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Enviagrado

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            Estava em um bairro afastado, na Zona Sul. Não tinha problemas, iria cobrar o de costume. Iria satisfazer, mais uma vez, os desejos sexuais de alguém que, provavelmente, não lhe atrairia. Antes de chamar o moto-táxi de sempre, ligou para a farmácia e pediu alguns estimulantes sexuais... estava tomando cada vez mais comprimidos para impotência.             César foi para o motel de sempre se encontrar com um cliente diferente. Tinha esperança de ser alguém que chamasse atenção, despertasse algum desejo, que fizesse curtir a experiência. Não aconteceu. O parceiro momentâneo era como ele: alto, sarado, moreno, jovem. Não se atraía por tipos comerciais. E nem se atraía pelo oposto: baixo, gordo, branco, coroa. Na verdade, se atraía por um tipo bem particular: alto, pernas finas e braços fortes, tatuagens, cabelos pintados, asiático.         ...

O demônio do canavial

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Oito anos, uma faca e uma vontade de chupar cana. Sem permissão, invadi o quintal do vizinho para roubar um pouco do bambu doce que seria a sobremesa de uma janta que não tão agradável. Naquele escuro terreno do interior paulista, segurei meu medo e deixei a vontade de consumir algo engordativo tomar conta dos seus instintos. Sentia um pouco de medo, mas a vontade de me lambuzar de cana era maior... Nenhum mal poderia acontecer, certo? Ledo engano.   Uma criatura demoniosa sai apavorante da terra quando eu estava levantando a faca favorita da minha mãe para desferir o primeiro golpe na minha sobremesa. Quando vi aquele ser das trevas, fiquei sem ter como gritar, sem quase respirar... Pavor, muito pavor. Aquele bicho parecia um bode com rabo de cobra, chifres pontudos e uma aura maligna que me fez esquecer de mim mesmo. Estava convencido de que não iria dormir na minha cama, mas numa cama de pregos em cima de um braseiro no inferno. As chamas do inferno iriam consumir a...

O demônio do Beco da Luz

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O Beco da Luz era um atalho no centro da cidade. Entretanto, ao contrário do que o nome sugere, é escuro durante todo o dia. Isso porque as lâmpadas eram constantemente quebradas e as construções em volta, os prédios muito colados, impediam que a luz penetrasse naqueles 170 metros de umidade, sujeira e depressão. Mas eu não tinha saída. Nunca andava pelo Beco da Luz. A aula tinha acabado tarde, eu não poderia me dar ao luxo de percorrer cinco quarteirões para pegar o último ônibus. Sei que não é bom alguém andar sozinho num lugar ermo, como aquele – eu pedia muito a Deus que estivesse ermo – ainda mais sendo mulher. Eu não tinha saída. Tinha que passar pelo Beco da Luz. Peguei o meu terço na bolsa. Andava o mais rápido possível para não correr. Eu já tinha passado por lá antes, mas durante o dia e acompanhada por alguns colegas da faculdade. Sabia que não seria uma experiência agradável, muito menos passaria rápido como da vez que estava acompanhada... mas seria rápido no ...

Pastor

– Pastor. – Sim, meu filho. – Eu estou com uma dúvida. – Diga qual a sua inquietude. Deus me deu o dom da palavra e da revelação. Se for da Sua vontade, as suas dúvidas serão sanadas, Amém? – Amém. – Pastor, eu não estou entendendo algumas coisas que estão na Bíblia... que estão ou não estão. – Como assim, irmão? – Os dinossauros, por exemplo. Não estão na Bíblia. – Eles não existiram. – Não? – Não. Se não estão na Bíblia, não existiram.   – Mas e os fósseis? – Tudo obra do inimigo para tirar o seu foco em Jesus, Amém? – Amém. – Mas e toda teoria evolucionista. Os cientistas discordam que o homem veio do barro. – Também é mentira. Artimanhas do inimigo. Olha, irmão, você já viu macaco virar gente? – Não, pastor. – Então. Se macaco virasse gente, não teria mais macacos no mundo, Amém? – Amém. – Mas, pastor, se Deus fez apenas Adão e Eva, e se todos os seres humanos são seus filhos, por que somos tão diferentes. Asiáticos são de um jeito, africanos de...

O palhaço assassino da Rua 417

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Ilustração André Silva            Morava na Rua 417 um palhaço muito engraçado que costumava fazer apresentações na porta de sua casa quando não estava em algum circo ou fazendo campanha para um supermercado ou loja de brinquedos chineses. Ele era muito querido por todos... uma das figuras mais cativantes e amistosas do bairro.             Meninos e meninas sempre saíam da escolinha e passavam direto na Rua 417 para apertar a mão de Palhaço e assistir aos seus números de mágica e toda a sua palhaçada. Era sempre uma festa. Ninguém sabia quem ficava mais feliz com as visitas das crianças, que foram crescendo e, aos poucos, se esquecendo do palhaço que, já sem circo e sem muito ter onde se apresentar, ficava cada vez mais solitário.             O que antes era alegria, motivo de acordar sorrindo e pensando num novo truque, numa nova piada...

O cheque em branco

Eu estava na fila do banco. Faltavam algumas pessoas para ser atendidas. Eu tremia. Estava com um cheque em branco do meu pai. Eu tremia. Aquilo era, de certa forma, errado, mas eu precisava pegar todo o dinheiro da conta corrente... raspar o tacho. Iria preencher ali na hora o valor todo. Eu tremia, temia, mas me continha... não iria deixar um centavo no banco. Tinha 16 anos. Morava numa cidade pequena do interior de São Paulo. Todos me conheciam, sabiam que eu era responsável. Desde que meu pai tinha ficado doente, eu quem fazia todo serviço burocrático da casa. Ia no banco trocar os cheques, fazia as contas do mês, calculava o quanto tinha na dispensa e o que compensava mais comprar para a feira. Meu pai já estava muito doente, e eu aprendi a falsificar sua assinatura. Ninguém percebeu. Eu ia ao banco todo mês pegar o dinheiro necessário para pagar as contas de casa. Mas naquele dia era diferente... eu iria pegar todo dinheiro da conta corrente, não iria deixar um centavo furado ...

Tia Alcinéia

Tia Alcinéia foi a minha professora da alfabetização. Terminei o mestrado há pouco tempo e confesso que não me lembro de alguns professores. Mas de Tia Alcinéia, que me ensinou a codificar e decodificar o português há vinte anos, eu me lembro. Lembro muito bem, infelizmente. Tia Alcinéia era baixinha, gorda, calva, com alguns dentes faltando e com os que sobravam meio podres. Ela era, como deveria ser toda alfabetizadora da época, extremamente tradicional. Tão tradicional que hoje eu conto os castigos que ela me passava aos meus alunos e eles não acreditam, acham que é coisa de desenho da Fox. Eu repetia, sempre que fazia algo errado, duzentas vezes na folha de ofício “Não devo fazer x coisa”. Não me lembro o que aprontava, não me lembro o que escrevia, mas lembro das lágrimas molhando o papel branco que o lápis fatalmente furava e eu tinha que passar tudo a limpo. Tia Alcinéia me marcou... Certa vez, vendo tevê com minha mãe, apareceu uma mulher com este nome. Eu gelei. Já adu...