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segunda-feira, 15 de junho de 2015

O demônio do Beco da Luz




O Beco da Luz era um atalho no centro da cidade. Entretanto, ao contrário do que o nome sugere, é escuro durante todo o dia. Isso porque as lâmpadas eram constantemente quebradas e as construções em volta, os prédios muito colados, impediam que a luz penetrasse naqueles 170 metros de umidade, sujeira e depressão.
Mas eu não tinha saída. Nunca andava pelo Beco da Luz. A aula tinha acabado tarde, eu não poderia me dar ao luxo de percorrer cinco quarteirões para pegar o último ônibus. Sei que não é bom alguém andar sozinho num lugar ermo, como aquele – eu pedia muito a Deus que estivesse ermo – ainda mais sendo mulher. Eu não tinha saída. Tinha que passar pelo Beco da Luz.
Peguei o meu terço na bolsa. Andava o mais rápido possível para não correr. Eu já tinha passado por lá antes, mas durante o dia e acompanhada por alguns colegas da faculdade. Sabia que não seria uma experiência agradável, muito menos passaria rápido como da vez que estava acompanhada... mas seria rápido no relógio, isso que importava naquele momento.
Eu andava rápido e rezava tão depressa quanto as batidas do meu coração permitiam. Quase no meio, me aparece, repentinamente, um ser esguio, estranho, quase da minha altura com o rosto encoberto pelas sombras. Gelei. Não sabia o que fazer... não podia ser deste mundo, era uma criatura que parecia uma criança nua, sem sexo, com unhas enormes, com pés assustadoramente estranhos e uma aura que quase me fez arrancar as contas do terço com os calafrios.
Não consegui gritar e nem sabia se um grito me colocaria em maior apuro. Ela arrodeou o meu corpo e, com a pouca luz que por ali se perdia, consegui ver que não tinha rosto, não tinha a pele do rosto, mas uma face mutilada, cadavérica, digna de uma criatura que tinha acabado de fugir do inferno. Era isso, só poderia ser isso... era um demônio, um enviado de Satanás para me atormentar, para me levar para o inferno.
A criatura ficou me encarando, tentou ficar ereta em minha frente. Eu já me esquecia do terço, eu já me esquecia de Deus, eu já esquecia de mim mesma... só me concentrava naquele olhar sem olhos, naquela rosto sem face, naqueles pés demoníacos, naquelas mãos com garras prontas a me agarrar e naquela mandíbula cheia de dentes para arrancar toda a minha carne magra de meus ossos que tremiam geladamente.
Não me agarrou, não me devorou... só me encarou. Corri.

sábado, 13 de junho de 2015

Pastor

– Pastor.
– Sim, meu filho.
– Eu estou com uma dúvida.
– Diga qual a sua inquietude. Deus me deu o dom da palavra e da revelação. Se for da Sua vontade, as suas dúvidas serão sanadas, Amém?
– Amém. – Pastor, eu não estou entendendo algumas coisas que estão na Bíblia... que estão ou não estão.
– Como assim, irmão?
– Os dinossauros, por exemplo. Não estão na Bíblia.
– Eles não existiram.
– Não?
– Não. Se não estão na Bíblia, não existiram.  
– Mas e os fósseis?
– Tudo obra do inimigo para tirar o seu foco em Jesus, Amém?
– Amém. – Mas e toda teoria evolucionista. Os cientistas discordam que o homem veio do barro.
– Também é mentira. Artimanhas do inimigo. Olha, irmão, você já viu macaco virar gente?
– Não, pastor.
– Então. Se macaco virasse gente, não teria mais macacos no mundo, Amém?
– Amém. – Mas, pastor, se Deus fez apenas Adão e Eva, e se todos os seres humanos são seus filhos, por que somos tão diferentes. Asiáticos são de um jeito, africanos de outro, europeus mais ainda... deveríamos ser mais iguais, não?
– Olha, irmão, o inimigo está te fazendo questionar a obra de Deus. Apesar de sua incredulidade, eu te respondo. Você tem filhos?
– Tenho.
– Eles são iguais?
– Não, mas são bem parecidos.
– Se você largar um de seus filhos num deserto africano e outro no inverno russo, eles ficarão parecidos depois de alguns anos?
– Não, pastor. Mas você acha que o que vai viver na África e, consequentemente, ter a pele queimada vai fazer netos mais morenos que o outro que ficou na Rússia?
– Mas é claro, irmão. Por que não fariam?
– Porque...
– Olha – o pastor interrompeu de súbito. – Você não dá o dízimo há dois meses, não é verdade? Por quê?
– Porque eu estou com algumas dúvidas sobre a minha fé, pastor.
– Como você quer que Deus te proteja do Diabo se você não é fiel no dízimo, irmão? Faça um propósito com Deus. Dê seu dízimo em dia... pode parcelar os atrasados no cartão... e faça uma oferta do tamanho que você deseja a sua fé. Te garanto, em o nome de Jesus, que você não vai mais ser atormentado pelo inimigo, Amém?
– Amém.


sexta-feira, 5 de junho de 2015

O palhaço assassino da Rua 417


Ilustração André Silva
           Morava na Rua 417 um palhaço muito engraçado que costumava fazer apresentações na porta de sua casa quando não estava em algum circo ou fazendo campanha para um supermercado ou loja de brinquedos chineses. Ele era muito querido por todos... uma das figuras mais cativantes e amistosas do bairro.
            Meninos e meninas sempre saíam da escolinha e passavam direto na Rua 417 para apertar a mão de Palhaço e assistir aos seus números de mágica e toda a sua palhaçada. Era sempre uma festa. Ninguém sabia quem ficava mais feliz com as visitas das crianças, que foram crescendo e, aos poucos, se esquecendo do palhaço que, já sem circo e sem muito ter onde se apresentar, ficava cada vez mais solitário.
            O que antes era alegria, motivo de acordar sorrindo e pensando num novo truque, numa nova piada, agora era motivador de raiva. Não podia mais ver uma criança, não podia mais ver alguém se divertindo que lhe batia uma ira incontrolável, mas ele não era um mal sujeito, ele queria trazer a verdadeira alegria àquele bairro novamente.
            – As pessoas hoje andam muito felizes... Antigamente, quando a situação financeira era pior, todos precisavam de mim... agora, qualquer criança pobre tem celulares modernos, videogames de última geração... Eles não são felizes de verdade...
            Palhaço começou a matutar um plano para acabar com a alegria das pessoas. Mas de que adiantaria extinguir com a felicidade alheia se ele continuaria amargurado, triste, solitário? Não era justo acabar com a felicidade alheia se isso não lhe daria nada em troca – Já sei! Preciso de piadas novas, de truques novos, de bordões modernos!
            O morador da casa mais colorida da Rua 417 começou a se atualizar... passou semanas lendo, assistindo aos vídeos de humor da moda, treinando novos truques de mágica. Ele sentia que estava pronto para voltar à ativa – mesmo que nunca tivesse saído. Estava pronto para fazer as pessoas rirem dele novamente... E ser o motivo da alegria dos outros era o que lhe proporcionava a felicidade.  
            Tudo pronto, vizinhos convidados, balas, doces, pirulitos coloridos. Naquele fim de tarde de sábado, Palhaço iria voltar com novidades e alegrar todo mundo novamente. Um carro de som passou pela manhã, mas, apesar disso, ninguém apareceu. Ninguém parecia precisar de um pouco de alegria. As crianças não se interessaram, os pais tinham equipamentos eletrônicos de ponta e uma assinatura de TV riquíssima. Por que iriam para um showzinho de Palhaço, o palhaço do fundo de quintal?
            Palhaço montou um plano. Ele mataria alguém do bairro. Dona Edilene era a mulher mais velha da vizinhança. Uma verdadeira matriarca que gerou muitos dos que fundaram a escola, a igreja e o posto de saúde. À noite, na calada, ele foi até a sua casa. A matou com um martelo colorido. Ela nem pode reagir no auge dos seus 99 anos. Tudo já estava programado para a festa do seu centésimo aniversário no mês seguinte. No entanto, a tristeza que tomou conta de todos foi muito passageira. Ninguém procuraria os serviços do palhaço do bairro por conta da morte de uma velha que já tinha passado da hora.
            Desta vez, ele faria o que achava mais certo. Matar uma velha já a beira da morte não tinha sido um bom plano. É certo que todos da região a amavam, mas daí a perder a capacidade de se alegrar por conta de uma senhora de quase cem anos é querer um pouco demais... se fossem crianças, se fosse uma tragédia... se fosse algo que acontecesse na igreja, no catecismo. Sim... agora, Palhaço tinha um plano.
            Foi, de fato, uma tragédia. Três crianças na primeira infância foram encontradas vítimas de morte violenta na creche do bairro. Saiu no RN TV, saiu no Jornal Nacional, saiu no Fantástico como nota. Comoção geral dos moradores do bairro em que ficava a Rua 417. Um conforto: Palhaço, o palhaço tinha anunciado há poucos dias um novo show com novas piadas, novos truques e bordões modernos. Passado o luto inicial, o mais dolorido, todos foram à Rua 417 comer balas, picolés e pirulitos que deixavam a língua azul. Toda vez que algo macabro acontecia, Palhaço tinha seus momentos de felicidade. Ele alegrava um pouco a vida de quem tivera sido marcado por alguma tragédia. 

sexta-feira, 29 de maio de 2015

O cheque em branco

Eu estava na fila do banco. Faltavam algumas pessoas para ser atendidas. Eu tremia. Estava com um cheque em branco do meu pai. Eu tremia. Aquilo era, de certa forma, errado, mas eu precisava pegar todo o dinheiro da conta corrente... raspar o tacho. Iria preencher ali na hora o valor todo. Eu tremia, temia, mas me continha... não iria deixar um centavo no banco.
Tinha 16 anos. Morava numa cidade pequena do interior de São Paulo. Todos me conheciam, sabiam que eu era responsável. Desde que meu pai tinha ficado doente, eu quem fazia todo serviço burocrático da casa. Ia no banco trocar os cheques, fazia as contas do mês, calculava o quanto tinha na dispensa e o que compensava mais comprar para a feira.
Meu pai já estava muito doente, e eu aprendi a falsificar sua assinatura. Ninguém percebeu. Eu ia ao banco todo mês pegar o dinheiro necessário para pagar as contas de casa. Mas naquele dia era diferente... eu iria pegar todo dinheiro da conta corrente, não iria deixar um centavo furado para contar história. Eu já estava cansado daquilo tudo!
A minha vez já estava chegando. Tinha umas três pessoas na milha frente na fila. Eu suava. Já sabia exatamente o que iria fazer com o dinheiro, já estava tudo planejado. Entreguei o cheque um pouco nervoso, mas contido. No caixa, a atendente me dava alguns cruzados novos; parado no semáforo em frente ao banco, o carro da funerária convidava os moradores da cidade para o enterro do meu pai ao som de Ave Maria Gounod.

terça-feira, 19 de maio de 2015

Tia Alcinéia


Tia Alcinéia foi a minha professora da alfabetização. Terminei o mestrado há pouco tempo e confesso que não me lembro de alguns professores. Mas de Tia Alcinéia, que me ensinou a codificar e decodificar o português há vinte anos, eu me lembro. Lembro muito bem, infelizmente.
Tia Alcinéia era baixinha, gorda, calva, com alguns dentes faltando e com os que sobravam meio podres. Ela era, como deveria ser toda alfabetizadora da época, extremamente tradicional. Tão tradicional que hoje eu conto os castigos que ela me passava aos meus alunos e eles não acreditam, acham que é coisa de desenho da Fox. Eu repetia, sempre que fazia algo errado, duzentas vezes na folha de ofício “Não devo fazer x coisa”. Não me lembro o que aprontava, não me lembro o que escrevia, mas lembro das lágrimas molhando o papel branco que o lápis fatalmente furava e eu tinha que passar tudo a limpo.
Tia Alcinéia me marcou... Certa vez, vendo tevê com minha mãe, apareceu uma mulher com este nome. Eu gelei. Já adulto. Gelei. – Lembra de Tia Alcinéia, Rodrigo? Que tomava seu refrigerante? – disse minha mãe. Não só me lembro como até hoje eu agradeço a quem seja lá que foi que me ensinou a abrir uma lata.
Tia Alcinéia era quem abria meu refrigerante. Os meus dedos, tadinhos, eram pequenos, eu não conseguia abrir a latinha. Tinha que pedir para a única pessoa com dedos fortes da turma: a professora. O problema é que, além de dedos fortes, ela tinha dentes podres e faltando, e ainda tinha um péssimo hábito: o de dar o primeiro gole.
– Tia Alcinéia está tomando meu refrigerante! – contei pra minha mãe. Ela foi lá, claro, reclamar... aprendi a reclamar com a minha mãe. Não sei se Tia Alcinéia ouviu o pedido ou simplesmente pararam de me mandar latas de refrigerante, mas de uma coisa eu sei e não esqueço. Este nome e uma saudade: Tia Alcinéia.