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quinta-feira, 21 de maio de 2020

O dia que mataram Bolsonaro





Quarta-feira. Mês de junho. O Nordeste comemorando seus santos, o Sudeste vindo pro Nordeste curtir as praias. Meio do Ano. Todo mundo merece descanso, todo mundo precisa descansar. Eu dava aulas e dançava quadrilhas. Comia milhos e cheirava cangotes no Beco. Tudo seguia e a gente seguia também, sem muita escolha, sem ter muito o que fazer além de reclamar em páginas de redes sociais para os nossos próprios amigos semidesconhecidos e poucos desconhecidos que a gente mal sabia quem eram.
– Mataram Bolsonaro! – gritou um aluno quase no fundo da sala e todo mundo começou a falar. Pensei em brigar com o guri que estava mexendo no celular na minha aula e inventando história, mas por que alguém iria inventar que mataram o presidente?
– Como é? – inquiri.
– Professor, acabaram de mandar aqui. Mataram o Bolsonaro!
Saquei meu celular. Todos os grupos em polvorosa. Um monte de gente comemorando, poucos lamentando, mas, sim, tinham matado o presidente.
Não consegui mais dar aula naquela quarta-feira. Ninguém mais conseguiu se concentrar no meu texto de Saramago.
Saí para a sala dos professores. Boa parte das turmas estava saindo, mesmo faltando ainda mais de 15 minutos para o fim daquela aula.
– Dessa vez acertaram! – alguém gritou da cantina. Na hora, não entendi. Sabia que tinha sido uma facada, mas ainda estava meio perplexo com aquilo tudo. Não sei você, mas eu, particularmente, demoro um pouco para processar certas informações... sobretudo porque, infelizmente, fico tentando achar brechas que não foram ditas, possibilidades, outras narrativas, enfim... eu ainda estava meio perplexo.
Era uma quarta-feira. Era junho. Tinha gente com toras e galhos de madeira em frente às casas. Era interior... o dia todo era gente soltando bomba, fogos... fossem vinte anos atrás, teria balões, mas hoje não pode mais.
Aquele dia não teve mais aula. Era impossível manter os meninos quietos. Na TV, só se falava nisso. Muita gente preocupada com o que aconteceu, outras pessoas, em menor número, preocupadas com o que seria? Nunca, no Brasil, alguém tinha matado um presidente. – E Tancredo? – Não, desse jeito não. Tancredo não conta. – E agora?
– Olha, rapaz, não sei. Uma parte de mim está feliz, outra está muito preocupada.
– Preocupada uma porra!
– Não sei.
– Bora beber!
– Beber?
– Beber, bora?
– Bora.

Rodrigo Slama
21/05/2020
Imagem do Google 

quarta-feira, 20 de maio de 2020

Gari




Era gari. Quando entrou, não havia concurso. Agradeceu, passou a ter uma renda fixa, era funcionário público estatutário. Todo domingo, ia pra missa. Gostava de rezar. Carregava o terço de Fátima no pescoço. Não falava muito. Não pensava muito. Apenas trabalhava, recolhia lixo e rezava. Casou moço. Sua esposa não sabia ler e escrever. Era assim de pai e mãe. Ele sabia escrever e ler. Pouco, mas sabia. Durante o trabalho, não precisava disso. Precisava só usar luva, boné e as pernas. Trabalhava no caminhão. Andava pendurado por cinquenta metros e corria mais cinquenta a cada esquina. Era tanta sujeira que banho não bastava para tirar o óleo da sua pele. Ele e a mulher já estavam acostumados. Passaram anos. Ele se aposentou. Não aconteceu nada que mudasse sua vida.

texto de 2015
imagem do Google

sexta-feira, 26 de abril de 2019

Conversas de chá


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Não é que seja careta, mas não frequento muitos bares. Não enfrentaria uma espera mortal pelo transporte público caótico do meu bairro, nem pagaria caríssimo por um taxi. Não é nem medo da Lei seca, mas, de fato, de verdade, sem hipocrisia, eu, realmente, não acredito que é legal dirigir após beber. Nunca fiz isso, e não estou muito disposto a testar a minha perícia etílica. Enfim... esta história se passa num café.
Na mesa ao lado, duas amigas conversam. Apesar de estarem numa das cafeterias mais legais, elas pediram chá e broas. Nem sei se chá combina com broas... só tomo chá como medicamento. Claro que, além de curiar o pedido, eu atentei os ouvidos para escutar um assunto que me interessa: religião.

– Teresa, você não sabe o que aconteceu esse final de semana. Gabriel está impossível.
– O que foi? – perguntou a amiga.
– Eu disse a ele: – Vá dormir que amanhã a gente vai cedo à missa. E ele respondeu: – Mãe, eu tenho dúvidas se eu quero ser mesmo católico, disse o filho.
– Olha só, Tereza. Olha o que esse menino me disse!
– O que você falou?
– Na hora, eu tive vontade de brigar, mas eu falei: – Olha, a gente pode sentar e conversar bastante sobre isso daí. – Isso é bem coisa do pai – disse mulher. – Gilberto já mudou não sei quantas vezes de religião. Eu sabia que isso um dia ia acabar acontecendo, mas ele só tem oito anos. 
– Mulher!... – espantada, a Teresa exclamou. 
– Você não fez a primeira eucaristia, Gabriel? Você não vai à missa comigo todo domingo? Você não presta atenção no que o padre fala?
– E ele disse o quê?
– Não sei, mãe. Não estou muito convicto – repetiu a mãe. – Vê se pode, Teresa. O que diabos um menino de oito anos tem na cabeça pra falar em convicção? Olha, nessas horas o padre Manoel faz falta... Ele ria saber o que fazer... agora estou enrolando pra continuar a conversa com Gabriel.
– Sim... o que aconteceu com o padre Manoel?
– Olha, o bispo não quis o padre mais na paróquia. Falou que, enquanto ele estivesse vivo, o padre não comandaria igreja nenhuma em sua região.
– E o que o padre Manoel fez?
– Mulher, ele é carioca, cheio de gírias, muito simpático. Agora, ele está numa igreja lá no Acre.
– No Acre?
– Sim... Encontrei com ele na Jornada Mundial da Juventude, no Rio. Ele disse que tinha sido perseguido pelo bispo... ele era muito divertido, as pessoas não iam mais às outras paróquias, aquela igreja sempre ficava lotada. Transferiram o padre por isso...  
– Vish...
                                                                                                                            

Rodrigo Slama 25/05/2015 

segunda-feira, 24 de setembro de 2018

O cidadão de bem



– Essa cidade tá muito perigosa!
– O país todo tá. Pega.
– Mas tá foda, pô. Esses dias meu pai foi assaltado, levaram o carro dele.
– Foi mesmo? Como ele tá?
– Tá puto... não tinha seguro e encontraram o carro batido. Pega.
– Peraí... Mas ele sofreu alguma violência física?
– Não, pô... mas é foda.
– É...
– Se o cidadão de bem andasse armado... isso não acontecia. Pega.
– Que conversa... Toma.
– Se meu pai tivesse armado, não teriam roubado ele.
– Como que foi o roubo?
– Ele tava entrando no carro e renderam ele.
– Por trás?
– Foi, pô... foda. Oh, pegaí.
– Mas se ele tivesse com arma na cintura do que iria adiantar?
– Se o bandido soubesse que todo mundo podia tá armado não iria assaltar. Passa aí.
– Ou então já ia chegar atirando.
– Tu acha?... Toma.
– Tô de boa. Claro!
– Depois que inventaram esse negócio de Direitos Humanos só a gente que se ferra... bandido tá tudo solto. Apagou.
– Toma o isqueiro. Né assim não! Direitos Humanos não defendem bandido não... na Declaração só diz que todo mundo tem que ser julgado de acordo com as leis.
– Lei só serve pra bandido... Dá pra conversar com você não, mano!
– Pô, negão, pensa um pouco! Tu acha que andando armado você vai tá mais protegido?
– Se o bandido souber que todo mundo anda armado... não vai assaltar. Tem comida aí?
– Tem pão com mortadela lá na cozinha... pega lá.


* Baseado (rs) em fatos reais...

sábado, 2 de setembro de 2017

Um pênis de duas cabeças

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- Toda noite eu acordo com sua mão no meu pênis. Aquilo já estava virando um pesadelo. Eu não aguentava mais ver o meu próprio corpo ser violado daquela maneira. Não queria ser tocado daquele jeito, não queria ser estimulado por ele, seu juiz...
- Toda noite é a mesma agonia. Eu demoro a dormir... tento dormir depois dele, mas ele sempre dá um jeito de acordar e me masturbar enquanto eu durmo. Ele diz que o meu pênis é dele, que ele tinha direito sobre o meu corpo. Mas isso é um absurdo! Eu não aguento mais aquilo e, por isso, procurei a justiça...
O outro ouvia tudo aquilo calado.
- E parece que tudo piorou. Durante o banho, com a desculpa de limpar, ele aproveita e me toca daquele jeito imundo. Eu reclamo, ele para, mas volta. E ainda vê pornografia na minha frente... eu nunca gostei disso, seu juiz, mas ele sempre foi tarado!


No julgamento, o juiz analisa o caso dos irmãos siameses que dividem o mesmo pênis.