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domingo, 25 de outubro de 2015

Meninas, mulheres




A primeira vez, me senti suja. Ele levantou o meu vestido e tocou em mim. Resisti, ameacei gritar. Foi embora. Não sabia se agradecia a Deus pelo livramento ou o culpava por ter permitido aquilo. Chorei, tomei banho. Enquanto lavava os meus seios ainda muito pequenos que tinham despertado o desejo imundo dele, pensava se aquilo aconteceria de novo.
Da segunda vez, ele veio preparado. Tapou minha boca antes que eu pudesse gritar chamando por alguém que estivesse distante. Tudo era longe. Com a mão livre, ele apertava forte os meus peitos, e enquanto eu sentia seu pau endurecer, ele me alisava entre as pernas. Me lambia o pescoço e cheirava a mão. Um barulho vindo de fora interrompeu sua festa.
Eu pensava o que tinha feito contra Deus para que ele permitisse isso. Antes que eu pudesse pensar em contar para alguém, ele veio até meu quarto à noite. Me ameaçou. Mataria a minha mãe, o meu irmão e depois me mataria. Apertou meu pescoço até me sufocar para provar o quanto sua palavra valia. Chorando, não produzi nenhum som e toda hora tentava não olhar na cara dele. Rezei, mas não dormi.
Desatenta, quebrei um prato enquanto preparava o almoço. Mais do que por esta bobagem, apanhei com cinto, levei murro. Me chamava de puta, dizia que eu era uma vadia. Se minha mãe não tomasse conta, acabaria engravidando de um vagabundo. Chorei, mas sem fazer barulho. Eu tinha ódio, eu tinha muita vontade de fugir, mas não tinha para onde. Xingava Deus por isso.  
À noite, naquele mesmo dia, eu ainda estava toda marcada por conta da surra. Fui dormir cedo, sono leve, preocupado. Meu coração apertava, eu remoía uma culpa que achava ser só minha. Senti aquela mão na minha bunda. Ele puxou minha calcinha, abriu minhas pernas e me penetrou. Sem soltar um pio, tentando nem chorar, virei mulher aos dez anos de idade. Não sei se doía mais lá embaixo ou no meu coração. Se eu pudesse, eu não o mataria. Eu mataria Deus por isso.
Minha mãe quase não falava comigo. Quando falava, era pra mandar fazer alguma coisa. Eu queria contar pra ela, mas achava que ela já sabia. E toda noite ele vinha no mesmo horário. Fazia sempre quase as mesmas coisas. De vez em quando, mandava eu fazer algo nojento. Sem soltar um som, fazia o que ele mandava. Durante o dia, ele me xingava. Não deixava mais eu ir pra escola, porque lá eu viraria puta. Puta era a palavra que mais usava para me agredir. Mal sabia o que era puta, mas eu preferia ser qualquer coisa do que ser eu.


terça-feira, 22 de setembro de 2015

Pastor 02




– Pastor.
– Sim, meu filho.
– Eu estou com um dúvida.
– Novamente, irmão?! Vejo que o inimigo está implantando a inquietude no seu coração. Se o seu coração não tem Deus, o Diabo toma conta, Amém?
– Amém. Pastor, é justamente sobre o coração que eu gostaria de falar.
– Pode falar, irmão! Deus me deu o dom da palavra, encontrarei a palavra certa para lhe confortar, Além?
– Amém. Pastor, é que eu estou com dúvidas sobre a minha orientação sexual.
– Como assim, irmão?
– Faz um tempo que eu tenho desejos por homens. Vivo trocando de namorada e não consigo gostar de nenhuma.
– Isso é coisa do Satanás! Isso é coisa daquele que quer lhe arrastar da igreja para te jogar numa sauna cheia de veados. O Satanás quer que você gaste todo seu dinheiro com perfumes, roupas de marca... ele está implantando esses desejos no seu coração para você ter cada vez menos dinheiro para o dízimo, para as ofertas e para os propósitos. Deus não gosta de gays, Amém?
– Amém. Mas, pastor, eu estou dando quase todo meu dinheiro em propósitos para esses meus desejos pararem... Eu andei lendo a Bíblia e não vi Jesus condenando em momento nenhum a homossexualidade.
– Mas você não pode confiar só no que sai da boca de Jesus de acordo com o evangelho. Em Levítico 18:22, Jesus fala “Não se deite com um homem como quem se deita com uma mulher; é repugnante”, Amém?
– Amém. Mas, pastor, este livro não foi escrito por Moisés... muitos e muitos séculos antes de Jesus?
– Está vendo, irmão, como o inimigo está te cegando! Antes mesmo de Jesus nascer ele já era Deus... e ele quem falava com Moisés. Amém?
– Amém.
– Olha. Você precisa deixar de frequentar festas. Você vai ficar em casa nos finais de semana lendo os livros que o bispo escreveu. Amém?
– Amém. Mas, pastor, não é melhor eu ler a Bíblia?
– Não, amado. Leia os livros do bispo que ele já leu a bíblia e deixou mais fácil de entendê-la. Pra entender a Bíblia, você precisa estar cheio do Espiro Santo, caso contrário, o inimigo te encherá de dúvidas. Amém!
– Amém, pastor!

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sábado, 19 de setembro de 2015

O comedor da escola



Bombado. Notas baixas. Uma ou duas reprovações. Alto índice de ocorrências por indisciplina. O comedor da escola é um sujeito bonito por fora e cheirando a ovo cozido e batata doce por dentro. As meninas o adoram... e ele, geralmente, se aproxima das estudiosas e nem sempre é pra conseguir cola.
Se fosse apenas cola... O comedor da escola já foi pego colando, já foi pego fumando, já foi pego estuprando. “Cu de bêbada não tem dono” é o lema do seu grupinho de amigos, que transcende a Constituição, mas não fere o regimento. Eles têm tempo pra beber, trepar, viajar, mas não estudam...  são os meninos que dormem durante as aulas, porque acordaram muito cedo pra treinar, como eles chamam a ida à musculação.  
Todos bebem com o comedor da escola. Todos resenham com ele. Ele vai embora bêbado das festas com o carro cheio de gente. O próprio carro que dirige aos dezessete anos sem habilitação, sem cinto, sem medo. Chega em Pirangi com a turma, continua bebendo com o som alto. Uma das meninas agora já é mulher. O arrependimento será esquecido nos próximos meses, nos próximos porres, quando passar na Federal.
O comedor da escola não vai passar na Federal, mas vai ser doutor! Já no primeiro semestre do curso de Direito da UnP, consegue estágio no escritório do pai, mas quer ser juiz como a mãe. Maldita OAB! Agora, ele tem de estudar. Com dinheiro, dá-se um jeito. Já tem sala própria, tem alguns clientes importantes...
           Está defendendo um rapaz de dezessete anos. Bombado. Notas Baixas. Uma ou duas reprovações. Alto índice de ocorrências por indisciplina. Uma batida com o próprio carro que dirigia sem habilitação, sem cinto e sem medo. Uma morte de um mendigo que dormia na calçada na madrugada. Causa fácil. Mais uma vitória.

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Crente que é gente




Carla era uma mulher sem muito amor. Era mãe de dois filhos já na faculdade, mas que moravam com ela. Era filha de pais aposentados que moravam no interior, mas que se falavam todo dia pelo telefone. A protagonista desta curta história era casada há 21 anos, e, durante muito tempo, o seu sonho foi estudar e trabalhar, mas tinha que cuidar da casa, cuidar dos filhos, cuidar do marido e das coisas da igreja.
            Enfim, para a sua felicidade, Carla conseguiu, depois da maturidade, entrar numa faculdade. Ela escolheu uma profissão de status, que lhe conferiria o respeito que ninguém, nem marido nem filho algum, já a haviam dispensado. Catou seus documentos e conseguiu um financiamento federal para estudar Direito numa decente universidade do seu estado. Ah... ela estava tão feliz... agora, como a sua irmã, que era médica formada na Universidade Federal, ela teria algum valor... Direito era um curso muito belo... poderia, além do diploma, lhe conferir dignidade, como se só quem tivesse um título emoldurado na parede tivesse o direito inalienável, como anos atrás, de ter dignidade neste país.
            Foi uma luta terminar o curso... no início, teve que se virar para pagar o material, os livros e ainda pagar pelos trabalhos e provas que não conseguia fazer... Afinal, não é uma, duas ou dezoito disciplinas que não se acompanha bem que fará um estudante universitário sair com menos bagagem, não é mesmo? E assim ela foi... fez os estágios, colou o grau... o marido, nestes cinco anos, havia sido promovido então eles já vinham pagando o FIES para não deixar tudo pra depois...
            O problema, caro leitor ou leitora, é que quando você paga para fazerem seus trabalhos, quando você paga para fazerem seus resumos, fichamentos, só te darem a parte pronta num seminário ou mesmo paga para fazer uma prova em dupla, você acaba saindo da universidade do mesmo jeito que entrou. Agora, Carla era uma doutora como diz no popular, mas não conseguia passar no exame da OAB e, consequentemente, exercer a sua profissão. Tinha um diploma na parede. Tinha apenas um diploma na parede.           
            O problema, sabe, não é nem a falta da carteira da Ordem ou o fato dela ter pago pelos trabalhos, enfim... O problema todo é a sua arrogância... a sua prepotência. Parece que, mesmo não tendo entrado de verdade no mundo do direito, a empáfia que alguns profissionais carregam a acompanha. Por isso, ela arruma briga com o padeiro, com o porteiro, com o professor dos seus filhos... Se um dia você cruzar com ela, não ouse falar em leis, direitos ou constituição em sua frente ou pelas costas, ou você será vítima – sim, vítima – de um discurso armado, pronto, no esqueleto, faltando apenas a cereja, a contextualização temporal e local para que ela tente passar por cima de você...
            Sim... como não conseguiu muita coisa em sua vida, agora, a sua alegria é passar por cima do ego alheio, da moral, da verdade... tudo que estiver acompanhando o seu opositor – todos que não concordam com ela são seus inimigos – será alvo de seus argumentos ancorados no senso comum com algumas palavras-chave prontas, em stand-by aguardando o momento oportuno.
          Quando consegue, raramente, passar por cima de alguém menos instruído, Carla se sente mais gente, mais ser humano, mais advogada formada... o seu marido, pobre coitado, nem entra mais na onda de sua esposa. Ele também participa de sua igreja que prega o amor eterno entre os casais, o ‘felizes para sempre’... e acha que é uma provação o que ele passa... como se o seu deus quisesse que ele sofresse tanto vendo a mulher pregar e ler uma coisa nos púlpitos da igreja e fazer absolutamente o contrário em sua vida real.
            É, meu amigo ou amiga, eu me preocupo muito com este tipo de pessoa que quer se tratorar através das outras, estes parasitas que têm seu ego inflado quando suprimem da forma mais baixa e mesquinha o direito dos outros. Quando eu encontro com Carla, eu finjo que ela ou eu somos um personagem... e tento não levar para o lado pessoal as asneiras que diz. Pra mim, agir desta forma é algo que vai contra o que eu sigo, o que eu prego, o que eu vejo e acredito. Eu creio que o mundo precisa de mais humanidade e menos arrogância. Carla, por sua vez, é crente que é gente. 

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

É medicina. É Federal!


Cara de médica, família de médica. Sonhava desde menina em ser médica. Era uma aluna semiexemplar... tirava boas notas, mas não mostrava muita humanidade. Ela era aquela menina que questiona o professor como um arguidor de banca de pós-graduação, só que sem saber de quase nada. Ao ter o questionamento sempre respondido e contradito, não concordava. Tinha lido em algum lugar que era diferente... O pai, que era médico, disse que tal conceito de biologia era diferente... A mãe, também médica, disse que tal concepção de linguagem era diferente... A irmã, estudante do último período de medicina, disse que o cálculo do problema de matemática era diferente. Estava tudo errado e não tinha argumentos para sustentar sua indiferença.
Médica, sim. Ela seria médica em breve. Claro que passaria no vestibular, mesmo com as cotas injustas que diminuem as chances dos filhos de quem trabalhou a vida inteira para pagar uma boa escola particular. Nicole acreditava em meritocracia. Achava que, ao estar naquela escola de ponta paga pelos seus pais que herdaram a profissão elitista dos seus avós, tinha as mesmas oportunidades de um aluno de escola pública. Não, mentira. Ela não tinha as mesmas oportunidades, na verdade, ela era prejudicada pelas malditas cotas. Malditas cotas! Uma discriminação com quem é negro, porque está dizendo que o negro não tem a mesma capacidade de alguém branco, loiro, de olhos claros e família de médicos.
Nunca maltratou os funcionários terceirizados da escola... mas nunca cumprimentou o porteiro ou o faxineiro... Na verdade, nunca reparou nos faxineiros. Mesmo dispensando uma educação falsa e, por várias vezes, falha aos professores e demais membros da equipe pedagógica, Nicole era a esperança da escola. Teremos, certamente, uma aluna aprovada em medicina este ano e garantir os mesmos resultados dos anos anteriores. Essa menina vai estampar nossos outdoors e fazer campanha com curativos coloridos no nosso site. Vamos ter muitos alunos... Inclusive, ela é boa candidata para tirar nota 1000 na redação.
Mediana. Não foi a primeira colocada. Se não fossem os cotistas, teria até ficado numa posição melhor no SISU. Não importa. O que importa é que Nicole é Federal. Já é médica. Nas suas redes sociais, médica em formação era o que mais se via... mesmo antes da matrícula na UFRN, afinal, ela já estava se preparando há anos para entrar na Universidade. Após a festa, regada a muita carne de primeira e whisky 18 anos, Nicole iria para Miami comprar as suas roupas para começar a faculdade. Trouxe várias sandálias e sapatos brancos, bolsas de marca, roupas de grife... mas o principal era o jaleco. Desde pequena, já tirava fotos com jaleco.
Era muito trabalho. Estudar medicina não é fácil pra ninguém. Estudar medicina e ter uma vida social badalada é mais difícil ainda. Fora as calouradas, era preciso continuar frequentando as festas disputadas do seu nicho social. Mas ela era guerreira. Ao contrário dos cotistas, ela tinha mais inteligência para conciliar os estudos às demais atividades. Ganhou um carro antes da viagem à Miami. Um carro importado, claro, quem é que dirige carro popular na faculdade de medicina? Só quem entrou pela cota. Como aquele carinha que era farmacêutico e aproveitou a cota por ser negro. Nada a ver. Ele já tinha até carro, tinha uma profissão. Como alguém se submete a um programa que te reconhece como alguém inferior?
Passaram os primeiros semestres. Começaram os estágios. Não sei por que tem que estagiar em hospital público também... era mais fácil eu ficar no hospital da minha família, é lá que eu vou trabalhar! E a especialidade? Está chegando o final do curso. Nicole não quer cuidar de criança, detesta crianças. Desta velho também, Deus a livre de ser geriatra. Com cardiologia também não queria mexer, só iria cuidar de velho, gordo e velho gordo. Não era muito chegada a sangue... não queria fazer cirurgia. De problemas de pele, ela também se esquivava... tem cada gente perebenta, não!  Anestesiologia parecia ser uma área legal. Ninguém era anestesista na família. Dava grana e, em tese, era só dar injeção.
Assim que formada, se tornaria a anestesista chefe do hospital. O anestesista que ocupava este posto foi convidado a cuidar dos residentes. Só faria supervisão e, de quanto em vez, iria para a sala de cirurgia. A nova médica da família agora tinha um jaleco de médico. Tinha uma sala de médico. Trabalhava no ramo médico de sua família. E continuava sem enxergar o faxineiro, nem dar bom dia ao porteiro e desconfiando sempre de alguém que fala diferente daquilo que os seus familiares e amigos médicos falam. Médico sabe mais que todo mundo, menos se o médico tiver entrado pela cota.


sábado, 20 de junho de 2015

O demônio do canavial




Oito anos, uma faca e uma vontade de chupar cana. Sem permissão, invadi o quintal do vizinho para roubar um pouco do bambu doce que seria a sobremesa de uma janta que não tão agradável. Naquele escuro terreno do interior paulista, segurei meu medo e deixei a vontade de consumir algo engordativo tomar conta dos seus instintos. Sentia um pouco de medo, mas a vontade de me lambuzar de cana era maior... Nenhum mal poderia acontecer, certo? Ledo engano.  
Uma criatura demoniosa sai apavorante da terra quando eu estava levantando a faca favorita da minha mãe para desferir o primeiro golpe na minha sobremesa. Quando vi aquele ser das trevas, fiquei sem ter como gritar, sem quase respirar... Pavor, muito pavor. Aquele bicho parecia um bode com rabo de cobra, chifres pontudos e uma aura maligna que me fez esquecer de mim mesmo. Estava convencido de que não iria dormir na minha cama, mas numa cama de pregos em cima de um braseiro no inferno.
As chamas do inferno iriam consumir a minha carne magra, os meus olhos seriam arrancados pelas unhas cheias de bactérias demoníacas que me presenteariam com uma infecção terrível que tiraria toda a pele do corpo e comeria o tutano dos meus ossos sem deixar nenhum vestígio de humanidade em meu corpo, que só teria um coração para que eu pudesse lembrar de que não poderia invadir o terreno alheio para roubar cana-de-açúcar.
Sorte que minhas pernas não entenderam o perigo e correram, correram como nunca correram e nunca correriam novamente. Naquele momento, a minha preocupação se dividia entre as pernas, o demônio do canavial e os pulmões que começavam a falhar. Eu não conseguia respirar, e ainda faltava um bom pedaço de chão para percorrer... Cheguei, enfim, em casa com os olhos mais esbugalhados do que um japonês telescópio, agradeci a Deus em pensamento por encontrar a minha mãe lavando a louça do jantar. Lhe contei o que tinha acontecido, que vi um demônio que me levaria para morar no inferno. Apavorado, ouvi da minha mãe: – Cadê a faca? Vá já buscar, Silvo Luís!

segunda-feira, 15 de junho de 2015

O demônio do Beco da Luz




O Beco da Luz era um atalho no centro da cidade. Entretanto, ao contrário do que o nome sugere, é escuro durante todo o dia. Isso porque as lâmpadas eram constantemente quebradas e as construções em volta, os prédios muito colados, impediam que a luz penetrasse naqueles 170 metros de umidade, sujeira e depressão.
Mas eu não tinha saída. Nunca andava pelo Beco da Luz. A aula tinha acabado tarde, eu não poderia me dar ao luxo de percorrer cinco quarteirões para pegar o último ônibus. Sei que não é bom alguém andar sozinho num lugar ermo, como aquele – eu pedia muito a Deus que estivesse ermo – ainda mais sendo mulher. Eu não tinha saída. Tinha que passar pelo Beco da Luz.
Peguei o meu terço na bolsa. Andava o mais rápido possível para não correr. Eu já tinha passado por lá antes, mas durante o dia e acompanhada por alguns colegas da faculdade. Sabia que não seria uma experiência agradável, muito menos passaria rápido como da vez que estava acompanhada... mas seria rápido no relógio, isso que importava naquele momento.
Eu andava rápido e rezava tão depressa quanto as batidas do meu coração permitiam. Quase no meio, me aparece, repentinamente, um ser esguio, estranho, quase da minha altura com o rosto encoberto pelas sombras. Gelei. Não sabia o que fazer... não podia ser deste mundo, era uma criatura que parecia uma criança nua, sem sexo, com unhas enormes, com pés assustadoramente estranhos e uma aura que quase me fez arrancar as contas do terço com os calafrios.
Não consegui gritar e nem sabia se um grito me colocaria em maior apuro. Ela arrodeou o meu corpo e, com a pouca luz que por ali se perdia, consegui ver que não tinha rosto, não tinha a pele do rosto, mas uma face mutilada, cadavérica, digna de uma criatura que tinha acabado de fugir do inferno. Era isso, só poderia ser isso... era um demônio, um enviado de Satanás para me atormentar, para me levar para o inferno.
A criatura ficou me encarando, tentou ficar ereta em minha frente. Eu já me esquecia do terço, eu já me esquecia de Deus, eu já esquecia de mim mesma... só me concentrava naquele olhar sem olhos, naquela rosto sem face, naqueles pés demoníacos, naquelas mãos com garras prontas a me agarrar e naquela mandíbula cheia de dentes para arrancar toda a minha carne magra de meus ossos que tremiam geladamente.
Não me agarrou, não me devorou... só me encarou. Corri.

sábado, 13 de junho de 2015

Pastor

– Pastor.
– Sim, meu filho.
– Eu estou com uma dúvida.
– Diga qual a sua inquietude. Deus me deu o dom da palavra e da revelação. Se for da Sua vontade, as suas dúvidas serão sanadas, Amém?
– Amém. – Pastor, eu não estou entendendo algumas coisas que estão na Bíblia... que estão ou não estão.
– Como assim, irmão?
– Os dinossauros, por exemplo. Não estão na Bíblia.
– Eles não existiram.
– Não?
– Não. Se não estão na Bíblia, não existiram.  
– Mas e os fósseis?
– Tudo obra do inimigo para tirar o seu foco em Jesus, Amém?
– Amém. – Mas e toda teoria evolucionista. Os cientistas discordam que o homem veio do barro.
– Também é mentira. Artimanhas do inimigo. Olha, irmão, você já viu macaco virar gente?
– Não, pastor.
– Então. Se macaco virasse gente, não teria mais macacos no mundo, Amém?
– Amém. – Mas, pastor, se Deus fez apenas Adão e Eva, e se todos os seres humanos são seus filhos, por que somos tão diferentes. Asiáticos são de um jeito, africanos de outro, europeus mais ainda... deveríamos ser mais iguais, não?
– Olha, irmão, o inimigo está te fazendo questionar a obra de Deus. Apesar de sua incredulidade, eu te respondo. Você tem filhos?
– Tenho.
– Eles são iguais?
– Não, mas são bem parecidos.
– Se você largar um de seus filhos num deserto africano e outro no inverno russo, eles ficarão parecidos depois de alguns anos?
– Não, pastor. Mas você acha que o que vai viver na África e, consequentemente, ter a pele queimada vai fazer netos mais morenos que o outro que ficou na Rússia?
– Mas é claro, irmão. Por que não fariam?
– Porque...
– Olha – o pastor interrompeu de súbito. – Você não dá o dízimo há dois meses, não é verdade? Por quê?
– Porque eu estou com algumas dúvidas sobre a minha fé, pastor.
– Como você quer que Deus te proteja do Diabo se você não é fiel no dízimo, irmão? Faça um propósito com Deus. Dê seu dízimo em dia... pode parcelar os atrasados no cartão... e faça uma oferta do tamanho que você deseja a sua fé. Te garanto, em o nome de Jesus, que você não vai mais ser atormentado pelo inimigo, Amém?
– Amém.


sexta-feira, 5 de junho de 2015

O palhaço assassino da Rua 417


Ilustração André Silva
           Morava na Rua 417 um palhaço muito engraçado que costumava fazer apresentações na porta de sua casa quando não estava em algum circo ou fazendo campanha para um supermercado ou loja de brinquedos chineses. Ele era muito querido por todos... uma das figuras mais cativantes e amistosas do bairro.
            Meninos e meninas sempre saíam da escolinha e passavam direto na Rua 417 para apertar a mão de Palhaço e assistir aos seus números de mágica e toda a sua palhaçada. Era sempre uma festa. Ninguém sabia quem ficava mais feliz com as visitas das crianças, que foram crescendo e, aos poucos, se esquecendo do palhaço que, já sem circo e sem muito ter onde se apresentar, ficava cada vez mais solitário.
            O que antes era alegria, motivo de acordar sorrindo e pensando num novo truque, numa nova piada, agora era motivador de raiva. Não podia mais ver uma criança, não podia mais ver alguém se divertindo que lhe batia uma ira incontrolável, mas ele não era um mal sujeito, ele queria trazer a verdadeira alegria àquele bairro novamente.
            – As pessoas hoje andam muito felizes... Antigamente, quando a situação financeira era pior, todos precisavam de mim... agora, qualquer criança pobre tem celulares modernos, videogames de última geração... Eles não são felizes de verdade...
            Palhaço começou a matutar um plano para acabar com a alegria das pessoas. Mas de que adiantaria extinguir com a felicidade alheia se ele continuaria amargurado, triste, solitário? Não era justo acabar com a felicidade alheia se isso não lhe daria nada em troca – Já sei! Preciso de piadas novas, de truques novos, de bordões modernos!
            O morador da casa mais colorida da Rua 417 começou a se atualizar... passou semanas lendo, assistindo aos vídeos de humor da moda, treinando novos truques de mágica. Ele sentia que estava pronto para voltar à ativa – mesmo que nunca tivesse saído. Estava pronto para fazer as pessoas rirem dele novamente... E ser o motivo da alegria dos outros era o que lhe proporcionava a felicidade.  
            Tudo pronto, vizinhos convidados, balas, doces, pirulitos coloridos. Naquele fim de tarde de sábado, Palhaço iria voltar com novidades e alegrar todo mundo novamente. Um carro de som passou pela manhã, mas, apesar disso, ninguém apareceu. Ninguém parecia precisar de um pouco de alegria. As crianças não se interessaram, os pais tinham equipamentos eletrônicos de ponta e uma assinatura de TV riquíssima. Por que iriam para um showzinho de Palhaço, o palhaço do fundo de quintal?
            Palhaço montou um plano. Ele mataria alguém do bairro. Dona Edilene era a mulher mais velha da vizinhança. Uma verdadeira matriarca que gerou muitos dos que fundaram a escola, a igreja e o posto de saúde. À noite, na calada, ele foi até a sua casa. A matou com um martelo colorido. Ela nem pode reagir no auge dos seus 99 anos. Tudo já estava programado para a festa do seu centésimo aniversário no mês seguinte. No entanto, a tristeza que tomou conta de todos foi muito passageira. Ninguém procuraria os serviços do palhaço do bairro por conta da morte de uma velha que já tinha passado da hora.
            Desta vez, ele faria o que achava mais certo. Matar uma velha já a beira da morte não tinha sido um bom plano. É certo que todos da região a amavam, mas daí a perder a capacidade de se alegrar por conta de uma senhora de quase cem anos é querer um pouco demais... se fossem crianças, se fosse uma tragédia... se fosse algo que acontecesse na igreja, no catecismo. Sim... agora, Palhaço tinha um plano.
            Foi, de fato, uma tragédia. Três crianças na primeira infância foram encontradas vítimas de morte violenta na creche do bairro. Saiu no RN TV, saiu no Jornal Nacional, saiu no Fantástico como nota. Comoção geral dos moradores do bairro em que ficava a Rua 417. Um conforto: Palhaço, o palhaço tinha anunciado há poucos dias um novo show com novas piadas, novos truques e bordões modernos. Passado o luto inicial, o mais dolorido, todos foram à Rua 417 comer balas, picolés e pirulitos que deixavam a língua azul. Toda vez que algo macabro acontecia, Palhaço tinha seus momentos de felicidade. Ele alegrava um pouco a vida de quem tivera sido marcado por alguma tragédia. 

sexta-feira, 29 de maio de 2015

O cheque em branco

Eu estava na fila do banco. Faltavam algumas pessoas para ser atendidas. Eu tremia. Estava com um cheque em branco do meu pai. Eu tremia. Aquilo era, de certa forma, errado, mas eu precisava pegar todo o dinheiro da conta corrente... raspar o tacho. Iria preencher ali na hora o valor todo. Eu tremia, temia, mas me continha... não iria deixar um centavo no banco.
Tinha 16 anos. Morava numa cidade pequena do interior de São Paulo. Todos me conheciam, sabiam que eu era responsável. Desde que meu pai tinha ficado doente, eu quem fazia todo serviço burocrático da casa. Ia no banco trocar os cheques, fazia as contas do mês, calculava o quanto tinha na dispensa e o que compensava mais comprar para a feira.
Meu pai já estava muito doente, e eu aprendi a falsificar sua assinatura. Ninguém percebeu. Eu ia ao banco todo mês pegar o dinheiro necessário para pagar as contas de casa. Mas naquele dia era diferente... eu iria pegar todo dinheiro da conta corrente, não iria deixar um centavo furado para contar história. Eu já estava cansado daquilo tudo!
A minha vez já estava chegando. Tinha umas três pessoas na milha frente na fila. Eu suava. Já sabia exatamente o que iria fazer com o dinheiro, já estava tudo planejado. Entreguei o cheque um pouco nervoso, mas contido. No caixa, a atendente me dava alguns cruzados novos; parado no semáforo em frente ao banco, o carro da funerária convidava os moradores da cidade para o enterro do meu pai ao som de Ave Maria Gounod.

terça-feira, 19 de maio de 2015

Tia Alcinéia


Tia Alcinéia foi a minha professora da alfabetização. Terminei o mestrado há pouco tempo e confesso que não me lembro de alguns professores. Mas de Tia Alcinéia, que me ensinou a codificar e decodificar o português há vinte anos, eu me lembro. Lembro muito bem, infelizmente.
Tia Alcinéia era baixinha, gorda, calva, com alguns dentes faltando e com os que sobravam meio podres. Ela era, como deveria ser toda alfabetizadora da época, extremamente tradicional. Tão tradicional que hoje eu conto os castigos que ela me passava aos meus alunos e eles não acreditam, acham que é coisa de desenho da Fox. Eu repetia, sempre que fazia algo errado, duzentas vezes na folha de ofício “Não devo fazer x coisa”. Não me lembro o que aprontava, não me lembro o que escrevia, mas lembro das lágrimas molhando o papel branco que o lápis fatalmente furava e eu tinha que passar tudo a limpo.
Tia Alcinéia me marcou... Certa vez, vendo tevê com minha mãe, apareceu uma mulher com este nome. Eu gelei. Já adulto. Gelei. – Lembra de Tia Alcinéia, Rodrigo? Que tomava seu refrigerante? – disse minha mãe. Não só me lembro como até hoje eu agradeço a quem seja lá que foi que me ensinou a abrir uma lata.
Tia Alcinéia era quem abria meu refrigerante. Os meus dedos, tadinhos, eram pequenos, eu não conseguia abrir a latinha. Tinha que pedir para a única pessoa com dedos fortes da turma: a professora. O problema é que, além de dedos fortes, ela tinha dentes podres e faltando, e ainda tinha um péssimo hábito: o de dar o primeiro gole.
– Tia Alcinéia está tomando meu refrigerante! – contei pra minha mãe. Ela foi lá, claro, reclamar... aprendi a reclamar com a minha mãe. Não sei se Tia Alcinéia ouviu o pedido ou simplesmente pararam de me mandar latas de refrigerante, mas de uma coisa eu sei e não esqueço. Este nome e uma saudade: Tia Alcinéia. 

domingo, 17 de maio de 2015

Fala papai!

– Neném, fala papai!
– ...
– Fala mamãe!
– Mamãe.
– Fala vovó!
– Vovó.
– Fala titia!
– Titia.
– Fala vovô!
– Vovô.
– Fala papai!
– Mamãe.

sábado, 14 de fevereiro de 2015

Com a luneta 001

Eu tava no muro tentando olhar para a vizinha da frente, mas não vi. Via a mãe dela, uma mulher chata que inveja a vida das pessoas, que chifra o marido com um dos amigos do bêbado que ele se tornou por conta da traição. A mãe dela se transformou num bode, num bode voador... parecia a aquele cachorro da história sem fim, mas ele era bem menor, e tinha chifres, e carregava uma bolsa rosa. O bode tentava impedir que uma pomba levasse seus temperos mágicos que seriam colocados na merenda barata e superfaturada da escola pública do bairro distante. Um bairro conhecido pelas suas altas taxas de criminalidade, um bairro pra onde iriam adolescentes de classe mérdia comprar talco de narina de senador e desencaminhar mocinhas quase inocentes. Vi tudo isso com a minha luneta. 

sábado, 15 de novembro de 2014

Meninos do sinal


No sinal, meninos tentam
Com rodos nas mãos
Ou bolas de malabares
Eles pedem mais do que dinheiro
Atenção
A culpa é de quem
Por estarem assim?

Se querem pão ou crack
É quase difícil saber
Mas estes meninos
Com cicatrizes nas testas
E calos nas mãos
Tentam
E quase nunca conseguem
Fumar ou comer.



sexta-feira, 3 de outubro de 2014

O cego na praça



Era um cego na praça. Ele vendia quadros lindos pintados a óleo. Quadros que retratavam paisagens magníficas, cenas de família. Um cachorro que se parecia muito com o animal que deitava ao seu lado, um cão velho, sujo e com uma ferida na orelha com muitos bichos.
– Quanto estão os quadros? – perguntei.
– Depende, meu filho. O quadro do cachorro sob a sombra da tarde está cinquenta reais. O quadro do senhor sorridente abraçando o seu filho que chora pela perda do dente custa setenta reais. Os preços variam. Você se interessou por algum?
– Sim – fiquei curioso pra saber como ele sentia ao descrever uma cena que nunca viu. – Gostei do quadro da senhora lendo.
– Foi? O que te chamou a atenção neste quadro?
– Não sei... achei a senhora simpática. Não entendo muito de pintura – disse.
– Olhe bem para o seu sorriso. É um sorriso simétrico, dificilmente alguém sorri assim. Cada lado de um ser humano é diferente do outro... você tem uma orelha maior que a outra, um olho mais caído que o outro, pode ter milímetros  a mais numa perna ou braço – o cego disse virado para o nada. E continuou: – O livro que ela segura não é qualquer livro, é um livro de histórias infantis. Perceba como as extremidades do livro estão gastas, como se ele fosse lido inúmeras vezes durante a sua vida. A cadeira de balanço a qual a senhora está sentada também não é uma cadeira comum... é uma cadeira de amamentação. Todos pensam que são iguais, mas as linhas de uma cadeira de amamentação e uma cadeira de balanço são diferentes. A cadeira de amamentação é um pouco mais leve de se olhar.
            Fiquei espantado com os detalhes da descrição. Não contive a curiosidade e perguntei:
            – Como o senhor, sendo cego, sabe tão bem sobre os quadros que está vendendo? O senhor é cego mesmo.
            – Gostaria muito de ser um charlatão, mas, infelizmente, sou cego. Sei sobre os quadros porque fui eu mesmo que pintei.
            Fiquei sem reação. Perguntei o preço do quadro da senhora. Ele disse que custava oitenta reais. Eu não tinha esse dinheiro. Fui embora.