobrir, mas naquele dia era unir o útil ao agradável... ela queria voltar logo para casa e queria saber quem eram os lobões...
No caminho, um pouco amedrontada, claro, ela cruzou pelo primeiro lobo, mas ele estava vendendo drogas para uma menina magra que só e nem deu atenção a ela. E, conforme foi caminhando em sua longa caminhada, ela cruzou com um lobo lindo, era exótico, tinha os cabelos grandes, a barba por fazer, um olhar tão negro quanto os seus sentimentos pela professora de física, ela olhou para as mãos dele – tinha fetiche com mãos – e se admirou com o tamanho: – Deve ser lutador de boxe – pensou.
O lobo logo flertou com a menina que recusou qualquer contato maior que o visual já existente, e pediu para seguir seu caminho em paz. O rapaz, que já ouvira boatos sobre a linda menina que visitava sua avó mensalmente, se apressou e foi para a casa da velha, tentar esperá-la lá, de preferência na cama. E assim o fez.
Chapeuzinho mal falava com sua avó, e assim que chegou na casa, que, em todo dia 05 de cada mês já ficava aberta, ela foi procurar saber se a velha estava viva.
– Vó! Cadê você? Sou eu...
Sem obter resposta ela pensou: – Ou a velha está dormindo ou morreu de vez. E foi até o quarto para saber como a velha estava. Ela estava dormindo, coberta dos pés à cabeça pelo edredom.
– Nossa, ela parece maior quando deitada – pensou em voz ligeiramente alta.
– Vó, vó, sou eu, Chapeuzinho, a senhora está dormindo?
Com a voz rouca a avó respondeu: – Não, minha netinha, estava esperando por você.
– Netinha? O que deu na senhora? E o que é isso grande aí no meio do edredom?
De súbito, o lobo tirou o edredom e disse: – É o meu pau, e é pra te comer...
Sem reação, sentindo uma mistura de excitação e medo, a Chapeuzinho não correu. Ficou ali parada esperando a ação do lobo, que a tornaria uma mulher.
Durante alguns longos minutos que formaram poucas horas, os dois se divertiram. Na hora de ir embora, a Chapéu perguntou ao novo amigo: – O que você fez com minha avó?
– Eu a comi antes de você chegar, de tão feliz, ela me emprestou a casa e foi fazer uma visita ao lenhador, o porteiro de um dos prédios da rua que faz uns bicos de michê para as madames da região. Acho que queria continuar a brincadeira.
Eles trocaram telefone e ficaram de se encontrar mais vezes. Daquele dia em diante, a Chapeuzinho Vermelho não reclamava mais quando mandada levar a cesta para sua avó. Elas até tinham um assunto em comum agora.
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Rodrigo Slama
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segunda-feira, 19 de setembro de 2011
Um domingo diferente
Era manhã, já tarde. Acordava cedo todos os dias, mas naquele domingo precisava descansar. Danem-se os filhos, dane-se a esposa. A única coisa que precisava era de umas horas a mais de sono. De sonhos. Sonhos que demoram a chegar e acabavam logo, como o salário que não queria conhecer o fim do mês, como os momentos de felicidade com a mulher amada, que, por sinal, já fazia tempo que não via.
Ah, aquela manhã tarde de domingo. Não sabia o que era o aconchego da cama há muito. Mas não tinha mesmo como saber. Acordando quatro e meia e dormindo às duas, quando o ônibus não atrasava mais do que o de costume, não restava mesmo tempo para apreciar as madeiras velhas e mal dispostas que maltratavam as costas de qualquer mortal.
Mortal. Era mortal, mas esquecia. Acordava rápido e não tomava café. No meio do caminho, na baldeação, comprava um café de cinquenta centavos e um pão do mesmo preço. Se a pressa não fosse tamanha, poderia comprar cinco pães com aquele dinheiro, mas uma extravagância de vez em quando, e, pelo menos de vez em quando era quase todo dia, não fazia mal a ninguém. Era só acordar um pouco mais cedo num domingo ou outro e fazer um bico em algum lugar. Mas não naquele. Dane-se a esposa, danem-se os filhos.
Era manhã, já tarde. As costas descobriam de onde vinham as dores que sentiam durante todos os dias. À tarde, assistia ao jogo, mas não naquele domingo.
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Rodrigo Slama
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sexta-feira, 11 de março de 2011
Novíssimos tempos
As coisas acontecem a nossa volta e a gente não entende.
Na verdade, não há nada para se entender, a não ser como as coisas acontecem... em como as coisas estão organizadas de tal forma que nenhum paradigma pode ser quebrado; nenhuma exceção pode ser concedida... tudo porque vivemos numa sociedade cristalizada, com conceito do século passado, que não acompanha a velocidade como se dão as coisas.
Só quem entende é quem vive do lado de cá, e fico feliz em saber que ainda há companheirismo, que há quem consiga enxergar além dos papéis, além do que antes era apenas um ou outro. Mas essa felicidade, que é muito boa de se ter, não consegue se manter quando o contexto é modificado. Daquele lado, há interesse, cobiça... autopreservação? As pessoas estão a cada dia olhando apenas para si, mas não são todos, são os das gerações passadas, e eles parecem se incomodar com o rumo que as coisas já tomaram, e não, como eles pensam, começam a acontecer.
Não queria nada de mais, apenas ser respeitado pelo que sou, não pelo que aparento ser, pelo que minha idade diz. Tem muita gente mais velha que não é tão experiente, que não leu tanto, que não viveu variedades na intensidade... É uma pena as coisas serem assim... Ao invés de atrasar alguns, eles deveriam tentar se adiantar, mas como? Como se o sistema não permite, e mesmo quem percebe a mudança e quer ajudar não pode? Não? Será que não temos mesmo poder suficiente para impor nossas vontades no seio desta sociedade que, a final, somos nós mesmos quem construímos e mantemos?
Realmente... não sei! Este não saber é frequente em meus textos, em meu dia a dia... e realmente não consigo formar uma única opinião, uma única hipótese... Mas chego a lugares comuns que a cada momento se tornam mais estreitos. E na paciência, que para nós é mais difícil de se ter, tento montar um quebra-cabeças sem fim... e deixo me levarem por não ter muitas forças, ou não ter conseguindo reunir muitas opiniões afins para reverter este quadro, que nem sei se vai conseguir acontecer, pois, afinal, os jovens de hoje serão os velhos de amanhã, e os novíssimos tempos se encherão de poeira de cristais seculares. É uma pena.
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Rodrigo Slama
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sexta-feira, 28 de janeiro de 2011
Uma breve história de Gabriel, Bolsa Favela
Gabriel saía de casa todos os dias às seis e meia para comprar pão. A mãe trabalhava numa fábrica de calçados da cidade, o pai tinha abandonado a casa e a irmã mais velha só chegava depois das oito da manhã em casa, era camareira de um motel, ou pelo menos dizia ser.
Depois da aula de matemática, tinha aula de artes, sua aula favorita. Era opcional, por isso Michel, que gostava mais de futebol do que qualquer manifestação artística, não estaria lá para importuná-lo, chamá-lo de Bolsa Favela, já que era bolsista em um tradicional colégio particular, e o único negro da turma.
Todos os professores gostavam do Gabriel, exceto a professora de geografia, que tinha feito especialização no Canadá e trabalha há dezessete anos da escola, seis a menos que o professor de matemática, Liovério, que já deveria ter se aposentado, mas tomava muitos remédios e, financeiramente, valia mais a pena passar dois expedientes de sua vida de idoso, mas não caduco, na sala de aula do Nossa Senhora de Fátima, do que vegetar com um salário miserável.
De repente, ao sair da padaria que ia todos os dias, mesmo nos domingos, Gabriel sentiu uma dor, uma dor como nunca sentiu na vida, a última dor de sua vida. Um tiro. Na cabeça. Um tiro. Ele estava correndo, correndo por medo da chuva que se aproximava. Gabriel estava colocando o pão por baixo da camisa, e foi confundido com um bandido. Dor. Muita dor. O sangue escorria na calçada. Um telefonema. No orelhão da rua, uma ligação avisa a mãe de Gabriel sobre o tiro. Um tiro. A dor. A última dor. O desespero. A tristeza. Policiais alegaram legítima defesa. Um tiro. Os policiais foram absolvidos. Calado. Gabriel foi calado. Os pães ficaram lavados em sangue. Um tiro. A dor. A última dor.
A escola que deu a bolsa de estudos cedeu a capela e pagou o caixão. Gabriel foi enterrado na comunidade onde morava. Deixou uma mãe triste, uma irmã quase indiferente, uma professora arrependida e um Michel feliz.
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Rodrigo Slama
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terça-feira, 21 de dezembro de 2010
Sotaques
Alguns sabem, mesmo os que só me conhecem pelos escritos deste blog, que nasci no estado do Rio de Janeiro, e moro em Natal, Rio Grande do Norte, há sete anos, a serem completados em janeiro de 2011. E, pelo fato de ser de outro estado, com outra cultura, muitos, na época em que cheguei a Natal, ficaram mangando do meu sotaque, que eu falava chiando e tudo mais. Conseguinte a isso, eu também zoava o sotaque deles... dizia que falavam arrastado, que usavam muitas gírias estranhas e tudo mais.
Mas – com a permissão desta conjunção já no início do parágrafo – a vida é uma roda-gigante, e, ao passo que o moinho rodava, meu coração e meu sotaque foram se adaptando ao RN. Fui cada vez mais me apaixonando por Natal e mais todos aqueles clichês que os de fora usam quando vão morar em Natal.
E, nesses dias, em viagem ao Rio de Janeiro – uma breve visita à família –, surpreendi minha mãe, que até dois anos morava e Natal, com meu sotaque arrastado. Até um primo meu, Rafael, que morava há menos de um ano na Cidade do Sol, ficou mangando do meu arrastar no falar. Entretanto, isso não é o pior!... Não esquento que tirem onda com a miscigenação do meu linguajar – defendo mesmo minha identidade bricolada!... O fato é que, muito acostumado com Natal, sinto dores nos ouvidos ao ver os fluminenses falando – mesmo os meus irmãos. Percebo, agora, o quanto eu incomodava e causava estranhamento nas pessoas ao meu redor, visse?
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Rodrigo Slama
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22:51
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domingo, 14 de novembro de 2010
A INVASÃO – parte 1
– Você viu aquilo? – perguntou Pablo a Danilo que, perplexo, não conseguiu responder.
– Hei, cara, vamos... corra!!!
Danilo estava em estado de choque. Nunca vira uma nave daquele tamanho. Na verdade, nunca vira uma nave espacial, muito menos um alienígena.
A tevê noticiava a visita de extraterrestres... A força aérea brasileira toda em peso se posicionava estrategicamente em todas as direções possíveis. Outros países estavam também sendo invadidos, mas até aquele momento nenhum sinal de violência ou ataque era percebido pelas autoridades e pelos irmãos Pablo e Danilo, este com dez anos e aquele com treze.
“Autoridades mundiais firmaram acordo de não atacar até que sejamos atacados. É a primeira vez que a humanidade resolve não combater o desconhecido. Mas será que isso é uma visão pacifista ou medo de represálias... Isso é o que vamos ver após o intervalo, em trinta segundos” – disse Willian Waack, repetindo a notícia que os brasileiros, ou pelo menos a grande maioria, vinha acompanhando pela Globo.
Danilo permanecia atônito... A mãe rezava ajoelhada defronte a uma santa que estava em frente a uma vela acesa. O pai pregava as portas e as janelas, e dizia a todo o momento que estava arrependido de não ter colocado laje na casa ainda. Pablo também estava com medo, todos estavam com medo, mas, estranhamente, sentia que tinha que auxiliar o irmão, que há alguns bastantes minutos deu sinal de que logo iria sair do estado de choque.
Todos aqueles desenhos, filmes, e tudo o que tinha assistido sobre ETs não fazia mais sentido, é como se nunca os homens tivessem podido prever o que estava acontecendo. Já se passaram três dias desde o primeiro contato visual, mas ninguém tinha sido abduzido, ninguém havia morrido pelas mãos – se é que têm mãos, pensava – dos visitantes mais que inesperados. A agonia e a incerteza eram sentimentos presentes em todos, todos os nativos do mundo, mas, até agora, não havia motivo para pânico, e pânico é pouca coisa mais forte que o medo.
A televisão não dava nada de novo, e a mesma imagem era mostrada em todos os canais, sob pequena variação de ponto de vista, ângulo da câmera, qualidade... A Record mostrava uma grande nave sobre o Rio Tietê, ao passo que a Globo mostrava um objeto parado acima do Cristo Redentor como principal foco, o que não os impedia de mostrar algumas outras naves sobre o Brasil e sobre o mundo, que começava a cogitar outras formas de fazer contato... e essas outras formas envolviam armas nucleares.
“É impressionante o tamanho... Especialistas afirmam que os alienígenas podem destruir toda a humanidade e o planeta Terra em menos de dez segundos. O mundo se une na tentativa de não ser destruído por estes invasores...” – Willian Bonner, com muito menos olheiras que seu xará, no JN.
– Maria, você está há mais de três dias ajoelhada rezando... você precisa cuidar dos seus filhos... pare de clamar por ajuda do gesso e olhe as crianças enquanto eu vou, novamente, atrás de comida e água – Juvenal, pai de Pablo e Danilo, falou. O governo tinha proibido de qualquer comércio importante fechar, tais como mercados, farmácias, além de hospitais, unidades de assistencialismos, etc. mas quem respeita o governo nessas horas? Ou qualquer delas?
– Posso ir com você, pai? – perguntou Danilo. – Tenho medo de ficar sozinho.
– Mas sua mãe está em casa... e o Pablo vai cuidar de você.
Contudo, a esta altura, o próprio Pablo, tão forte, que gostava de fazer o irmão aprender o quanto era superior, precisava de ajuda. Um pai, nessas situações, não iria negar companhia aos seus filhos, mas não podia levá-los para a guerra de comida que acontecida lá fora, e nem deixar Maria sozinha na presença de seus santos.
Sem saber o que fazer, Juvenal decidiu tentar convencer sua mulher mais uma vez, em vão. E, na esperança de o tempo passar, decidiu se voltar à tevê mais uma vez... bem na hora em que era anunciado, em um canal ainda não citado, que os invasores tinham feito contato com o presidente da Organização das Nações Unidas, como se o pobre Ban tivesse o mesmo poder que Obama.
Rodrigo Slama (invasão - Cristo) |
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Rodrigo Slama
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sábado, 9 de outubro de 2010
A Tartaruga e o Pinto
As pessoas me perguntam por que não gosto de bichos de estimação. Eu nunca disse que não gostava de bicho, apenas não criava por ter sofrido bastante com os animaizinhos que eu tinha quando criança.
Minha primeira experiência foi com um pintinho... como eu gostava daquele pintinho, criava como se fosse um cão – talvez o comesse quando virasse um galo, mas até então era o meu melhor amigo. Certo dia, minha mãe entrava em casa com sacolas na mão... doida para guardar logo as compras e acender seu cigarro. Avexada e bruta como sempre, ela pisou no meu pintinho.
Aquele cena é uma das mais tristes que me lembro... toda tripa da pobre avezinha saiu de seu corpo pelo cu. Não pensei duas vezes... peguei uma caixinha de sapatos e levei meu amigo para uma benzedeira, tia Aladir. Insisti para que ela o rezasse, quem sabe assim ele ficaria bom já que não estava morto, podíamos vê-lo respirando, com muita dificuldade, por sinal, mas respirando.
– Tia Aladir, a senhora pode rezar o meu pintinho? Ele tá quase morrendo...
– Mas, Maurinho, você sabe que só rezo pessoas... posso tentar... se bem que acho que não vai resolver...
– Mas tenta, tia, tenta, por favor! – pedi olhando como quem olha a mãe do fundo de um poço com os braços estendidos, lágrimas correndo, e esperando por socorro imediato.
É claro que titia não conseguiu curar meu pintinho, mas espero que ele tenha morrido sem muita dor depois da reza.
Depois do pintinho, eu tive um jabuti, mas naquele tempo chamava de tartaruga. Já ganhei a tartaruga grandinha e tal... Também não tinha nome... ora, se já era uma tartaruga para que inventar outro nome?... Chamava o jabuti de tartaruga mesmo. E detalhe: achava que era uma tartaruga... fêmea.
– Pronto, Maurinho – disse minha mãe. Agora se eu pisar nesse seu novo bicho eu não vou matar – e me estendeu a tartaruga. – E vê se para de chorar também.
– Viva! – gritava de emoção.
Eu brincava sempre com a tartaruga, corria do colégio para poder lhe dar alface outras comidas de tartaruga. Gostava de colocá-la de cabeça para baixo e ver se ela conseguia se virar... mas ela nunca conseguia sozinha. Mesmo quando eu a deixei a noite inteira assim, ela não se virou.
Nunca tive um bicho tão forte como aquela tartaruga. Botava brinquedinho em suas costas e ela carregava sem problema... e se minha mãe ou qualquer outra pessoa pisassem na bichinha ela não morreria como o pintinho.
Mas – o tal mas da história – certo dia uns amigos do meu pai tinham vindo beber com ele em casa... beberam até altas horas. Meu pai e os outros bebedores não limparam o quintal depois da noitada, deixando todas as garrafas espalhadas por lá. Ao acordar cedo – pois era domingo, e sábado e domingo eu sempre acordava muito cedo, ao contrário dos outros dias –, eu logo corri para brincar com a tartaruga...
Dei um grito estridente e minha mãe, meu pai e meu irmão acordaram imediatamente. Minha tartaruga estava toda ensanguentada e com indícios de morte....
Acontece é que aquela tartaruga era macho, e resolveu acasalar com uma das garrafas de cerveja do chão. Devido à pressão ou outro fator, a garrafa estourou e cortou fora o pênis da minha tartaruga. Ela morreu devido à perda do sangue... Eu não a levei para a tia Aladir, queria mesmo que a tartaruga morresse... Eu não gostaria de viver sem meu pênis, a tartaruga devia pensar o mesmo.
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Rodrigo Slama
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domingo, 19 de setembro de 2010
Pedro e a poça d'água
Estava cansado e com sono, caminhando
numa rua deserta, quando, de repente, um carro passou numa poça e jorrou água
suja em Pedro, que despertou definitivamente. Ele geralmente não prestava muita
atenção em coisas como uma poça no chão, afinal, a rua era deserta e nunca
passava carro lá. Assim que deu conta de que todo o uniforme estava molhado,
Pedro resolveu voltar para casa e mudar de roupa para não ir todo imundo para a
escola. Por sorte, ele estava ainda acerca de um quarteirão de casa.
O garoto molhado estava decidido a
tomar banho, mas estava muito frio para isso, então ele resolveu apenas trocar
de roupa... Então secou o rosto e os baços, trocou de camisa e seguiu para a
escola, já que estava indo mal em matemática, disciplina do primeiro tempo, e
não podia perder uma aula a mais... sua mãe o mataria se ficasse em recuperação
de novo.
Três dias depois, assim que saiu do
banho matinal antes da escola, Pedro olhou no espelho e percebeu que estava com
manchas vermelhas nos braços e no rosto, justamente onde a água jogada pelo
carro tinha batido. Ele mostrou à sua mãe e lhe contou toda a história. Foi ao
médico imediatamente. Ana, mãe de Pedro, parecia levemente feliz com aquilo,
pois havia acabado de fazer um plano de saúde para a família e estava doida
para estrear os serviços caríssimos que vinha pagando.
Após a consulta, o médico disse que
não tinha sido nada grave, apenas uma micose... Pedro só precisaria usar uma
pomada e não coçar, principalmente não coçar. E era justamente o que Pedro
vinha fazendo no caminho de casa até o consultório do dermatologista... Na
verdade, desde a noite, anterior ele vinha coçando o corpo, principalmente os
braços e o rosto.
De lá, eles seguiram imediatamente à
farmácia de manipulação para encomendar a pomada – como Ana não tinha entendido
a letra do médico, só fez entregar a receita ao farmacêutico. Mesmo doente, Pedro
ficou feliz, pois não precisaria ir à aula naquela quinta-feira, mas seu corpo não
parava de coçar e coçar... A pomada incomodava, ardia... E a vontade de coçar
só fazia aumentar. Aquela pomada deveria aliviar a irritação, mas não estava
adiantando de nada, muito pelo contrário. Pedro já estava ficando com raiva
daquele incomodo todo.
A irritação era tão grande que ele
acabou tirando a pomada, e continuou a coçar. Ele passou gelo, o que não
adiantou; fez umas receitas caseiras que pegou na Internet, mas nada resolvia,
absolutamente nada. E um dia depois de ter ido ao dermatologista, Pedro voltava
ao consultório com a mãe. Agora, até mesmo os seus olhos estavam vermelhos: não
tinha pregado os olhos durante a noite.
Ao ver o estado do rosto e dos braços
do rapaz, o dermatologista ficou assombrado, perguntou o que mãe e filho
fizeram de errado, afinal, passar pomada e ficar sem coçar não é uma coisa
muito complicada para uma mãe e um menino de treze anos fazerem. Mas era o que
parecia.
O médico conferiu a pomada que havia
prescrito, mas a receita estava correta. Então ele pediu para conferir a pomada
comprada, e para sua surpresa era a pomada errada. Pedro vinha usando uma
pomada para outra enfermidade que, ao entrar em contato com a micose, causou
esse efeito colateral.
– Eu falei pra você conferir o nome do
remédio, menino...
– Mãe, o cara da farmácia me deu esse
e mandou conferir com a cópia da receita, pois a que a gente deixou lá tava no
arquivo ou foi pro Ministério da Saúde, sei lá...
– E você não conferiu por quê?
– Porque esqueci a receita...
– Bem feito... isso é pra você
aprender a lembrar das coisas.
Para a sorte do garoto, o médico
dermatologista deu um jeito. Ele mesmo aplicou uma pomada que imediatamente
aliviou a irritação e a coceira. Com três dias, Pedro já havia notado a
diferença e não passara a noite querendo arrancar a pele do braço e do rosto.
Quem não gostou nada da história foi a irmão de Pedro, Cíntia, que estava
escrevendo um conto sobre mutação... era a história de um menino que se expôs a
determinado produto e ganhou o poder de camaleão... mas não era um herói esse
protagonista, era o vilão da destruição da paz do mundo.
por
Rodrigo Slama
às
19:49
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Contos
quinta-feira, 3 de junho de 2010
Palavrão e Boca Suja
Eles nasceram em Goiânia, como toda dupla sertaneja tem que nascer, mas ao contrário das demais, eles não plantavam tomate, nem tinham que comer ovo cru, muito menos eram filhos de ricos fazendeiros e formados em odontologia ou algo do gênero.
Mirosrio e Durvalindo eram filhos de Francisca Joana, dona do cabaré mais famoso da grande Goiás, chamado Todarrô Lakiédura. Os dois cresceram em meio às putas, entre os bêbados e os errantes, aprenderam tudo que sabem naquele ambiente. A primeira palavra que Mirosrio aprendeu foi xoxota, ao passo que Durvalindo aprendia que chupeta não era um bico de borracha em formato de mamilo que serve para enganar o bucho do bebê.
Durvalindo ganhou um violão da mãe ao fazer cinco anos de idade, um dia depois do aniversário de seis anos de Mirosrio, que ganhara uma sanfona velha e desafinada - Francisca Joana aceitou aqueles instrumentos como pagamento atrasado de um ex-cantor da região. Eles passaram o dia inteiro tentando aprender a tocar os tais instrumentos, além de passar o tempo entre um acorde e outro ouvindo as canções sertanejas mais famosas das rádios do centro-oeste.
O tempo se passou, os meninos aprenderam a cantar e a tocar. Eles ficaram tão bons, lá pelos seus quinze e dezesseis anos, que resolveram compor as próprias canções, e como não tinham um grande conhecimento de mundo e rico vocabulário, compunham canções baseadas em acontecimentos do puteiro da mãe e com o palavreado apropriado.
Rapariga quero comer teu cu,
Mas não quero pagar mais por isso,
Pega logo o sabonete,
Pra amaciar a entrada do Roliço.
Meu pau ta doido pra te comer,
Garçom: chega de trazer cerveja,
Essa quenga já bebeu vinte e um,
E mesmo melada não quer me dar o cu.
Ô rapariga, ta de putaria?
Te dou mais dez se você chupar,
Boca macia sem dentes pra machucar,
Mas no seu cu que quero ir gozar.
Meu pau ta doido pra comer você,
“Vamo” subir que quero ir foder,
Comer seu cu é meu desejo agora...
Me chupa logo ou meu pau “istora”.
A primeira vez que os meninos cantaram essa música, a primeira que eles fizeram, Desejo de cu, foram mais que aplaudidos no cabaré. Os frequentadores do estabelecimento gostaram tanto que os rapazes tiveram que tocar a mesma música a noite inteira... apenas as putas não gostaram, pois isso aguçou a criatividade dos fregueses...
E foi assim que surgiu a primeira canção do Palavrão e Boca Suja, a dupla sertaneja mais odiada e amada de toda história da música regional de Goiás.
por
Rodrigo Slama
às
02:00
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Fuleragens
terça-feira, 23 de março de 2010
O Show
Meus olhos quase
se perderam na multidão. Era gente pra todo lado, quase fico atordoado com
tamanha movimentação. Segurei a mão da última pessoa do trenzinho que furava,
não sei como, o mar de gente feito uma flecha, ou um tiro de fuzil. Eu achava
que chegaria à saída, mas ao contrário do que eu queria, fui levado a cada
passo pra mais longe do meu esperado destino.
Fui enganado pelos meus amigos. Eles
disseram que era um show do Nando Reis. Eu sou fã do Nando desde a época dos
Titãs, banda que perdeu um pouco do meu carinho depois da saída do meu ídolo
maior, mas até que Paulo Miklos segurou as pontas, pois não gosto – nada contra
– da voz dos outros vocalistas.
O
show em que eu estava, que por sinal tinha pago quinze reais pra entrar valendo-me
do meu direito de estudante, é claro, era do... ou será da? Enfim... era da
banda... Calypso (procurei no Google o modo certo de escrever este nome (im)próprio
para não me passar por ignorante).
Os abestalhados dos meus amigos me
vendaram, disseram que iriam fazer uma surpresa pela proximidade do meu
aniversário... me levariam no camarim do Nando Reis. O pior é que eu estava tão
concentrado nos estudos pro ENEM que nem me liguei que o show do Nando iria
acontecer mais na frente. Engraçado... quando a gente se concentra muito em
alguma coisa acaba ficando meio por fora da vida que acontece aos nossos pés.
Estava, deduzia, há mais de duas
horas vendado, nem tinha noção de quanto tempo havia se passado. A euforia que
eu sentia mal me fazia lembrar o ENEM iminente ou mesmo o horário que se
passava diante de mim. Me abandonaram, literalmente falando, no meio daquele
mar de gente avesso a Avon, Axe ou Rexona. Quero deixar posto aqui que nunca
tinha sentido o cheiro de tantos sovacos diferentes, logo eu, que fui todo
contente, de preto, com uma camisa do Acústico dos Titãs, crente que iria
conhecer Nando Reis. Mal sabia eu que iria conhecer uma colônia do inferno.
Cansei de procurar pela galera...
mas me desesperei. Estava inconformado e perdido, apavorado e chateado, e
muitos outros -ados que existem. A mão que peguei, a última do trenzinho, era de
uma menina – pelo
menos isso! – e
estava muito suada. Tive que largá-la logo e segurar o pulso. Eu não via seu
rosto, apenas uma fita na cabeça que dizia “inha (o nó) Joe”, depois me
contaram que era o nome da vendedora de tapioca, que insiste em ser cantora, e
do marido dela, um dos músicos da banda, de péssimo gosto, por sinal.
Como eu já disse, eu estava crente
que o trenzinho estava saindo... sei lá, eu fui largado no meio da multidão,
não sabia onde era a entrada ou a saída, estava sem minhas noções geográficas. Os
integrantes do trem não buscavam a saída, mas queriam chegar mais perto do
palco, e eu, infelizmente, percebi isso tarde demais. Quando dei por mim estava
há um palmo da cerca de ferro que separa o palco do povão.
O som dos gritos, tanto da taquara-rachada
que cantava no palco, como das fanáticas enlouquecidas que me cercavam de todos
os lados, quase me deixou surdo – pena que não
deixou! –
Num vacilo de alguns seguranças, consegui subir na cerca e tentar ficar uns
centímetros mais altos pra procurar meus amigos, mas naquele mundo de gente,
sem noção de música, diga-se de passagem, não se via ninguém, daí eu pensei que
se eles queriam me pregar uma peça, deveriam estar em algum lugar ali rindo da
minha cara.
Deixando de lado o meu orgulho,
comecei a pedir ajuda, gritava com os braços erguidos, olhava esperançoso em
todas as direções. Quanto mais a histérica “cantava”, mais eu agitava os braços,
clamando por socorro. Foi nesse curto espaço de tempo que senti alguém me
agarrando com uma bruta força que me tirou da cerca, vi que era um segurança – uns
dois metros de altura por um de largura – imaginei que
seria expulso do show, mas, para aumento da minha tristeza, não foi isso que
aconteceu. Parece que a galega gritante escolhera um fã para cantar uma música
consigo, adivinha quem ela escolheu no meio da multidão, adivinha!
Me empurraram
com muita força no palco de onde eu via uma multidão histérica gritando algo
ininteligível aos meus ouvidos acostumados apenas com a língua portuguesa e um
pouco de inglês. A louca desafinante cantava uma música, que pelo que entendi,
contava a história de uma cavalo manco, talvez inspirado em alguma montaria de
um ex-freguês. Sem eu menos esperar, o microfone estava seguindo em direção à
minha boca. Foi mais ou menos nesse momento que avistei meus “queridos” amigos
rindo às gargalhadas trepados numa torre de som. Filhos da puta!, pensava em
voz alta, quando sair daqui vou dar uma surra em cada um deles que eles nunca
mais vão esquecer enquanto estiverem vivos e conscientes.
Chegou
minha vez de cantar. A Xuxa dos anos trinta – nenhuma menção ao glamour dessa época,
mas é a década que provavelmente a doida nasceu – me abraçava com aquele corpo suado e fedorento e encostou aquele microfone
babado na minha boca. Não tive tempo de pensar no que dizer, olhei pros boys em
cima da torre e disse o que pensava e está transcrito no parágrafo acima, mas
não custa repetir. – Vocês tão fudido na
minha mão, seus galados, filhos de ra... – não pude terminar a frase. A
animadora de multidões me empurrou para o lado e continuou o pedaço da música
que eu tinha que cantar enquanto me encarava de canto de olho com o olhar mais
feio do que o da mãe que olha para o assassino que seu filho de sete anos e
meio de idade.
Seguranças
do palco me tiraram, lógico, à força, chega machucaram minhas costelas, mas até
que poderia ser pior no fim das contas. Os fãs dos sem-cultura me vaiavam
enquanto isso. Eu, nessa hora, já tinha
esquecido por um instante da raiva que sentia dos meus amigos e da situação e
comecei a me preocupar com minha integridade física. Eu poderia ser morto apenas
por um murro de um dos quatro seguranças que me cercavam e diziam:
– Tá
tirando onda com nossa cara?
– Não,
senhor! – eu disse tremendo. – Só estou rezando para que não me machuquem
muito.
– E
por que faríamos isso? – um deles perguntou com uma cara que julguei sínica.
– Porque
eu acanalhei o show dos seus patrões, e...
Fui
interrompido pelas gargalhadas.
– A
gente não iria te machucar... a gente odeia o Calypso também, a gente nem
trabalha pra eles... a gente presta serviço para casa. Como você, a gente curte
mais um rock (deve ter deduzido pela camisa, as pulseiras, e os outros mais
detalhes característicos dos roqueiros), e estamos ansiosos pra semana que vem
que é o show do Nando Reis.
– Não
acredito, é semana que vem? Os filhas-das-putas dos meus amigos me largaram
aqui dizendo que era o show dele...
– Faz o
seguinte... me procure semana que vem aqui que eu te boto no camarim do Nando.
– Não
acredito... tá falando sério?
– Claro,
aparece aí.
E assim
o fiz.
Moral da
história: até um show do Calypso pode ser bom quando a gente sabe fazer amizade
e vestir a camisa certa.
por
Rodrigo Slama
às
23:13
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Contos
quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010
Churrasco Na Lagoa
Certo dia, no Bosque dos Cajueiros, duas famílias próximas combinaram de fazer um churrasco na Lagoa da Leguminosa Doce. Porém, a Família Buscapé, que não tinha ainda achado petróleo no quintal, disse que não iria, pois não tinha carro, e não ficaria na aba de ninguém, mesmo que num tempo passado a Família Malfoy, a outra desta história, havia largado os filhos na casa dos Buscapé, sem aviso prévio nem hora pra voltar – um problema já que matriarca dos caipiras estava de cama com dengue.
– Não, não tem problema! A gente quer a companhia de vocês... Faz o seguinte, de sete a gente passa com o Doblò na sua cabana pr’agente ir pra Lagoa da Leguminosa Doce... Fiquem tranquilos, a gente já comprou duas picanhas, três peças de alcatra, além de queijo coalho, linguiça e asa frango. Não precisam levar nada, viu? A gente tem dinheiro, a gente é “ricos”, a gente pode comprar o que bem a gente quiser.
Depois que a família Malfoy saiu da casa dos Buscapé, que ficava perto da praia, e, por isso, a deixavam sempre que iram (todo fim de semana) suja de areia e coco de poodle, a mãe Buscapé perguntou ao seu marido:
– O que você acha?
– Acho melhor nós irmos, se não eles nos chamarão de antissociais, eles sempre dizem que nós nos afastamos da família. Iremos, mas vamos levar nosso feijão bem carregado, nossa farofa de bacon e o nosso famoso arroz soltinho, você sabe, querida, como eles são, e churrasco só de carne não é a mesma coisa, não é? É sempre bom um acompanhamento.
Como visto, a família Buscapé concordou em ir, mesmo sabendo que a Família Malfoy não estava interessada na companhia deles. O maior prazer da Família Malfoy era se mostrar como a mais rica do Bosque dos Cajueiros, que tinha carros do ano, os melhores apartamentos da região etc. E o motivo pelo qual tinham raiva da família Buscapé é porque, mesmo sem dinheiro, os filhos dos Buscapé eram mais inteligentes e bonitos... E era principalmente a inteligência que deixava com inveja a Família Malfoy, já que, mesmo tendo os filhos estudando nos melhores colégios, eles sempre ficavam em recuperação, e, ano sim ano não, repetiam o ano letivo, o que os faziam ser os maiores, mas não os mais fortes e temidos da sala, e o fato de ter quatorze anos na sexta série os deixavam estigmatizados, e nenhuma menina queria ficar com eles.
No dia marcado, por volta das dez e meia da manhã, a Família Malfoy chegou, o pai dirigia um Santana e a mãe estava com seu Doblò. Se já não bastasse o atraso, a Família do Mal ainda apressava a Família do Bem, mesmo eles estando, há horas, todos prontos. Antes de entrar no carro, o pai Buscapé lembrou-se de pegar as panelas, o que gerou desdém e gargalhadas na Família Malfoy inteira.
– Eu não falei que não precisava levar nada? O carro ta cheio de carne... Pobre é foda mesmo, num sabe que churrasco é pra comer só carne... Não precisa encher o bucho de feijão, arroz, farofa e molho à campanha, tem carne suficiente pra todo mundo! – disse num tom que sugeria brincadeira, apenas sugeria.
– Não comadre – disse o pai Buscapé na, como sempre, maior humildade – é que eu gosto de comer arroz e feijão mesmo, sabe como é pobre, né? Não se preocupe, nós sabemos que você comprou carne pra todos, estou levando essa comida por questão de gosto. Longe de mim, sugerir que não tem carne.
As famílias seguiram rumo à lagoa. Assim que chegaram, abriram as mesas, armaram as barracas, tiraram do carro a churrasqueira, que era da Família Buscapé, puseram carvão e acenderam, e enquanto as crianças se divertiam na Lagoa da Leguminosa Doce, as famílias se preparavam para preparar a carne
– José, cadê as carnes? – perguntava para o pai Malfoy a esposa.
– Está no porta-malas, não?
– Não, José! Eu só achei o queijo e as salsichas.
Salsichas? Quem leva salsicha para um churrasco?
A Família Malfoy procurou nos dois carros. Abriram o isopor com os refrigerantes, olharam dentro das sacolas, viram perto das salsichas e do pouco queijo coalho outra vez, mas nada.
– A gente esqueceu a carne – disse a mãe Malfoy à Família Buscapé, que não era burra, claro, e já tinha percebido o lance desde a primeira indagação pelo principal ingrediente de qualquer churrasco – mas tem salsicha e queijo coalho! Essas salsichas são Sadia, as melhores que tem, e o queijo custou R$ 27,90 o quilo! – Talvez por isso só tivesse duzentos gramas.
– Não tem problema – disse o pai Buscapé com o sorriso sincero de sempre – no meu feijão tem carne seca, pé de porco, toicinho, linguiça... assim como a farofa – que tinha mais carne que farinha.
Todos comeram do feijão Buscapé, comeram não, se esbaldaram. Sempre que os filhos dos Malfoy viam comida agiam assim, como se comessem pouco em casa, sabe? Essa família tem essa fama mesmo, de ser forrageira, como dizem. E enquanto os filhos Buscapé se divertiam brincando na lagoa, os filhos dos Malfoy se preocupavam em tirar a barriga da miséria, como se não comessem feijão, ou qualquer boa comida, há semanas.
Então, se não fosse o feijão, a farofa, o molho e o arroz dos Buscapé Farofeiros, como a Família Malfoy foi chamando todo o caminha em direção a lagoa, o churrasco de salsicha teria sido pior, bem pior, ou melhor, extremamente pior do que poderia ser. Agora eu pergunto, leitor: será que houve realmente um esquecimento ou uma sacanagem da família Malfoy?
por
Rodrigo Slama
às
16:44
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terça-feira, 26 de janeiro de 2010
Suco de Caju
Acontece desde o dia que me perdi na mata da Barreira. Eu estava a procura de caju, pois me bateu uma vontade enorme bem aqui, no órgão dos desejos, de tomar um suco bem gelado. E como painho pegava todos os cajus dos cajueiros do quintal pra vender quase nunca eu tomava meu suco favorito, que ficava ainda melhor quando mainha fazia. Ela peneirava o suco, adoçava na medida certa. E eu, que nunca tive muita paciência, me desesperava pra fazer e beber logo.
Além de recolher os cajus do quintal, meu pai também andava pela mata da Barreira procurando mais frutas para enriquecer a barraca. Ele sabia todas as trilhas, as que eram visitadas por soldados e as que nunca eram lembradas no itinerário dos aviadores. Aprendi com ele a andar por aqueles matos, conhecia todas aquelas trilhas, guardava na memória todas as bifurcações e encruzilhadas, inclusive lembrava ao meu pai do caminho certo quando ele se confundia, por isso não sei como naquele dia eu me perdi.
Provavelmente meu pai e os outros barraqueiros já tinham passado por lá, pois já não havia nenhum cajuzinho. Fiquei encucado, meu pai não tinha me chamado, olha que ele preferia que eu perdesse aula do que deixasse de ajudá-lo a recolher caju, já que nessa época minha mãe tava de resguardo, e os outros meninos eram muito pequenos para começarem a trabalhar. Mesmo percorrendo todos os caminhos que conhecia não encontrava de jeito algum a matéria-prima para o mais delicioso dos líquidos existentes na face da minha memória, o suco de caju.
Andei, andei e andei até me cansar e me perder das trilhas e caminhos conhecidos, logo eu que achava conhecer todo aquele emaranhado de rastros, e o pior é que eu não encontrava nem se quer um caju de fazer remédio. À noite já ia chegando, eu estava tão cansado que resolvi procurar logo uma árvore para dormir. É... é melhor dormir numa árvore! Nunca se sabe o que pode aparecer no meio do mato à noite, uma raposa, um foragido de Alcaçuz... Sei lá! Só sei que naquele momento era melhor dormir numa árvore do que ter que continuar procurando, em vão, o caminho de casa.
Eu me preocupava com mainha, “ela deve estar preocupada comigo”, pensava eu em voz alta. Eu pouco me lixava para o meu pai que só daria pela minha falta no dia seguinte, quando iria me acordar bruscamente para ajudar a recolher caju e outras frutas para vender, e o pior é que eu não podia ficar com três ou quatro cajuzinhos azedos para fazer meu suco. Olha que eu ainda não tinha tomado suco de caju nessa safra.
Meu pai não se importava comigo, nem com minha mãe ou meus irmãos menores, ele gastava todo o dinheiro apurado na venda das frutas com cachaça e rapariga, inclusive ele insistia em me levar consigo para a farra, dizia que eu já era um “homi” e precisava frequentar lugares de tal. A minha mãe, pobre mulher, não o deixava me levar, dizia que cabaré não era lugar para um menino de menos de oito anos. E toda vez que minha mãe ia contra meu pai apanhava muito, bem mais do que nas vezes em que ele a espancava sem motivos, acusando-a injustamente de roubar o dinheiro da barraca, dando-lhe socos e chutes, isso quando não a batia com corda molhada com um nó na ponta.
Meu pai nunca soube, mas eu é quem roubava uns trocados ou outros da barraca dele para comprar farinha para os meus cinco irmãos menores comer, já que se não fosse assim nós iríamos morrer de fome, pois ele, na glória de sua sabedoria, não deixava minha tia trazer um pouco de macaxeira de sua pequena horta de fundo de quintal, meu pai dizia que era dele o dever de manter a família, decerto era, mas hipocritamente ele não cumpria, ele nunca cumpria o que dizia.
Passei aquela noite em claro, com frio, fome e medo. Num raro cochilo, de cima do galho do de um cajueiro sem fruto, sonhei que estava comento muito caju, doce de caju, torta de caju, caju à milanesa... Era tanto caju, mas tanto caju que nem mesmo todas as barracas da beira da Rota do Sol tinham juntas, e no melhor do sonho me veio mainha com uma jarra de suco de caju, naquele sonho eu bebi e comi tanto caju que até hoje, desde aquele dia em que me perdi, acontece de eu ficar com enjoo, e acabando por vomitar, toda vez que sinto o cheiro de suco de caju.
Além de recolher os cajus do quintal, meu pai também andava pela mata da Barreira procurando mais frutas para enriquecer a barraca. Ele sabia todas as trilhas, as que eram visitadas por soldados e as que nunca eram lembradas no itinerário dos aviadores. Aprendi com ele a andar por aqueles matos, conhecia todas aquelas trilhas, guardava na memória todas as bifurcações e encruzilhadas, inclusive lembrava ao meu pai do caminho certo quando ele se confundia, por isso não sei como naquele dia eu me perdi.
Provavelmente meu pai e os outros barraqueiros já tinham passado por lá, pois já não havia nenhum cajuzinho. Fiquei encucado, meu pai não tinha me chamado, olha que ele preferia que eu perdesse aula do que deixasse de ajudá-lo a recolher caju, já que nessa época minha mãe tava de resguardo, e os outros meninos eram muito pequenos para começarem a trabalhar. Mesmo percorrendo todos os caminhos que conhecia não encontrava de jeito algum a matéria-prima para o mais delicioso dos líquidos existentes na face da minha memória, o suco de caju.
Andei, andei e andei até me cansar e me perder das trilhas e caminhos conhecidos, logo eu que achava conhecer todo aquele emaranhado de rastros, e o pior é que eu não encontrava nem se quer um caju de fazer remédio. À noite já ia chegando, eu estava tão cansado que resolvi procurar logo uma árvore para dormir. É... é melhor dormir numa árvore! Nunca se sabe o que pode aparecer no meio do mato à noite, uma raposa, um foragido de Alcaçuz... Sei lá! Só sei que naquele momento era melhor dormir numa árvore do que ter que continuar procurando, em vão, o caminho de casa.
Eu me preocupava com mainha, “ela deve estar preocupada comigo”, pensava eu em voz alta. Eu pouco me lixava para o meu pai que só daria pela minha falta no dia seguinte, quando iria me acordar bruscamente para ajudar a recolher caju e outras frutas para vender, e o pior é que eu não podia ficar com três ou quatro cajuzinhos azedos para fazer meu suco. Olha que eu ainda não tinha tomado suco de caju nessa safra.
Meu pai não se importava comigo, nem com minha mãe ou meus irmãos menores, ele gastava todo o dinheiro apurado na venda das frutas com cachaça e rapariga, inclusive ele insistia em me levar consigo para a farra, dizia que eu já era um “homi” e precisava frequentar lugares de tal. A minha mãe, pobre mulher, não o deixava me levar, dizia que cabaré não era lugar para um menino de menos de oito anos. E toda vez que minha mãe ia contra meu pai apanhava muito, bem mais do que nas vezes em que ele a espancava sem motivos, acusando-a injustamente de roubar o dinheiro da barraca, dando-lhe socos e chutes, isso quando não a batia com corda molhada com um nó na ponta.
Meu pai nunca soube, mas eu é quem roubava uns trocados ou outros da barraca dele para comprar farinha para os meus cinco irmãos menores comer, já que se não fosse assim nós iríamos morrer de fome, pois ele, na glória de sua sabedoria, não deixava minha tia trazer um pouco de macaxeira de sua pequena horta de fundo de quintal, meu pai dizia que era dele o dever de manter a família, decerto era, mas hipocritamente ele não cumpria, ele nunca cumpria o que dizia.
Passei aquela noite em claro, com frio, fome e medo. Num raro cochilo, de cima do galho do de um cajueiro sem fruto, sonhei que estava comento muito caju, doce de caju, torta de caju, caju à milanesa... Era tanto caju, mas tanto caju que nem mesmo todas as barracas da beira da Rota do Sol tinham juntas, e no melhor do sonho me veio mainha com uma jarra de suco de caju, naquele sonho eu bebi e comi tanto caju que até hoje, desde aquele dia em que me perdi, acontece de eu ficar com enjoo, e acabando por vomitar, toda vez que sinto o cheiro de suco de caju.
por
Rodrigo Slama
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