Pré-campanha. A
pandemia arrefeceu. Parece que a mostarda tinha conseguido salvar a maior parte
dos fiéis do pastor. Um ou outro rebelde tinha saído, mas, agora, a igreja já estava
cheia novamente. Quanto mais a barriga da população esvazia, mais a igreja é
lembrada.
Felizmente para o Pastor, muitos
jovens estavam frequentando o sábado da mocidade. A estratégia de distribuir
vinho ungido (uma parte de suco de uva, uma parte de água de torneira e uma
parte de vinho barato) e deixar os adolescentes livres para utilizarem os
instrumentos musicais parece ter funcionado. Agora, no entanto, a conta precisava
ser paga.
– Gente, o pastor chegou. Muda a música pra um hino!
– Olá, mocidade. A paz, Amém!
– Amém, pastor! – disse a juventude em coro.
Um jovem obreiro, responsável pela da dispensa durante o culto jovem,
foi convencido pelos outros a deixar o vinho ungido mais forte. Ora, se Jesus
abençoou o vinho, por que eles deveriam diluí-lo bastante em água e suco de uva,
certo?
– Irmãos, precisamos ter uma conversa. Eu vim aqui conversar com vocês
sobre as eleições, amém?
– Amém, pastor.
– É o seguinte. Precisamos de todas as forças de Jesus para mantermos
nosso presidente no poder. Os comunistas satanistas estão voltando. Lula, o
anticristo, já está afrente do Capitão de Cristo. Mas eu tenho certeza em
Cristo que todas essas pesquisas são compradas... Aqui no estado a sapatona
também está na frente pro governo. Mentira também, mas precisamos nos unir para
ocupar os cargos políticos em cristo, Amém.
– Amém, pastor.
– Hoje, mocidade. Eu recebi um chamado de Deus. Em sonho, Cristo me
disse que precisava me usar para que sua obra na Terra fosse protegida e
multiplicada. Jesus me escolheu pra ser Deputado. Amém?
– Amém, pastor. – disse a mocidade meio sem muita expectativa.
– Pastor? – levantou um jovem irmão do fundo da roda... ele tinha um
violão na mão e usava uma camisa preta desbotada.
– Sim, irmãozinho. Qual a sua inquietude? Vejo que você é novo no grupo
de jovens... Não sei se você sabe, mas Deus me deu o dom da palavra! Encontrarei
a palavra certa para lhe consolar, Amém?
– Ah... Amém?! Então, o senhor vai se candidatar a Deputado Federal ou Estadual?
– Deputado Estadual pelo partido do presidente, amém? Vejo que o jovem
irmão já está empolgado com a nossa jornada, certo?
– Não, pastor. Eu só não consigo entender qual a relação entre uma
candidatura a Deputado Estadual e a defesa da obra de Deus na Terra.
– Ah, irmãozinho. Sabe o que mais Cristo me disse no encontro comigo?
Que eu teria muitos percalços pelo caminho, que eu seria muito alvo do inimigo.
Não achei que já ia começar logo cedo. Mas vamos lá, Amém? É o seguinte, o
nosso presidente, presente de Deus, precisa de todo apoio. Houve muita reunião com
os bispos e lideranças evangélicas e chegamos à conclusão que seria bom ocupar
todos os espaços em o nome do senhor Jesus, Amém, mocidade.
– Amém! – a mocidade, já perdendo o brio alcoólico, respondeu num coro desensaiado.
– Mas, pastor. O Estado precisa ser separado da religião. Não acho
certo sacerdotes ocuparem espaços públicos deste jeito.
– Você acha errado um homem de Deus ocupar uma cadeira na Câmara, irmão?
– Seria na Assembleia, pastor. Acho errado sim.
– Assembleia! Tá vendo, irmão. Até você concorda indiretamente que eu
preciso estar lá, amém igreja.
– Amém, pastor! – a gurizada respondeu com um pouco mais de euforia.
– Não é nada disso, pastor. Mas, vamos lá. Quais as suas propostas?
– Já falei. Continuar fazendo a obra de Deus.
– Me desculpe, pastor. Mas isso não é proposta de Deputado.
– Como não? Vem cá, quem é você que eu nunca te vi aqui? Quem te trouxe?
– Fui eu, pastor – disse Mariana. – A gente estuda junto. Chamei ele
pra conhecer a mocidade.
– E você trouxe ele pra cá sabendo que ele é um herege, irmã? – disse
bravamente o pastor constrangendo a menina.
– Não sou herege coisa nenhuma, pastor. Sou nascido e criado do
cristianismo. Por, justamente, conhecer a palavra de Deus eu acho que deve
haver separação entre religião e Estado. As tribos de Israel, por exemplo...
– De que Igreja você é, irmão? Quem é seu pastor?
– Eu congrego com minha família na...
– Não, para. Nem precisa continuar. Estou sentindo o Espírito Santo
aqui. Eu estou vendo, mocidade, a alma do nosso irmão está consumida pelo espírito
maligno. Ele foi plantado aqui pelo pai da mentira para colocar vocês contra
mim!
– Tá repreendido, em nome de Jesus! – bradou o jovem obreiro, já
achando que a culpa de tudo era sua, por adulterar o ponche ungido da galera
com mais vinho do que deveria.
– Por favor, enviado do Satanás, saia da minha igreja em o nome de
Jesus.
O rapaz saiu. Levou uma garrafa de vinho e o violão da igreja. Ninguém
reclamou. Mariana o seguiu. Fazia já um tempo que ela estava achando a igreja
meio esquisita e já vinha cogitando sair apesar dos pais.
– Irmãos da mocidade, futuro da nossa congregação! – dizia o pastor para
a juventude tentando se recompor. – Um filho do inimigo trazido à nossa casa de
Deus por uma ovelha desgarrada quis plantar a semente da discórdia aqui. Mas vocês
sabem que eu sou um enviado de Deus na Terra, Amém?
– Amém, pastor! – os jovens repetiram com mais vontade.
– Ele pode entender de violão e de garotas, mas de Assembleia eu entendo,
Amém? Conto com vocês para me multiplicar os votos em mim assim como Jesus
multiplicou o pão e os peixes, Amém igreja?
– Amém pastor!
– Louvado seja o nome do senhor Jesus! – disse o obreiro.
– Obreiro.
– Sim, pastor.
– Traga vinho ungido pra gente comemorar nossa candidatura com a
mocidade, Amém?
– Pastor...
– Sim, irmão.
– Acabou o vinho.
– Acabou o vinho ungido?
– Acabou.
Rodrigo Slama 26/05/22
* Imagem do Google
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