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sábado, 11 de dezembro de 2021

Estrato lúcido

 


Não dissimula a pele quando afagada em êxtase. Feromônios, sabonete de aveia, vai saber? Nos pulmões, o cheiro fazia casa. Inundava, zeloso, a vontade de ficar para sempre grudado, como almas amaldiçoadas ao inferno. Fazer o que quando quereres, apesar dos aromas, são limitados? 

                De tanto que gostava de sua pele, elogiava. Ela, tentada, se convencia da finitude, mas mostrava impavidez. Teve ideia. Engordaria, sem trabalho. Cheesecake e coquinha, aumentava sua doce superfície matando dois vícios: a gula e a responsabilidade. Engrandeceu seu exterior acima do coração.

                Anestesia. Corte. Cirurgia. Sem túnel de luz, tudo foi mal e terminou bem. Lipo. Limpa. Saía esculturalmente moldada. Esculpida por Apolo em carrara. Do que sobrou, no entanto, não deixou que destruíssem. Artesã melhor que ela não havia. Costurou seu couro. Linda boneca fazia. Linda e sem vida, sem emoção alguma que alguém conhecesse.

                Inerte, imóvel e invivída. Mulher tal como é era entregue. De que vale o cheiro, no entanto, sem a alma? De que valem as almas, então, sem cheiro? Sabe lá!? O que não dissimula em pele não responde à realidade.  Fazer o que quando quereres, apesar dos aromas, são limitados? Que fazer?

 

Rodrigo Slama, 11/12/21

*Imagem do Google 

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Levante dos deuses famosos

 



No panteão dos que existem só na Terra, os deuses trabalhavam cada um com as suas demandas. Quase todo dia era sempre igual. Pedidos, agradecimentos, oferta de alimento, tempo, dinheiro... Hoje, não é mais como quase todo dia.

– Esse pessoal não dá um dia de folga! – disse Buda.

– Buda, deixe de pantin. Tá berrando de bucho cheio! – reclamou Jesus, um dos que tinham o maior serviço.

– Relaxa, pessoal. Uma hora o sossego vem. – tranquilizou Hermes.

– Vamos manter o foco na permanência, galera! – recomendou Oxalá.

O fato é que Jesus e Alá trabalhavam vinte e quatro por dia enquanto tinha deus à toa. Era pedido o tempo todo. Ibisu trabalhava pouquíssimo e ainda tinha metade do dia pra descansar sem precisar ouvir ninguém. Tava um clima de injustiça e desunião. Tinha deus querendo sair da galáxia pra ter um pouco mais de paz, mesmo sem saber se existia outro planeta com rezantes.

Jesus já estava de saco cheio. Dentro da sua própria galera no mundo tinha desentendimento. Ele era onipresente, mas isso não quer dizer incansável, né? Era melhor no tempo em que rezavam pros seus santos, agora boa parte dos problemas vai direto nos seus olhos, ouvidos e até no nariz.

Brahma e seu pessoal também estavam impacientes com o tanto de trabalho concentrado para uns. E outra, tinha deus ali que não ganhava nada... pelo menos não ganhava dinheiro, ouro. Tinha deus alimentado por vela e gratidão trabalhando mais que deuses da fortuna. Como um mundo será menos mesquinho se nem a comunidade dos seus deuses é igualitária?

Aurá Masda, um deus bem antigo que ainda vive, não via serviço pesado há pelo menos três mil anos. Teve mais sorte do que os deuses que morreram por falta de lembranças ou rezas. – É claro que vamos mandar pra cima dele! – disse Javé, olhado com desdém pelo seu filho. A maioria concordou. Bolaram um plano e começaram a colocá-lo em prática.

Ao contrário do que dizem, deuses não podem mandar dilúvios, guerras, fogo do céu. Deuses precisam tralhar com as ideias, sabe? Não dá pra ser pela coerção, não. Nas mentes dos mais fiéis, conseguiam entrar em sonhos, plantar quem questionasse sua fé no dia a dia... conseguiram até convencer, não só pela persuasão, quem pudesse difundir a verdade sobre a vida e a espiritualidade, o verdadeiro deus: Aurá Masda.

Para os que não são deuses, passaram-se muitos anos de envelhecimento e morte, mas para os que eram quase imortais, o tempo não lhes dava a delícia do envelhecimento e da inexistência. Enfim, no entanto e felizmente, Aurá Masda era obrigado a trabalhar pseudoinfinitamente mais do que costumava nos últimos milênios.

Jesus e Alá, que sempre sentiram o constante aumento de serviço, nem sabiam o que fazer com o tempo que agora eles conheceram. Por mais que, no princípio, a gente ache que só precisa viver se tiver trabalho, os deuses estão entendendo que têm direito ao lazer, ao ócio e à própria contribuição à humanidade. Quanto ao Aurá Masda, ele tá trabalhando mais do que houvera trabalhado desde que foi inventado, mas nada ao tamanho do que os líderes do levante já trabalharam um dia.

 Este texto faz parte do livro Pastor e outras histórias

 Rodrigo Slama, 27 de outubro de 2021

*Imagem do Google

quarta-feira, 14 de julho de 2021

O homem do intestino invertido

 


– Uma vez eu conheci um homem que tinha o intestino invertido.

– É o quê, criatura?

– Sim. Ele tinha o intestino invertido. Era tudo ao contrário ali.

– Como foi isso?

– Tinha sido atacado por uma ema. Eu nem sabia que emas podiam atacar alguém... mas são como galinhas gigantes, né? Às vezes, galinhas atacam mesmo. Daí, levaram o cara para o primeiro hospital que viram, né? Foda que o médico que tinha lá não entendia de ataque de emas... e dizem, a galera toda de lá, sabe?, que ele era viciado em remédio de malária. Passou um tempo, há muito tempo, lá no Norte... na falta de tóxico começou a tomar aquilo. Era o que tinha, né?  

– Homi, deixe de enrolagem e conta logo essa história!

– Sim... aí o médico lá, chega tinha a boca torta de tanto remédio de malária, viu o sujeito de bucho aberto. Tava uma coisa feia, tudo sujo, tudo cagado, tudo cheio de baba de ema...

– E danado galinha baba, caboco?

– Rapaz, foi minha prima enfermeira lá que disse que tava tudo uma nojeira.

– Sim... continue...

– Aí o médico não podia costurar daquele jeito, teve que tirar tudo pra lavar.

– Lavar?

– Tu quer saber a história ou não?

– Conte!

– Apois deixe!

– Vá, caba...

– Aí o médico tirou tudo pra lavar. Mas como ele tava muito doido de droga, costurou todo ao contrário.

– Costurou ao contrário?

– Foi. Daí o sujeito agora caga pela boca. Coisa horrível... um bafo da porra!

– E come por onde?

– Macho, se ele caga pela boca, tu acha que ele come por onde?

– Sério? Deixe de mentir...

– Rapaz, minha prima disse que ele tinha que tomar sopa por uma sonda no furico. Mas, depois de uns dias, já podia comer normal. Era só colocar que o cu mastigava e engolia.

– O cu mastigava?

– Ô se não... Esse caba gosta muito de comer galinha de capoeira, sabe? Aí ele come uma inteirinha. Bota numa cadeira e senta.

– O caba senta numa galinha e come com o cu?

– Tô dizendo... ainda digo mais... ele era magrinho, merminho um atleta, mas depois da operação ele tá é gordo... tá gostando mais de comer pelo boga.

– Já pensasse?

– Pior é aquilo, né? Quanto mais come, mais caga. E nem a esposa consegue mais ficar perto do caboco. Mas ele tá nem aí não... Henrique que é mais chegado me disse que ele passa mesmo o tempo é comendo... abacaxi, coalhada, manga rosa...

– Abacaxi?

– Sim... e digo mais... ele nem descasca.

 

Rodrigo Slama 14/07/21


*Imagem do Google


terça-feira, 23 de março de 2021

Lyudmila

 

Fazia dias que Ana não dormia direito. Parecia viajar, se desdobrar para uma guerra. Ela nem gostava de ver filme de guerra, nem muito de filme ela gostava. Acordava cedo todo dia. Molhava a calçada como se a escassez de água não fosse um problema. Geralmente, caminhava até a pracinha a três quadras de casa... ficava lá uns minutos e, às vezes, levava até um pãozinho duro pros pombos. O clima andava seco no Planalto central... se comprasse o pão de manhã ele já estava duro à tarde.

Em casa, todo dia ela, ela fazia pequenos serviços domésticos. Não mexia mais no fogão porque suas mãos não estavam tão firmes e há dois anos ela se queimou derramando água do macarrão. Lia um pouco, rezava a Prece de Cáritas e meditava para que o Dr. Bezerra de Menezes ajudasse a curar a pandemia no mundo e, principalmente, no Brasil. Kardecista e conservadora, Ana votou contra o PT nas eleições. Ela não aguentava mais a roubalheira. Não estava gostando muito do presidente que ela elegeu, mas... Na época seus netos tentaram avisá-la, no entanto votou como o filho, major do Exército, que se perguntava onde tinha errado para criar filhos comunistas.

Antes de dormir, nos últimos dias, rezava um Pai Nosso e pedia por bons sonhos. Conversava com seu mentor, fazia uma prece para o seu falecido marido e pedia auxílio para a pandemia mais uma vez. Talvez sonhar com guerra fosse saudades do companheiro falecido há mais de 15 anos. Ele era Coronel do exército e morreu de câncer no estômago. Ana acreditava que era um carma de uma vida passada.

Naquela noite, seu mentor apareceu em sonho. Disse que ela estava perto de concluir uma importante missão na Terra, uma missão em que ela se comprometeu antes mesmo de encarnar. Desde pequena, quando começou o contato com o mestre, ela sabia que certo dia ela deveria realizar um ato humanitário de extrema importância, mas nunca lhe foi revelado quando e nem o que deveria fazer.

Ao acordar, ela agradeceu com uma prece, vestiu roupas claras e foi, naturalmente, molhar a calçada da rua depois do café. Ela não gostava da máscara, bem que o presidente disse que se respira gás carbônico por ela... mas até que Ana estava usando direitinho nos últimos tempos, estava realmente difícil. Não levou pão seco desta vez, mas caminhou um pouco pela até a praça. Antes de chegar ao seu banco, sentiu sua consciência quase se esvaindo... botou a culpa na máscara. Ela, agora, iria cumprir sua missão.

Quando acordou, deitada no topo de um dos prédios ministeriais, Ana não reconheceu a pessoa do seu lado... muito menos os equipamentos ali. Ela estava segurando uma arma, uma arma grande, um rifle de precisão. O homem ao seu lado tinha em suas mãos binóculos e outros apetrechos. Naquela hora, confusa, tentou se levantar, mas se assustou com o som do helicóptero.

Ana se virou e levou um tiro a queima roupa no peito. Não sentiu dor, não sentiu medo. Chegou do outro lado e lá estavam o seu amado companheiro, com roupas que nada lembravam sua patente militar, seu mestre e mentor além de uma mulher com o rosto um pouco peculiar que ela não conhecia, mas que sentia conhecer. Esta mulher a abraçou e agradeceu. “Obrigado, minha irmã. Pelas suas mãos o 310° inimigo foi abatido. Vidas serão salvas na Terra”. Todos os meios de informação e desinformação do mundo se perguntavam como uma mulher de 85 anos sem treinamento militar algum e com certa dificuldade de movimentos conseguiu subir num prédio ministerial com armamento sofisticado e matar o presidente do Brasil com um tiro na cabeça.

 

Rodrigo Slama 23/03/21


Histórias inéditas em 

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quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Amarga Odontíase

 

 


Infelizmente, terminou a pandemia.

A gente já pode sair sem máscara. Ninguém usava mais máscara mesmo! Um bom bocado de vacina deu certo e logo a imunidade da população mundial chegou a padrões seguros. Enfim o normal voltava. O velho normal, com bar, escola, terreiro cheios. No Rio de Janeiro, as escolas de samba preparavam os carnavais, os maracatus ensaiavam em Pernambuco e o Amazonas prometia uma Festa de Boi como nunca se viu.

Mas Josefa se lamentava. Ninguém entendia direito e muito poucos desconfiavam. Pra ela, infelizmente, a pandemia tinha terminado.

Com quase sessenta anos e poucos pés de galinha, mais do que a sua melanina, a falta de sorriso contribuía para a economia de marcas de expressões no rosto. Desde a adolescência, se acostumou a pouco rir, a pouco chorar, a pouco manifestar qualquer sentimento. Na verdade, Maria Josefa tentava não alimentar nenhum sentimento... bom ou triste, alegre ou ruim, nada que sentia era manifesto... tudo guardado, embalado, escondido.  

Mas durante um ano, Josefa estava visivelmente mais alegre. Seus olhos sorriam. Até mais rugas apareciam. Gente parente que nunca tinha ouvido sua risada, acostumava-se, inicialmente com certa desconfiança, a reconhecer sua gargalhada.

“É falta da igreja”, disse um sobrinho ateu. “É nada, deve ter arrumado um pé de lã”, retrucou o marido covarde. “Gente, deixa ela. Ela só tá feliz”, respondeu a filha mais nova que fazia faculdade.

A felicidade, porém, estava ameaçada. A pandemia tinha acabado. Todo mundo saía sem máscara e Josefa tinha que sair assim também. Sem máscara, não sorria; sem máscara, tinha vergonha, sabe? Tinha vergonha.

Rodrigo Slama 14/10/20


Imagem do Google (Revista Exame)