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quarta-feira, 1 de outubro de 2025

Exu do Pix

 



Tem um tempo já que minha namorada e eu estamos frequentando terreiros. Não importa se é Umbanda, Jurema, Candomblé... A gente vai pela comida. Ela que me convenceu. Eu mesma não acredito em muito coisa não, nem ela; típico de um casal de Taurina com Capricorniana. Mas temos amigos religiosos e gostamos das danças, das roupas... Sempre é divertido.

Mas da última vez que a gente foi eu não gostei não. Primeiro que tinha que cumprimentar um bode na entrada. Eu nem sabia que se cumprimentava bode. A gente entrou, começou a gira. Uma entidade veio falar comigo.

– Suncê nunca tinha vindo aqui no canzuá não, né, fia?

– Não, aqui não – respondi.

– Intonce minha fia vai lá e fala com o bode.

Fui. Chegando lá, me mandaram cumprimentar o bode. Cumprimentei. Disseram que ele me cumprimentou de volta, mas como nem sabia que se cumprimentava bode... Depois daí tudo começou a ficar esquisito. Eram mais de cinquenta galinhas ali sendo mortas, o lugar cheio de sangue, as crianças vendo aquilo. Depois mataram o bode e um homem incorporado veio bebendo sangue da cabeça dele.

Quando me chamaram a primeira vez, eu tinha preconceito. Mas em todo canto que eu fui até aquele dia tinha sido ótimo. Todo mundo muito simpático, a comida boa, tudo limpo e organizado, decorado. Fui pesquisar e um monte de Pai de Santo de YouTube disse que não se fazia mais aquilo, que quando se matava algum bicho era rezando, era pra comer. O animal era sacralizado e deveria sofrer menos do que em abatedouros. Não era para ter, segundo eles, este espetáculo sangrento, a glorificação do sangue cru, do absurdo, do provocante. Continuei lá, cada um tem sua Cultura.

– Minha fia, tu sabe, né? – disse uma mulher com roupa preta e vermelha, fumando cigarro e bebendo vinho com sangue. Tava toda suja.

– Boa noite, senhora. Sei o quê?

– Hum, você sabe muito bem. Aquele segredo. Aquilo que suncê veio aqui resolver.

– Senhora, não tem segredo não.

Fiquei tentando me livrar dela. Realmente, não tinha nada de segredo. Tinha ido lá pela comida, mas nem comi. Nã, tudo seboso. Vendo que eu não estava dando bola, a entidade foi falar com uma mulher do meu lado. Mal respirei, veio o homem todo cheio de sangue segurando a cabeça do bode e tomando o sangue dele. Uma nojeira.

– Minha fia, aquele homem vai voltar pra você!

– Como é senhor?

– Seu homem vai voltar.

– Moço, tem homem nenhum não, minha namorada tá aqui do meu lado.

O homem riu de deboche e foi falar com meu amigo que me levou. Cobrou a ele o Pix de setecentos reais por ter feito ele conseguir o emprego de volta. Veja só, que Exu evoluído! Fala vosmecê, mas também pede Pix. Tem dificuldade com laterais palatais, mas não com uma sequência de oclusiva velar surda e fricativa alveolar surda. Pior que meu amigo realmente conseguiu o emprego, me disse depois. Negociou e pagou em duas vezes no Pix parcelado. O Exu pegou seu celular na sua bolsinha tiracolo colorida, conferiu o depósito, abraçou meu amigo, ofereceu a cabeça do bode e tragou um cigarro.

Enfim a festa acabou. Minha namorada viu uma moça pagando dois mil e quinhentos reais uma Pomba-gira que fez o marido dela largar a amante. Com fome, saímos de lá direto para o podrão. Fui botar ketchup e meu estômago embrulhou. Só danei maionese verde.

Rodrigo Slama 
* Imagem gerada por IA

quinta-feira, 4 de setembro de 2025

É preciso um estrangeiro para desneymarizar a Seleção

 




Um deus para Enzos e para o Intagram da CazéTV, Neymar tem chorado em campo e, mais uma vez, fica de fora da convocação de Ancelotti em jogo contra o Chile, já já. Fazia tanto tempo que não trabalhava, que o corpo ainda está de férias. Tudo bem, o menino precisa se recuperar mesmo... foram anos de farras, polêmicas, sonegação de impostos... Mas já já ele estará em forma, dizem os médicos, os comentaristas e os fãs. Nem ele mesmo acredita nisso, nem sequer quer. Só olhar para o tempo que está de volta aos campos e de como não chega sequer perto do jogador que fui um dia. Segundo o treinador do debate com os 30 gordos, corpo é questão de escolha. Se Neymar quisesse, estaria em forma.

Ah, mas a função dele na Seleção seria motivar a equipe, seria um líder, o mais experiente... Com mais amarelos do que gols, se for. A mesma lorota foi falada sobre Daniel Alves, o condenado por estupro em primeira instância, ex-presidiário absolvido por quatro juízes catalães. A Seleção não chegou nem perto de ganhar a Copa passada, muito menos o Daniel desempenhou mais do que sua função de tantãzeiro. Neymar é tão necessário para a Seleção como seu Batmóvel de oito milhões e trezentos mil reais é necessário para levar seu cachorro ao petshop para tomar banho e fazer a tosa higiênica.

Desde que voltou ao Brasil, é Neymar pra todo lado. Nem seguidor de futebol eu sou, este tema é um dos quais tenho dois ou três chavões para manter três minutos de conversa. Como uma praga, se o Santos joga, Neymar começa em campo?; Santos perde, Neymar chora; Santos vence, Neymar gênio. Chega perto da convocação, Neymar será convocado? Certamente, a notícia da convocação não passaria tanto para mim, alheio, sem a presença do príncipe. Falem bem ou falem mal, deixamos ele na mídia, enriquecendo quem apostou no seu fracassado projeto de ser ídolo, mas exitoso em grana, muita grana.

Apesar de não jogar, sua sombra ronda a seleção e os noticiários. A maioria das notícias em nada contribuem para a modificação de sua aura, de sua percepção. Ainda assim, notícia duvidosa de redes sociais diz que um empresário de SC escolheu Neymar como seu herdeiro bilionário; sem falar nos fãs à moda CarLu, tão medíocres quanto o espírito do Príncipe da Vila Belmiro. Ou seja, por mais que um gringo queira colocar Neymar no seu devido lugar – o lado de fora da Seleção –, seguirmos acreditando que o filho talentoso do ex-jogador, ex-mecânico e atual empresário milionário vale algo além de sua fortuna. É um ídolo que não foi e não tem mais tempo de ser.

 

Rodrigo Slama, 04.09.2025


Imagens da internet 


domingo, 10 de agosto de 2025

A Gripe e a Cândida



Chego na sala VIP. Estão lá Marlon e Dimitri. Sigo em direção à cafeteira.

 – Bom dia, bom dia! – eu disse. – Dimitri, gostei da camisa.

– Obrigado, é bem nordestina! – e era. Certamente, iria para casa, ao contrário de mim, já fardado.

– Comandante Felié, tô sentindo sua voz rouca. Te pegaram, né? – disse Marlon rindo seu riso peculiar.

– Foi, acordei com a garganta incomodada.

– Semana passada eu tava arrebentado, me pegaram, quase morri! – disse o comandante, multiartista, produtor de um jardim orgânico e assinante de cursos livres digitais.

– Quem trabalha pessoas, como nós, pega uma gripe de vez em quando. É normal – falei partindo para o sofá. Minha garganta tá chata e eu não quero conversar com quem quer que seja. Vou ler as notícias, tomar meu café e seguir pro avião calado. Com o mínimo de interação possível.  

– Cuidado com a Cândida! – diz Dimitri.

Eu, supreendentemente surpreso, dada a qualidade dos assuntos que circulam no ambiente máximo de interação da companhia, perguntei com o meu sarcasmo companheiro: – Candidíase, Dimitri? Na minha viagem não tenho a menor possibilidade de pegar isso não. 

Marlon riu, também incrédulo. Dimitri se constrangeu e disse que era brincadeira. Sentei-me no sofá enquanto Marlon explicava o que era candidíase – explicou certo – falou que era mais propenso em mulheres (não com essas palavras), abordou a questão da imunidade e esclareceu que, ao contrário do que o senso comum pode sugerir, não é uma infecção restrita ao ato sexual (também com outros palavras, claro). Além disso, mostrou ao meu colega comandante um vídeo do médico infectologista Ricardo Kores, que faz um excelente trabalho de divulgação científica médica nas redes sociais, aliás.

E assim, nuns poucos metros quadrados do Hangar 10, um “bom dia” roco se transforma em um diálogo, ancorado em Discurso de Autoridade, sobre vírus e infecções.

 

Rodrigo Slama, 31.07.2025



*Imagem gerada por IA

quinta-feira, 26 de junho de 2025

Demora do lixo, me dá um cigarro

 


Estou lá fora, na chuva e na esperança dela cagar logo pra subir. Um casal de vizinhos vai até a casa do lixo. A cadela se distrai e desarma a sentadinha do cocô. Eu deixei o lixo instantes antes. Eu fui até a porta do lixo e joguei o lixo na primeira lixeira destinada ao lixo não-reciclável. Eles tinham papelão. Mudaram-se recentemente? Penso nisso agora, apenas. Será que procuravam a tambor dos papéis? Aqui a gente separa, mas a casa do lixo é uma bagunça. É meio dedutivo a escolha por onde colocamos os recicláveis que separamos, mas lá... lá na hora é roleta! A lixeira do papel pode conter vidro. Pode ter vidro no chão. Pode ter lata no vidro.

Por que demoram tanto neste lixo? Simpáticos, cumprimentaram ao passar. Boa noite, olá. E a cachorra se distraiu naquele momento e não cagou. E por que a demora? Eles querem conhecer a vizinhança pelo lixo como no texto do Veríssimo ou só estão procurando algo específico, algo que jogaram antes por engano? A cachorra não caga, eles não acham o que querem nos tambores, eles conversam entre si, a cachorra mongol se distrai de uma ação fisiológica ao tentar entender por que aqueles dois demoram tanto no lixo e eu não subo. Estou sob a jambeira tentando fugir da chuva fraca que me fecham as narinas resfriadas. A cachorra não caga.

Mais cedo uma perdida abriu minha porta e me pegou de cueca lavando a louça. Ela pediu desculpas, errou o bloco; fechei a porta sem dizer nada e agora tem três maçanetas digitais no meu carrinho esperando serem escolhidas. Bom que ninguém fica trancado para fora. Bora que ninguém perde a chave. E não tem nada em casa mesmo que valha o trabalho de alguém arrancar os polegares de um punhado de branquelos para entrar por uma porta facilmente arrombável. Parece vantagem. Vai ver que por isso que perdi o chaveiro velho do meu pai... para não adiar mais esta transição fechadural.

As redes citam os jornais que dizem que cada cigarro, de nicotina, pressuponho, diminui o tempo de vida de um homem em pouco menos de vinte minutos e, para as mulheres, pouco mais de vinte minutos. Se a nicotina faz mais mal, dois finos por dia tiram, no máximo, trinta minutos. No máximo! Ou seja, a cada dia com dois cigarros, perde-se meia hora de vida. Não sou muito bom de matemática, mas a calculadora diz que isso dá, ou tira, sete dias e meio do ano. Em cinquenta, perde-se um ano e quinze dias. Isso tudo para ter quarenta e nove anos mais leves? Quero três, obrigado!

E os neurônios? Poderiam comer apenas os das memórias ruins, dos medos, dos traumas, das saudades sem jeito. Que comam os livros e filmes e discos de histórias criadas ou acreditadas!... Enquanto isso, corro cada vez mais animado para chegar, demodemente, mais longe na vida, na vinda? Mas agora, que livro começar? Literatura, por favor! E o da cabeça, novo? Lê junto, como sempre. Mas agora agora, que livro? Literatura, já disse!

Pelo título, autor e primeiro capítulo já sabe-se que é bom, mas além. E o sofrimento anunciado dialoga com histórias brasileiras tristes nos conectando pelo menos colonizador, pelos mesmos problemas e língua. Se o sofrimento é nudez, o represamento disso num indivíduo que carrega a carga de uma geração de profundas raízes uma hora rompe. Rompe em tiro, em litros, em livros, em telas. Por isso arte existe, o trabalho frente a linguagem existe dialogicamente e responsivamente, além do mais. São nossos personagens, os ecos dos nossos antepassados, textos passados, medos, traumas. Flui sobre mim, já. Interage.

Em resumo, paz e putaria. Um breve cansaço, alguma ânsia aguda, tudo normal. Deviam comer os neurônios, as sinapses certas. Elas deveriam se desesconder. Se não trabalham direito, se não se dispõem a servir ao organismo, ao coletivo, tchau, querida! Quem sabe no futuro, num texto futuro, numa cirurgia futura que seja coberta pelos planos e pelo SUS? Ah, mas isso não resolve a raiz do problema. Mas poda a raiz do sofrimento de um indivíduo, de uma agonia desnecessária, uma perda de tempo, uma perda de experiências, uma cadeia invisível e dolorosa!

Tem luta que vamos demorar muito para ganhar, talvez todo mundo morra antes. A ideia, por ora, é se livrar do peso, se livrar dos sonhos que custam caro e não vão trazer o que nunca encontramos perpetuamente na realização dos planos que um dia tivemos e que agora parecem tão pequenos que não vale a pena. Nesta antítese, qualquer caminho é desconhecido e dá medo.

 

Rodrigo Slama, 22 de junho de 25  

Imagem gerada por IA

sábado, 21 de junho de 2025

Entre o semáforo aberto

 


 

Há dias adio escrever sobre isso. Quanto tempo uma lamparina cheia de gordura saturada demora para apagar? Apaga? O fato é que nunca acreditei na escrita como terapia ou autoajuda, ou de autoajuda. Mas por que não seria? Por textos atravessados, um eu literário, ou personagens, usamos linguagem, bem ou mal, bela ou imbecil, e todo texto de ficção ou não forma nossos divertidamente, inclusive, filme e título maravilhosos.

A demora em começar um novo parágrafo é metáfora da procrastinação companheira. Seja para cuidar melhor da minha filha, para cuidar mais de mim, para não fazer os projetos esquecidos, quase mortos que teriam alguma chance se vissem a luz que não passa pelo tampo da gaveta... Mas vamos lá. Vou começar pela morte, pela tragédia, por como eu queria não ter empatia e, assim, ser mais leve.

Não me lembro de ter perdido um aluno ou ex-aluno. Esta é a vantagem de ser professor de gente jovem... A gente vê as transformações nos seus estilos, vê sua rebeldia e espirituosidade... vemo-los indo para a universidade e vez em quando aparece uma notícia boa sobre alguém. Fulano foi fazer um intercâmbio, sicrano passou num concurso... As piores notícias que costumam chegar são de gravidez. Uma vida a mais, renovação da espécie... e a gente pensando que isso acaba com a vida de uma jovem promissora.

Minha aluna, ex-aluna... aluna era chata de tão legal, adolescente cheia de vida, apesar de não comer carne. Que estava estudando moda tinha sido a última informação que recebemos. O tempo passa... Fulano foi contratado por uma multinacional, sicrano passou em medicina. E a gente, na verdade, não pensa muito em quem já saiu da escola. Os desafios sempre aumentam... esse pessoal está cada vez mais preguiçoso para estudar, os velhos e os novos problemas nos envolvem, fora a burocracia, a economia, a hipocrisia.

Um dia depois do meu aniversário, quando esperava o bolo ficar pronto para comemorar mais um ano com minha família, várias mensagens pedindo orações para a Letícia apareciam nas redes sociais. Era sábado. Entrei, contra meus princípios, no grupo do trabalho e as notícias não eram boas. As orações, de todas as crenças, seriam necessárias. Não rezei, não rezo. Mas torci muito para que ela conseguisse. – Olha, já vi muita gente bem mal sair viva de um negócio feio – disse minha companheira – ela é nova, tem chance – conformou. Não teve. Seguiu-se o protocolo. No domingo, um dia depois do seu aniversário, foi declarada sua morte cerebral.

A gente não pensa em todos o tempo todo. A gente não acompanha todos. Dezenove anos. Estava indo para a faculdade quando o mototaxista que a levava avançou o sinal em alta velocidade e interrompeu uma vida e afetou tantas outras. Eu tenho uma filha, doze anos. Eu nem imagino de onde eu tiraria forças para querer qualquer coisa com a vida se acontecesse algo assim com ela.

Cinquenta e seis anos. Meu pai morreu jovem. Com vinte anos a mais que eu agora. Demorou um tempão para eu chegar aqui, mas está me parecendo pouco. Olho para frente e me parece pouco. Meu pai teve filho, conheceu neta, foi negligente com sua própria saúde apesar das análises, apesar dos conselhos, apesar até da própria fé. Foi embora cedo. Eu estou com medo de ir embora cedo. Letícia foi embora cedo e isso está pesando mais do que achei que pesaria para mim.

Lá fora, o Irã ataca Israel genocida. Trump não controla nem a California, Haddad sangra sozinho como um mártir sem seguidores. Bananinha fugiu, Zambelli fugiu, Bolsonaro está solto... E a família dela? E a mãe dela? Dezenove anos. Tinha amigos, tinha um projeto de vida, tinha sonhos. Na TV, Virgínia fatura, Direita se cala diante de promessa de indulto aos golpistas, Fux cão bem adestrado. E eu fui de triste a ansioso e irritado a semana inteira. Duas semanas de agonia por motivos diferentes que me compõem.

Por que uma bailarina gorda foi colocada para reger uma orquestra? Por quê? Por que o mecânico inveja o piloto e por que o piloto inveja o artista ou o agricultor? Não tenho feito as coisas direito, não tenho pensado direito. Às vezes passa o tom, a canção perde harmonia; o pianista solista não olha para o espelho, envergonhado perde o bonde e precisa correr mais um pedação. Dobra outra esquina, não está quase chegando. Um pouco mais de brasa, era além.

Caso, infelizmente, comum de trânsito do séc XXI. Poderia ser sua minha filha, com meu pai, nossa aluna, alguma conhecida do dia a dia. Poderia ter sido eu. Talvez por isso a castração, talvez por isso a frustração. Banho de água fria na madrugada. Quando do segundo gol, gritei palavrão e não podia. Talvez um troco modesto. Pedágio, multa. Tic-tac, tic-tac, tic-tac. Segue feliz pelo túnel. Não foi em vão. Sem direito e mais vontade de podar capítulos, envelheço felizmente.


R Slama, 20/06/25


*Imagem do Google