Estou lá fora, na chuva e na
esperança dela cagar logo pra subir. Um casal de vizinhos vai até a casa do
lixo. A cadela se distrai e desarma a sentadinha do cocô. Eu deixei o lixo
instantes antes. Eu fui até a porta do lixo e joguei o lixo na primeira lixeira
destinada ao lixo não-reciclável. Eles tinham papelão. Mudaram-se recentemente?
Penso nisso agora, apenas. Será que procuravam a tambor dos papéis? Aqui a
gente separa, mas a casa do lixo é uma bagunça. É meio dedutivo a escolha por
onde colocamos os recicláveis que separamos, mas lá... lá na hora é roleta! A
lixeira do papel pode conter vidro. Pode ter vidro no chão. Pode ter lata no
vidro.
Por que demoram tanto neste lixo?
Simpáticos, cumprimentaram ao passar. Boa noite, olá. E a cachorra se distraiu
naquele momento e não cagou. E por que a demora? Eles querem conhecer a
vizinhança pelo lixo como no texto do Veríssimo ou só estão procurando algo
específico, algo que jogaram antes por engano? A cachorra não caga, eles não
acham o que querem nos tambores, eles conversam entre si, a cachorra mongol se
distrai de uma ação fisiológica ao tentar entender por que aqueles dois demoram
tanto no lixo e eu não subo. Estou sob a jambeira tentando fugir da chuva fraca
que me fecham as narinas resfriadas. A cachorra não caga.
Mais cedo uma perdida abriu minha
porta e me pegou de cueca lavando a louça. Ela pediu desculpas, errou o bloco;
fechei a porta sem dizer nada e agora tem três maçanetas digitais no meu
carrinho esperando serem escolhidas. Bom que ninguém fica trancado para fora.
Bora que ninguém perde a chave. E não tem nada em casa mesmo que valha o
trabalho de alguém arrancar os polegares de um punhado de branquelos para
entrar por uma porta facilmente arrombável. Parece vantagem. Vai ver que por
isso que perdi o chaveiro velho do meu pai... para não adiar mais esta
transição fechadural.
As redes citam os jornais que
dizem que cada cigarro, de nicotina, pressuponho, diminui o tempo de vida de um
homem em pouco menos de vinte minutos e, para as mulheres, pouco mais de vinte
minutos. Se a nicotina faz mais mal, dois finos por dia tiram, no máximo,
trinta minutos. No máximo! Ou seja, a cada dia com dois cigarros, perde-se meia
hora de vida. Não sou muito bom de matemática, mas a calculadora diz que isso
dá, ou tira, sete dias e meio do ano. Em cinquenta, perde-se um ano e quinze
dias. Isso tudo para ter quarenta e nove anos mais leves? Quero três, obrigado!
E os neurônios? Poderiam comer
apenas os das memórias ruins, dos medos, dos traumas, das saudades sem jeito.
Que comam os livros e filmes e discos de histórias criadas ou acreditadas!... Enquanto
isso, corro cada vez mais animado para chegar, demodemente, mais longe na vida,
na vinda? Mas agora, que livro começar? Literatura, por favor! E o da cabeça,
novo? Lê junto, como sempre. Mas agora agora, que livro? Literatura, já disse!
Pelo título, autor e primeiro
capítulo já sabe-se que é bom, mas além. E o sofrimento anunciado dialoga com
histórias brasileiras tristes nos conectando pelo menos colonizador, pelos
mesmos problemas e língua. Se o sofrimento é nudez, o represamento disso num
indivíduo que carrega a carga de uma geração de profundas raízes uma hora
rompe. Rompe em tiro, em litros, em livros, em telas. Por isso arte existe, o
trabalho frente a linguagem existe dialogicamente e responsivamente, além do
mais. São nossos personagens, os ecos dos nossos antepassados, textos passados,
medos, traumas. Flui sobre mim, já. Interage.
Em resumo, paz e putaria. Um
breve cansaço, alguma ânsia aguda, tudo normal. Deviam comer os neurônios, as
sinapses certas. Elas deveriam se desesconder. Se não trabalham direito, se não
se dispõem a servir ao organismo, ao coletivo, tchau, querida! Quem sabe no
futuro, num texto futuro, numa cirurgia futura que seja coberta pelos planos e
pelo SUS? Ah, mas isso não resolve a raiz do problema. Mas poda a raiz do
sofrimento de um indivíduo, de uma agonia desnecessária, uma perda de tempo,
uma perda de experiências, uma cadeia invisível e dolorosa!
Tem luta que vamos demorar muito
para ganhar, talvez todo mundo morra antes. A ideia, por ora, é se livrar do
peso, se livrar dos sonhos que custam caro e não vão trazer o que nunca
encontramos perpetuamente na realização dos planos que um dia tivemos e que agora parecem tão pequenos que não vale a pena. Nesta antítese, qualquer
caminho é desconhecido e dá medo.
Rodrigo Slama, 22 de junho de 25
Imagem gerada por IA