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sábado, 5 de dezembro de 2009

Pitombo e a mediunidade

Pitombo, que tinha esse apelido por ser loucamente apaixonado por pitomba e esperava o ano inteiro pra saborear a fruta que amava, sofria com ataques de loucura, como dizia a família, inclusive a mãe, e a vizinhança, que sabia mais da vida de Pitombo do que ele próprio... Aliás, vizinhos têm esse dom, o dom de saber mais dos atos, do coração e da cabeça dos outros, mais mesmo do que qualquer confessor, melhor do que qualquer melhor amigo.
Pitombo ouvia vozes, ou pelo menos era isso o que ele dizia. Quando não aguentava mais, o coitado se debatia no chão, gritava, esperneava segurando a cabeça com força com as duas mãos empurrando na altura dos ouvidos, como se isso impedisse que as vozes de sua loucura gritando desejos impraticáveis ressoassem como sinos de bronze.
Certo dia, um pastor passava pela porta e ouviu os gritos de Pitombo. Ele pediu pra entrar e fazer uma oração, disse que seu deus poderia ajudar aquela alma, que aquilo não era loucura, eram espíritos, ou melhor, obras de um encosto que precisaria ser expulso daquele corpo, para que o seu coração, então, virasse morada do tal deus. Como não tinha nada a perder, a mãe de Pitombo permitiu que o pastor fizesse uma oração. Ele a fez. Porém, como se fosse mentira, Pitombo levantou do chão e agarrou a gravata do pequeno pastor o levando ao enforcamento... A sua sorte foi que os irmãos do endemoninhado chegavam da pesca naquela hora e puderam socorrê-lo.
Com isso, felizmente ou não, descobriram que realmente o problema de Pitombo era de fato espíritos (quem lê até pensa que ele já tinha ido a dezenas de psiquiatras e tudo mais, mas não)... E decidiram levá-lo não só à igreja do pastor visitante, mas também a centros espíritas, a um padre exorcista, e até a uma loja maçônica que não se deu nem ao trabalho de abrir as portas.
Resumindo, já que não posso ou quero me alongar, Pitombo passou a frequentar a igreja do pastor visitante nas sextas, com intuito de descarregar os demônios de suas costas; no sábado, ele ia pro centro participar de uma mesa branca que prometia cuidar dos espíritos de luz que necessitavam de um médium, enquanto que aos domingos ele participaria da primeira missa do dia para que Nossa Senhora o ajudasse.
Com três meses, ele já apresentava melhoras. Não me pergunte por quê. Não se sabe em quais dos templos ele foi realmente ajudado. Os mais leigos dizem que foi Deus, Nossa Senhora ou uma guia espiritual que ajudou Pitombo a se livrar dos males. Eu, que sou apenas o contador dessa história e mais leigo que os leigos que comentam esse caso, digo que foi a fé, mas fé em que eu não sei.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Pelas ruas que passo




Será que cada pessoa que vemos na rua pensa sobre nós o mesmo que pensamos sobre ela? Será que você pensa o mesmo que eu?
Sim, porque eu caminho na rua me perguntando se todos têm um sonho, se todos estão só de passagem. Aquela senhora que quase esbarrou em mim dentro do shopping estava mesmo apressada ou fez aquilo só pra me atormentar? Será que ela sabe quem eu sou, quem quero ser, o que escrevo, que eu escrevo? E ela? Será que ela também alimenta, mal alimentado, um blog não visitado por mais de três ou quatro pessoas como eu?
Eu ando pela pelas ruas, pelas calçadas quando elas existem, tentando entender a mim mesmo quem sabe observando como os outros agem, como os outros me veem. Talvez ninguém seja tão cruel e mesquinho quanto parece, talvez aquela menina que me olhou com cara de vômito não saiba que eu não queria nada com ela, mesmo que eu fosse solteiro, mesmo que ela fosse atraente.
E o senhor, possível ex-atleta ou dono de academia, será que sabe que eu só estava comendo aquele pacote de biscoito recheado barato porque tive que comer miojo antes de sair de casa porque esquecemos de comprar arroz? Talvez ele pense: – “olhe só, mais um gordo no mundo que não se cuida, que não tem amor à vida, que esporte é vida que não engorda, mas faz crescer!” Será que ele sabe que tenho que almoçar às dez da manhã pra não gastar com quentinha e que só torno a comer às onze e meia da noite pelo mesmo motivo, e por isso durma com a barriga cheia de carboidratos?
Não que a rua seja um lugar de pura hipocrisia, mas eu sei que não ando, eu passo. Passo, passo a passo, em passos lentos. Não tenho pressa, precisaria ter? Preciso acordar todos os dias às seis pra correr por uma hora, mesmo dormindo duas horas e meia depois do jantar? Se eu quisesse continuar a andar pelas ruas cheia de gente e vazia de pessoas talvez não teria que estudar tanto, que acordar mais cedo do que precisaria não pra correr, mas pra fortalecer, mesmo que não tenha visto resultados ainda, o pouco inglês que tenho?
O mundo é assim, as ruas são assim: todo mundo passando, indo e vindo, esbarrando nos outros, te olhando com olhar de nojo por você usar os cabelos e a barba grandes como o homem na foto sob o terço da camisa das pessoas.


sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Pedrinho e a amiga Felina

As cortinas que tapavam as janelas cobriam a luz do sol impedindo-a de entrar no meu úmido quarto. Eu morava na casa da minha avó, morava não... sei lá? Eu passava as férias na casa da minha avó, que tinha ficado viúva há três meses apenas. Minha mãe disse pra eu fazer companhia a ela, pois vovó se sentia muito sozinha.
Todo os dias, eu tinha que acordar às seis e meia, era muito difícil, pois além de eu não estar acostumado, as cortinas que tapavam as janelas cobriam a luz do sol. Parece tolice, você está se perguntando: – “por que esse moleque narrador não abria a cortinha que tapava a janela que cobria a luz do sol?” É muito simples. EU NÃO DORMIA SOZINHO! Eu tinha que dividir o quarto, e, por pouco, a cama, com minha avó. Não teria problema já que avó é nossa segunda mãe, mas a minha tinha problemas com gases... É... ela peidava muito a noite toda. Tadinha da véia!
Era até legal ficar na fazenda de vovó, fazenda não, tô sendo muito generoso, sítio... chácara... É alguma coisa entre sítio e chácara, ou chácara e sítio... entende? Eu brincava com as galinhas, marrecos... eu só não gostava muito de brincar com os gansos, eles eram bem agressivos, mais brabos que os cachorrões que minha avó criava dizendo ser pra proteger seus outros animais do chupa-cabras. Eu nem sabia o era chupa-cabras, não era do meu tempo, só depois procurei na internet, achei tolice da minha avó... onde já se viu? A véia com medo de chupa-cabras!?
Lembro que brincava sozinho, não tinha ninguém lá da minha idade, a ao ser por Felina, a filha do caseiro que era paraplégica. Ela vivia na cadeira de rodas, não dava pra passear pela grama, pois o veículo engasgava sempre numas poças. Na verdade, eu só fui saber da existência de Felina pouco menos de uma semana pras minhas férias acabarem. O pouco que conversei com Felina me fez crescer de alguma maneira. Poxa! Eu fiquei um mês quase inteiro na casa de vovó e não brinquei com Felina, mas não foi minha escolha, não foi. Só a descobri cerca de três dias antes de eu ir embora. Mas, no pouco que conversamos, nos tornamos amigos.
Minha avó mandou o computador pra casa do caseiro, ela não sabia mesmo mexer “na invenção dos homens loucos que não tinham mais o que inventar”. Felina e eu conversávamos a tarde quase que inteira, mas não era muito papo como parece. Ela não estava acostumada a digitar, mas eu tinha paciência.
Começava a estudar cidadania na escola, a professora Aline disse pra gente fazer a caridade de conversar com um aleijado às vezes, eles não eram pessoas normais, por isso a gente tinha o dever de agradá-los, assim, quem sabe, Deus também se agradaria de nós. Eu não gostava da aula de cidadania, a professora fazia os deficientes físicos parecerem gente de outro mundo, talvez do mesmo lugar de onde vem chupa-cabras.
Eu não tinha intenção de agradar nenhum deus quando falava com Felina, apenas de me agradar... se eu não me sentisse bem nas nossas conversas, eu jamais conversaria com ela. Ah! Eu não teria pena de dizer que ela é sem assunto só porque não pode andar...

Anos depois


Felina completava dezessete anos de idade, eu já tinha feito quinze no mês anterior. Comprei um novo computador para Felina, sua família não tinha condições, o computador que minha avó tinha dado a minha amiga ainda era com o Windows 98. Comprei um notebook pra Felina, ela adorou, começou a chorar me deixando também emocionado e constrangido.
Eu não via muito Felina pessoalmente, a gente só se falava pelo computador, agora, como o novo notebook que dei pra ela – novinho em folha, comprei com meu próprio dinheiro, era superior ao meu, minha mãe inclusive mandou eu dar o meu “velho” e ficar com o novo, mas ao olhar minha cara de carranca ela logo desistiu da idéia, onde já se viu – a gente poderia então se ver pela webcam.
O engraçado foi Paola, minha namorada, ao entrar em meu quarto de mansinho me viu conversando com Felina, deu o maior piti, começou a querer saber quem era a menina que eu conversava e coisa e tal... expliquei que ela era só uma amiga, não disse que ela era paraplégica, não tinha pra quê. O resultado foi que Paola, ainda semi-nua, me pediu para escolher entre continuar a namorar com ela ou manter conversinhas com amiguinhas estranhas no computador. É claro que escolhi Felina. Paola focou irada, pense numa menina puta da vida!

A Menina Que Gostava de Futebol

Era década de 1960, não ficava bem para uma menina brincar de bola, mas Cláudia gostava de futebol, e muito.
Cláudia, que tinha cinco anos na época destes acontecimentos, usava um corte de cabelo curto, estilo Joãozinho, pois sua mãe, além de não ter condições de tratar dos seus cabelos, achava que ter os cabelos curtos ajudava a espantar o calor. Aproveitando-se da situação em que se encontravam os seus cabelos, Cláudia dizia aos meninos da Rua de Trás que seu nome era Cláudio, assim ninguém implicaria com o fato dela ser menina, e a deixaria entrar no time sem problemas.
Cláudia, ou melhor, Cláudio jogava muito bem, inclusive melhor do que Caetano, que até então era considerado o maior jogador de futebol do bairro. Cláudia não tinha medo de bolada, carrinho ou esbarrão, ela jogava feito um menino, era astuta, habilidosa e marrenta, quando necessário. Além de futebol, Cláudia gostava de bola-de-gude, carrinho de rolimã... Seus irmãos a chamavam de Moleque Macho, o que fazia com que ela se enfurecesse e partisse pra cima deles pra agredi-los a socos e pontas-pé.
Cláudia era uma boa menina, mesmo sem muitas vezes ter ao menos um punhado de pão na barriga, ela se esforçava para estudar na maioria das vezes com fome. Certo dia ela sentiu fortes dores no estômago em plena aula de matemática, sua professora, que mesmo parecendo desumana tinha sentimentos, e ao perceber seu rosto pálido e com aparência sofrida, como a de alguém que deixa o cachorro escapar em dias de grande movimento de veículos na rua, decidiu levá-la à diretoria. Chegando à sala da diretora foi constatado que o que ela sentia era fome, pois não comera nada antes de sair de casa. Era normal Cláudia sair sem tomar café da manhã, porém na noite anterior a menina não tinha jantado. A diretora mandou que comprassem um pacote de biscoitos para a pobre menina pobre, o que a deixou inexplicavelmente feliz, porém Cláudia não comeu nem metade do pacote, ela sabia que seus irmão pequenos também estavam sentindo fome em casa, e decidiu levar o que sobrara para os que hoje quase a humilham.
Mas voltando a parte do futebol... Certo dia, os meninos foram procurar por Cláudio em sua casa, ao chamar pelo craque do time, uma de suas irmãs mais velhas disse que lá não morava nenhum Cláudio. Nisso... aparece Cláudia, logo quando ela tinha acabado de pôr o vestido que sua avó, Judite, trouxera. Era um vestidinho florido amarelo que pertencia a uma vizinha sua, que cresceu fazendo com que o vestido encolhesse. O vestido usado, mas conservado, fazia com que Cláudia ficasse tão bonitinha, tão cara de domingo. Os meninos do futebol não acreditaram... como uma garota havia os enganado tanto e, pior, como uma menina jogava tão bem um esporte tão masculino? Eles se decepcionaram consigo mesmos além de se surpreender.
É claro que depois de três ou quatro dias os meninos da Rua de Trás foram chamar Cláudia para jogar bola, no fundo superficial de seus jovens corações conscientes eles perceberam que sem o craque do time, Cláudio, ou melhor, Cláudia, sempre perderiam para o time da Rua Sul, que na verdade ficava três quarteirões ao norte.
Muitos diziam que Cláudia iria virar sapatão, que ela nunca se casaria... só porque ela gostava de brincar as mesmas brincadeiras dos meninos. Anos depois, ela se casou e teve três filhos. Nunca quis saber de mulher.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

O Criador de Bicho-de-pé



Sérgio, desde pequeno, gostava de percorrer o mato à procura de caju, manga, umbu-cajá, cajá-manga... mas ele sempre sofria com bicho-de-pé.
Sua mãe dizia a todo o momento para ele calçar um sapato ou um tênis, e ele nunca ouvia o que sua doce mãe dizia.
Toda noite, quando Sérgio voltava dos matos, Dona Abigail cutucava os seus pés para tirar os incômodos bichos, mas, conforme Sérgio crescia, Dona Abigail foi deixando que ele se cuidasse sozinho, tinha outras obrigações mais importantes do que tirar bicho-de-pé de um pré-adolescente.
Aos treze anos de idade, Sérgio não mais estudava, não ia mais à escola; ele se mantinha, ou melhor, comprava suas baganas com os trocados que ganhava vendendo as frutas que apanhava nos matos.
Certo dia, um senhor chamado Joaquim lhe pediu que tirasse um bichinho do seu pé e pusesse no dele – o ancião dizia gostar da coceirinha que o bicho-de-pé causa – o menino Sérgio, muito esperto e matreiro, disse que vendia por cinqüenta centavos e o velho sorridente aceitou o preço e pediu ao menino que toda semana viesse deixar um bichinho pra ele. E assim foi.
O velhinho contou a boa nova a todos os seus amigos, familiares e conhecidos; seu Joaquim era muito conhecido na comunidade. Quando Sérgio, após uma ou duas semanas, foi levar mais um bichinho, se surpreendeu com tamanha fila que se formara na frente da casa do ancião, mais surpreso ainda ficou quando descobriu que todos ali queriam bicho-de-pé.
Sérgio entregou o primeiro a seu Joaquim e contou quantos mais ele tinha, e, ao ver que tinha pouco para tanta gente, o jovem rapaz decidiu fazer uma espécie de leilão com lance inicial de um real.
O menino naquele dia apurou mais de trinta reais só com meia dúzia de bichinhos, decidiu, então, só trabalhar com isso, e comia ou dava as frutas que ele apanhava de graça no mato. Assim, Sérgio continuou a caminhar querendo cada vez mais bicho-de-pé, tinha fé no seu negócio; chamou os amigos, ofereceu parceria.
O Criador de Bicho-de-pé, como ficou conhecido Sérgio, cresceu e fez fortuna, e sua mãe reconheceu seu peculiar talento. Ele tinha inúmeras fábricas – se é assim que podemos chamar – e foi quem ajudou o Brasil a crescer e se tornar potência mundial. Sérgio pateteou a idéia, o mundo todo comprava bicho nele; dizem que os chineses descobriram, no bicho-de-pé, o ingrediente que faltava na sopa maravilhosa que eles esperaram vidas para preparar e saborear.
O Criador de Bicho-de-pé não mais precisava guardar em seu pé a mercadoria pela qual fez dinheiro, pois, ao contrário da população mundial, Sérgio não gostava de bichos incômodos, ele gostava era das frutas, das mangas, das goiabas, serigüelas...