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quinta-feira, 26 de junho de 2025

Demora do lixo, me dá um cigarro

 


Estou lá fora, na chuva e na esperança dela cagar logo pra subir. Um casal de vizinhos vai até a casa do lixo. A cadela se distrai e desarma a sentadinha do cocô. Eu deixei o lixo instantes antes. Eu fui até a porta do lixo e joguei o lixo na primeira lixeira destinada ao lixo não-reciclável. Eles tinham papelão. Mudaram-se recentemente? Penso nisso agora, apenas. Será que procuravam a tambor dos papéis? Aqui a gente separa, mas a casa do lixo é uma bagunça. É meio dedutivo a escolha por onde colocamos os recicláveis que separamos, mas lá... lá na hora é roleta! A lixeira do papel pode conter vidro. Pode ter vidro no chão. Pode ter lata no vidro.

Por que demoram tanto neste lixo? Simpáticos, cumprimentaram ao passar. Boa noite, olá. E a cachorra se distraiu naquele momento e não cagou. E por que a demora? Eles querem conhecer a vizinhança pelo lixo como no texto do Veríssimo ou só estão procurando algo específico, algo que jogaram antes por engano? A cachorra não caga, eles não acham o que querem nos tambores, eles conversam entre si, a cachorra mongol se distrai de uma ação fisiológica ao tentar entender por que aqueles dois demoram tanto no lixo e eu não subo. Estou sob a jambeira tentando fugir da chuva fraca que me fecham as narinas resfriadas. A cachorra não caga.

Mais cedo uma perdida abriu minha porta e me pegou de cueca lavando a louça. Ela pediu desculpas, errou o bloco; fechei a porta sem dizer nada e agora tem três maçanetas digitais no meu carrinho esperando serem escolhidas. Bom que ninguém fica trancado para fora. Bora que ninguém perde a chave. E não tem nada em casa mesmo que valha o trabalho de alguém arrancar os polegares de um punhado de branquelos para entrar por uma porta facilmente arrombável. Parece vantagem. Vai ver que por isso que perdi o chaveiro velho do meu pai... para não adiar mais esta transição fechadural.

As redes citam os jornais que dizem que cada cigarro, de nicotina, pressuponho, diminui o tempo de vida de um homem em pouco menos de vinte minutos e, para as mulheres, pouco mais de vinte minutos. Se a nicotina faz mais mal, dois finos por dia tiram, no máximo, trinta minutos. No máximo! Ou seja, a cada dia com dois cigarros, perde-se meia hora de vida. Não sou muito bom de matemática, mas a calculadora diz que isso dá, ou tira, sete dias e meio do ano. Em cinquenta, perde-se um ano e quinze dias. Isso tudo para ter quarenta e nove anos mais leves? Quero três, obrigado!

E os neurônios? Poderiam comer apenas os das memórias ruins, dos medos, dos traumas, das saudades sem jeito. Que comam os livros e filmes e discos de histórias criadas ou acreditadas!... Enquanto isso, corro cada vez mais animado para chegar, demodemente, mais longe na vida, na vinda? Mas agora, que livro começar? Literatura, por favor! E o da cabeça, novo? Lê junto, como sempre. Mas agora agora, que livro? Literatura, já disse!

Pelo título, autor e primeiro capítulo já sabe-se que é bom, mas além. E o sofrimento anunciado dialoga com histórias brasileiras tristes nos conectando pelo menos colonizador, pelos mesmos problemas e língua. Se o sofrimento é nudez, o represamento disso num indivíduo que carrega a carga de uma geração de profundas raízes uma hora rompe. Rompe em tiro, em litros, em livros, em telas. Por isso arte existe, o trabalho frente a linguagem existe dialogicamente e responsivamente, além do mais. São nossos personagens, os ecos dos nossos antepassados, textos passados, medos, traumas. Flui sobre mim, já. Interage.

Em resumo, paz e putaria. Um breve cansaço, alguma ânsia aguda, tudo normal. Deviam comer os neurônios, as sinapses certas. Elas deveriam se desesconder. Se não trabalham direito, se não se dispõem a servir ao organismo, ao coletivo, tchau, querida! Quem sabe no futuro, num texto futuro, numa cirurgia futura que seja coberta pelos planos e pelo SUS? Ah, mas isso não resolve a raiz do problema. Mas poda a raiz do sofrimento de um indivíduo, de uma agonia desnecessária, uma perda de tempo, uma perda de experiências, uma cadeia invisível e dolorosa!

Tem luta que vamos demorar muito para ganhar, talvez todo mundo morra antes. A ideia, por ora, é se livrar do peso, se livrar dos sonhos que custam caro e não vão trazer o que nunca encontramos perpetuamente na realização dos planos que um dia tivemos e que agora parecem tão pequenos que não vale a pena. Nesta antítese, qualquer caminho é desconhecido e dá medo.

 

Rodrigo Slama, 22 de junho de 25  

Imagem gerada por IA

sábado, 21 de junho de 2025

Entre o semáforo aberto

 


 

Há dias adio escrever sobre isso. Quanto tempo uma lamparina cheia de gordura saturada demora para apagar? Apaga? O fato é que nunca acreditei na escrita como terapia ou autoajuda, ou de autoajuda. Mas por que não seria? Por textos atravessados, um eu literário, ou personagens, usamos linguagem, bem ou mal, bela ou imbecil, e todo texto de ficção ou não forma nossos divertidamente, inclusive, filme e título maravilhosos.

A demora em começar um novo parágrafo é metáfora da procrastinação companheira. Seja para cuidar melhor da minha filha, para cuidar mais de mim, para não fazer os projetos esquecidos, quase mortos que teriam alguma chance se vissem a luz que não passa pelo tampo da gaveta... Mas vamos lá. Vou começar pela morte, pela tragédia, por como eu queria não ter empatia e, assim, ser mais leve.

Não me lembro de ter perdido um aluno ou ex-aluno. Esta é a vantagem de ser professor de gente jovem... A gente vê as transformações nos seus estilos, vê sua rebeldia e espirituosidade... vemo-los indo para a universidade e vez em quando aparece uma notícia boa sobre alguém. Fulano foi fazer um intercâmbio, sicrano passou num concurso... As piores notícias que costumam chegar são de gravidez. Uma vida a mais, renovação da espécie... e a gente pensando que isso acaba com a vida de uma jovem promissora.

Minha aluna, ex-aluna... aluna era chata de tão legal, adolescente cheia de vida, apesar de não comer carne. Que estava estudando moda tinha sido a última informação que recebemos. O tempo passa... Fulano foi contratado por uma multinacional, sicrano passou em medicina. E a gente, na verdade, não pensa muito em quem já saiu da escola. Os desafios sempre aumentam... esse pessoal está cada vez mais preguiçoso para estudar, os velhos e os novos problemas nos envolvem, fora a burocracia, a economia, a hipocrisia.

Um dia depois do meu aniversário, quando esperava o bolo ficar pronto para comemorar mais um ano com minha família, várias mensagens pedindo orações para a Letícia apareciam nas redes sociais. Era sábado. Entrei, contra meus princípios, no grupo do trabalho e as notícias não eram boas. As orações, de todas as crenças, seriam necessárias. Não rezei, não rezo. Mas torci muito para que ela conseguisse. – Olha, já vi muita gente bem mal sair viva de um negócio feio – disse minha companheira – ela é nova, tem chance – conformou. Não teve. Seguiu-se o protocolo. No domingo, um dia depois do seu aniversário, foi declarada sua morte cerebral.

A gente não pensa em todos o tempo todo. A gente não acompanha todos. Dezenove anos. Estava indo para a faculdade quando o mototaxista que a levava avançou o sinal em alta velocidade e interrompeu uma vida e afetou tantas outras. Eu tenho uma filha, doze anos. Eu nem imagino de onde eu tiraria forças para querer qualquer coisa com a vida se acontecesse algo assim com ela.

Cinquenta e seis anos. Meu pai morreu jovem. Com vinte anos a mais que eu agora. Demorou um tempão para eu chegar aqui, mas está me parecendo pouco. Olho para frente e me parece pouco. Meu pai teve filho, conheceu neta, foi negligente com sua própria saúde apesar das análises, apesar dos conselhos, apesar até da própria fé. Foi embora cedo. Eu estou com medo de ir embora cedo. Letícia foi embora cedo e isso está pesando mais do que achei que pesaria para mim.

Lá fora, o Irã ataca Israel genocida. Trump não controla nem a California, Haddad sangra sozinho como um mártir sem seguidores. Bananinha fugiu, Zambelli fugiu, Bolsonaro está solto... E a família dela? E a mãe dela? Dezenove anos. Tinha amigos, tinha um projeto de vida, tinha sonhos. Na TV, Virgínia fatura, Direita se cala diante de promessa de indulto aos golpistas, Fux cão bem adestrado. E eu fui de triste a ansioso e irritado a semana inteira. Duas semanas de agonia por motivos diferentes que me compõem.

Por que uma bailarina gorda foi colocada para reger uma orquestra? Por quê? Por que o mecânico inveja o piloto e por que o piloto inveja o artista ou o agricultor? Não tenho feito as coisas direito, não tenho pensado direito. Às vezes passa o tom, a canção perde harmonia; o pianista solista não olha para o espelho, envergonhado perde o bonde e precisa correr mais um pedação. Dobra outra esquina, não está quase chegando. Um pouco mais de brasa, era além.

Caso, infelizmente, comum de trânsito do séc XXI. Poderia ser sua minha filha, com meu pai, nossa aluna, alguma conhecida do dia a dia. Poderia ter sido eu. Talvez por isso a castração, talvez por isso a frustração. Banho de água fria na madrugada. Quando do segundo gol, gritei palavrão e não podia. Talvez um troco modesto. Pedágio, multa. Tic-tac, tic-tac, tic-tac. Segue feliz pelo túnel. Não foi em vão. Sem direito e mais vontade de podar capítulos, envelheço felizmente.


R Slama, 20/06/25


*Imagem do Google

sábado, 14 de junho de 2025

R'Orfanato

 


Os Poodles foram ignorados... depois os Golden, os gatos pelados. Calopsita já era, mas ainda tem quem goste. Já passaram o Kichute, os lenços de pescoço, o tomara que caia, Crocs... tudo passa. Ninguém come mais palha italiana, paleta mexicana, mas o Ninho com Nutella e o pistache resistem.

– Isso são apenas negócios... somente produtos.

– Até os cachorros?

– Claro, todos os animais, videogames, raquetes de beach tennis! Tudo é só um jeito de ganhar dinheiro.  

– Mas com os bebês é diferente, né, mãe?

– Olha... sei que é difícil aceitar, mas não... Com os bebês não é diferente. Eles são produtos.

– Como pode alguém achar que bebês são produtos?

– Então... tudo começou com amor mesmo. As pessoas gostavam, queriam ter os bebês... Era um tempo de certo alívio. O país, mesmo imperfeito, saía de um tempo muito sombrio, um dos mais sombrios até aquele momento. Por isso, todo mundo tinha muito afeto represado, muito amor guardado. Lembra das aulas sobre pandemia? Então, muita gente tinha perdido filhos, pais, irmãos e avós. Era normal que quisessem preencher aquele vazio. E sociedade é sempre assim... vez ou outra aparece uma moda, um delírio coletivo, ou qualquer outro sentimento compartilhado e cativante.

Tal qual cachorros exóticos e tie-dye, o desejo por ter um bebê cativava muita gente. Outras tantas criticavam, talvez também quisessem um objeto de amar para si, talvez era preocupação com o próximo mesmo ou só o desejo de falar qualquer coisa nas redes sociais. Instrumento de covardes e introvertidos, a internet deu voz e segurança a gente de tudo quanto é natureza. Na TV, era o direito à impunidade rondando quem debochava das instituições, seja por golpes ou bets; nos livros, uma tentativa honesta de resgatar vozes isoladas, vencidas pelo colonialismo; nos braços de muitos, lindos bebês com suas coleções de roupas, brinquedos e perfis bombados nas mais diversas redes virtuais e em muitos encontros presenciais... lembra, foram anos de reclusão, agora, com os bebês, havia necessidade de fazer festas de aniversários, batizados até partos confraternizantes.

– Mas, por que, mãe, os bebês viraram um produto?

– Nossa sociedade precifica tudo, meu filho. Compra-se tudo, até o afeto, até o amor, até a felicidade. Se um bebê demanda roupa, festas, brinquedos, likes e tudo mais, evidentemente alguém vai arrumar motivo para lucrar com tudo isso. Assim, o que era para ser apenas uma coisa prazerosa, um estilo de vida, uma missão ou sei lá o quê, é transformada num grande negócio, ou já nasce para sê-lo.

Pois é, os bebês entraram no desejo de muita gente. Sem qualquer preparo ou planejamento prévio, as pessoas queriam cada vez mais bebês. Então, a própria produção virou um mercado, uma vez que nem todo mundo conseguia seu próprio bebê. Demandava tempo e as mulheres, em sua maioria, estavam super ansiosas para cuidarem dos seus próprios projetos.

– Mas ninguém fez nada para que esse negócio fosse impedido? Claramente, é uma coisa que faz mal pra todo mundo, não é?

– Sim, mas quem controla o desejo? Muito poucos. Por exemplo, tinha uma ou outra mãe que já tinha mais de dúzia de filhos. Como quem coleciona sapatos e bolsas, nunca era o suficiente. Eu mesma conheci uma que tinha cinco bebês. Como se fosse uma coleção de gatos vira-latas que a gente vai recolhendo na rua para completar o álbum, sabe? Era criança branca, preta, ruiva... A mãe tinha cinco; todos diferentes uns dos outros.

– E isso é um problema, mãe?

– Na verdade, não é um problema não. Mas as outras pessoas não entendiam e começaram a perseguir quem usava seu próprio tempo para cuidar de um ou de vários bebês.

– Mas as mães não incomodavam ninguém, não é?

– Nem as mães e nem os bebês. Eles estavam ali em paz... mas o ser humano sabe ser bastante ruim. A perseguição foi tanta que muitas mães não quiseram mais cuidar dos seus bebês. No começo, elas só faziam o básico, até que todo carinho entre mãe e filhos acabou. Muitas simplesmente abandonaram ou deram seus filhos.

– Tem problema dar os filhos?

– Também não. Uma pessoa tem direito ao arrependimento, certo? Todo mundo pode mudar de ideia. E a grande maioria das que não queriam mais cuidar dos seus bebês, simplesmente arrumavam quem tinha mais atenção para dispensar a uma criança.

– E por que, apesar disso, as coisas chegaram a este ponto?

Enquanto elaborava a resposta, a mãe assistia a um filme na sua cabeça. Via os bebês sendo negligenciados e abandonados. Ela era mãe também e vivia imaginando que não queria que seus filhos passassem por isso. Foi aí que nasceu o Orfanato Pequena Beca.

– Eram tantos bebês rejeitados que faltou quem cuidasse. Tinha gente que tinha mais de trinta já. Era impossível dar conta de todos. Em alguns lugares do país, houve quem montasse orfanatos como o nosso, mas boa parte dos inocentes não conseguiu ser resgatada e simplesmente desapareceu. Foram consumidos pelo tempo.

A campainha toca. Correios. Ela recebe uma caixa bem grande depois de assinar um papel. Ansiosa, corre para a mesa onde o filho espera em frente a um bolo de aniversário. Treze velas ainda apagadas decoram o pequeno bolo que é apreciado por centenas de outras crianças, a grande maioria bebês. A mãe abre o pacote, retira um corpo apenas com pernas de dentro da caixa e troca a cabeça e os braços do Nicolas de corpo. Ela também muda o cabelo e faz um buço leve no rosto do menino. Todos cantam parabéns para você, a mãe corta e serve o bolo. Só ela come.

 

* Imagem gerada por IA 

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

Pipoca de graça, sinapses invadidas

 



Semana bosta. Preguiça, ansiedade. Gente fazendo merda. Livros não caem do céu, que burrice! Mas é isso. É sábado e tem peça legal e de graça na Rampa. Tem que chegar cedo para pegar lugar e aproveitar a pipoca de gratuita. – Eles fazem peça de graça e dão pipoca por que são bons, pai?  – Não. É para ter desconto no imposto. – Mas isso é ruim? – Não, todo mundo ganha. A gente, o artista e a empresa que se promove. – Ah – disse em tom de “entendi” e encerrou o assunto. Se ela entendeu, quem, diabos, sabe? Às vezes, é mais esperto se fazer de doido para não endoidecer de verdade. Preciso anotar isso. – Quer pipoca? – Sim. E fomos para a fila. Três filas. Três grandes filas. Pipoca de graça, tudo bem. No fim de uma delas, apenas, sacos cheios de pipoca nas mãos dos que esperavam. – Qual a diferença entre as filas? – Esta é paga, as outras duas são de graça. – Ah, Obrigado. – Hei, vamos para a fila da pipoca de graça!

               A fila não andava. O pipoqueiro colocava, propositalmente, bem menos pipoca na pipoqueira a fim de enfadar a clientela. – Olha, já fui reclamar com a organização. Esse pipoqueiro está ganhando dinheiro e não está botando nem metade do milho que a panela dá conta de uma vez – a senhora desconhecida falava comigo.  – Olha aquela lá, olha como aquele pipoqueiro faz mais pipoca! – Aquela é paga, senhora – respondi gentilmente. – Eu sei, mas se ele consegue fazer aquela quantidade de pipoca, esses de graça também podem fazer assim. A Marquise tá pagando a eles – retrucou educadamente austera. Ela tinha razão. Não existe pipoca de graça. Eu tinha acabado de explicar isso para a pirralha. Mas é sábado. Não vou me estressar por pipoca de graça... vou só assistir à peça.

               – Hei, bora lá arrumar um lugar e ver o filme? Olha como eles estão colocando pouca pipoca. Não vale a pena. – Sim – e me surpreendi, fosse antes, eu não ganharia tão fácil, sem chantagem. Aquela manada esperando dois punhados de pipoca servida em um saco grande e colorido estava me angustiando, irritando a senhora desconhecida e entediando mais outros que escolheram não se manifestar apesar de perceber a sacanagem. Naquele dia mais cedo, estava pensando se ainda vale a pena sair de casa... tem tudo na TV, com imagens ótimas, som excelente e com perpétuos lugares no meu sofá retrátil, além de Coca Zero na geladeira e nenhum estranho. Na grama em frente ao palco, evidentemente, não tinha mais nenhuma cadeira. Ficamos lá, em pé, com uma visão relativamente honesta. Não chegamos mais cedo... Paciência. Inequívoca resiliência. Na nossa frente, uma família de caboclos de estatura média, filhos bonitos, um deles no colo da mãe enquanto o carrinho descansava. Ao nosso redor, pessoas iam chegando e se acomodando. Aplaudimos o curta que abria a peça, o diretor, os dubladores. Já já subiriam ao palco novamente e estrelariam Sinapses de Darwin.

               Peça boa... muito boa. Era Slipknot, Mad Max, Minions, Divertidamente, Revolução Francesa. Obviamente poético, de muito bom gosto aquela bateria foda no coração e a absoluta guitarra na cabeça. Dois músicos fodas da cidade. Admiro-os com inveja. Que peça linda! Que bacana todo mundo ali de graça, fazendo reels, tirando fotos com flash, comprando espadas brilhantes do senhorzinho ambulante, crianças correndo e idosos trazendo grandes sacos coloridos com pouca pipoca. Que harmonioso caos. Isso não tem em casa, isso não tem nem num teatro fechado! Era o teatro raiz, com artistas de elite, gente da Globo, gente de teatro internacional e boa parte do público ignorantes a tudo isso, só com o belo para admirar.

               Perdi entre oito e quatorze minutos de peça alheio em pensamentos com argumentos precisos, com coisas que me estressam e que não devem valer minha energia. – Fulana, vem cá. – Com licença – ordenou a fulana que poderia dar a volta, não custava nada, não mexeria com ninguém. Aumentariam dois ou três passos, muita coisa... – Oi, Dona Joana. – Essa peça é infantil ou de adulto? – Olha, Dona Joana, nem eu mesmo estou entendendo muito bem. Tem hora que é de criança, tem hora que é de adulto – disseram e se calaram. O que é peça de adulto? Tem que ter piroca, sexo, violência, vazio existencial, dívidas? E se for peça de criança, adultos jovens e velhos não podem ver, caralho? Que coisa idiota, que raiva idiota! Sim, eram duas tontas que não ficaram mais de doze minutos vendo a peça entre o casal que estava à nossa frente e tiveram de se separar por ou um capricho alheio. Direitos não podem ser privilégios, um outro pensamento intrusivo, mas coerente, me dominava. De um lado, o homem e dois filhos no chão – duvido que viam algo; no meio, Fulana e Joana; e, do outro lado, a mulher e o bebê de colo no colo.

               Sapiens de sapiência morosa saíram, a família simpática se juntou novamente, a peça, então, voltou. – Tá entendendo? – Tô, pai, e tá muito legal! Ela assistiu à peça toda de pé, postura horrível, sem reclamar. Aplaudimos, fotografamos. Nós dois e todos ali. Maravilhados. Mais aplausos para os agradecimentos emocionados da Companhia. A emoção do público, apesar de dispersa, era notada; claramente muito menor que a dos que reviam na mente suas jornadas de artistas costumeiramente desvalorizados, seja pela crítica, por quem compra espadas iluminadas do meio da apresentação ou quem atrapalha ao menos três grupos certamente interessados para assistir a no máximo dez minutos de uma peça que não se define como adulta ou infantil. Não é sempre, mas às vezes eu também gosto da minha profissão.

               Fim de festa, muitos felizes, o carro no lugar deixado, sem flanelinha, sem arrombamento. Era a brisa do rio, os barcos no porto, o milho Yoki premium mais caro do que a lógica prevê esperando para ser estourado e temperado com sal e manteiga de garrafa. Era ali agora, filme em casa, sem gente falando, sem espada piscando, sem foto com flash, sem idosos inconvenientes e acompanhantes amarguradas, sem fila, sem criança gritando ou correndo ou gritando e correndo, com Coca Zero e um controle remoto capaz de pausar a história se tiver uma improvável distração externa.

 

Rodrigo Slama

*Imagem do Google