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segunda-feira, 20 de março de 2023

As férias de Cristo

 

 


Depois de muitos anos sem pisar na Terra, resolveu ir num lugar que não frequentava muito. Pegou a mochila, um mapa impresso e um casaco pesado. Queria ver as pinturas sobre ele de que tanto falavam.

– Museu grande da porra! Maior que muita igreja por aí! – pensou boquiaberto o Senhor.

Foi pegar um guia, tinha de um bocado de idioma, menos no seu. Quem liga para a língua de Jesus? ... Passou de sala em sala. Mirou. Achou estranho ser pintado como um homem bem branco, mesmo nascido no árido... Andava e revia o mesmo retrato de sua vida. Se via apenas como um signo, limitado.

 – Meu Senhor, chegou antes do previsto das férias?

– Pois é, Biel. A galera lá é muito esquisita. Só tem pintura minha sendo morto.

– Não é de se estranhar, Senhor Jesus! A Sua morte é simbólica para a Humanidade... marca seu tempo, sua moral...

– Sim, mas SÓ me pintam morrendo... no máximo ressuscitando. Fiz tanta coisa, mas só querem mostrar meu sangue, meus olhos, minha coroa de espinhos!

– E o que seria melhor que retratar a Salvação do Mundo?

  O quê? Fiz vinho do bom, multipliquei os pães, fiz o peixe ser compartilhado pelo povo, curei uma pá de gente e o só sabem me pintar morrendo?

– Não é sobre Sua morte, é sobre toda Sua vida!

– Ah, vá!

– E da igreja que Senhor queria ver, gostou?

– Não entrei. Tava muito caro o ingresso. Achei melhor gastar o dinheiro com cerveja.

 

Rodrigo Slama 20/03/23

*Imagem do Google 

sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Companheiro Ema e o Barba

 


Deu tudo certo, a festa foi linda e nenhum incidente que oferecesse algo além de mais vergonha aos famigerados e fundamentalistas lunáticos aconteceu. Dia 01 de janeiro de 2023. No relógio, já era dia 02, mas o dia só muda quando a gente dorme. E o Presidente – sim, sempre, ele, com P maiúsculo – não poderia dormir sem cumprir mais um ritual, improtocolado.

– Olá, meu velho amigo.

– Opa! Quanto tempo... Estava te esperando.

– Eu sei, Companheiro Ema, mas o dia hoje foi corrido. Vim pra cá assim que deu, sabe?

– Não tô falando de hoje, Barba. Você sabe o que eu e as outras Emas passamos?

– Mas, companheiro. Não dependia de mim!

– Tem menino novo aqui que acha que é mentira que aqui já teve morador legal. Eu conto as histórias e o pessoal nem lembra. Dos antigos, só fiquei eu.

– Sinto muito. Eu fiquei sabendo.

– Mas não veio aqui fazer uma visita.

– Eu não podia. Eu também fiquei preso por conta de todo esse golpe contra o país.

– Barba, a JurEma, minha esposa, morreu!

– Sinto muito. Sei o que você está sentindo.

– Sabe não, Barba! Você tá casado com uma gata. Eu já tô velho e ninguém daqui me quer.

– Eu vou mandar botar mais algumas emas fêmeas aqui no jardim.

– Não é sobre isso, cara. Você não tem noção!

– Eu tenho, companheiro. Estou aqui hoje para falar contigo. Eu poderia estar transando agora e tô aqui! – disse o Presidente sorrindo.

– Ah, vá. Mas não tem noção mesmo! O maluco queria me dar remédio de malária, meu irmão.

– Mas você fez muito bem em ter bicado ele, companheiro! – disse o Presidente meio cansado, mas rindo bastante com o reencontro.  

– Saiu no jornal, né?

– Saiu em tudo quanto é canto! Até eu que não tenho celular vi os memes.

– Ainda bem que alguém riu desta história – disse Ema claramente mais leve.

– Agora as coisas vão mudar. Vamos tomar cerveja e comer picanha, companheiro... e...

– Porra, Barba, tu vai meter esse papo carnista pra cima de mim?

– Desculpa, companheiro Ema. Vou mandar lá no cocho aquela ração premium que você gosta.

– Sério? – perguntou a ave extremamente animada.

– Claro, companheiro. Eu disse que a gente ia sorrir de novo.

– Verdade... tô rindo aqui e nem tenho dentes – disse Ema sorrindo.

– Vamos sorrir muito ainda, companheiro. Está só começando.

 

*Imagem do Google

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Rodrigo Slama 30/12/22

sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Futtobōru




Fazia tempo que os deuses japoneses não trabalhavam tanto. Quando a tecnologia, a civilidade e a educação dedicam-se ao avanço social, ópio deixa de ser eficaz. Mas em tempos de Copa do Mundo até o mais ateu acredita. Quando o assunto é futebol, não existe lógica, ideologia ou compaixão à dor alheia, restam o amor, o bairrismo e a fé.

A fé boa, neste caso, uma fé que quer a dor do outro apenas por levar alguns gols. É uma guerra sem mortos - sem contar os da construção dos campos -, sem sangue, sem espada ou tiro. Uma luta com o único objetivo de sorrir, apesar de tudo. - Pobre menino suíço, em pelo menos algo o Brasil tinha que ser melhor! Olha que Deus não seria brasileiro nem se pudesse escolher, ou melhor, sobretudo se pudesse escolher. 

As divindades que tocavam o Brasil - e são muitas! - estão há muito ocupadas com a miséria e o ódio para terem tempo de ver futebol. Daí quem trabalha na Copa, claro, são os deuses de quem tem barriga cheia e teto para morar. Certamente, os outros até tentam, mas são os dos abastados os que trabalham mesmo neste período. Uns só de quatro em quatro anos mesmo. Os do Brasil não. Pelo menos pra isso não precisamos de ajuda. Hachiman e Benzaiten, no entanto, faz tempo tomaram pra si a missão de alegrar seu povo, mesmo que a sociedade quase nunca precisasse deles. Pelos menos, pelo futebol, eram lembrados... Gostavam de se sentir úteis. 

Não, os seres que ouvem os costa-riquenhos não são mais poderoso. Tengu, Kannon, Amaterasu e todos os outros estavam era mesmo de ressaca naquele domingo de fim de novembro. Foram dias de festa. Ganhar da Alemanha não foi fácil... claro que vacilaram, mas compensariam contra a Espanha. Estes deuses, como seus fiéis, ainda são aprendizes, mas não arredavam da missão que aceitaram há poucas décadas mortais: os antepassados japoneses estão no caminho de conseguirem seu primeiro campeonato mundial de futebol. Para isso, pelo menos, eles têm motivação. Para mais nada são necessários naquela ilha oriental.


Rodrigo Slama 01/12/22

* Imagem do Google 


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quinta-feira, 24 de novembro de 2022

Do pó à luz

 




Eles conseguiram dar o golpe. Houve resistência, guerra civil. Lula morreu, Chuchu derreteu. Acabou. Havia 215 milhões aqui, não sobrou mais nada. Uma terra arrasada. O continente dizimado. Sobrou pouca coisa. Era melhor continuar num estado de exceção ou ter morrido todo mundo? Vai saber... Agora tudo é pó. Não existe mais nada, não há mais nada.

Anos passaram. O sol começou a aparecer. Alguns humanos começaram a retornar à superfície. Todo mundo apavorado. Todo mundo sem criticidade. Sobreviveu só a massa. Os intelectuais, líderes, políticos... todos morreram. Pareceria que o país fora fadado à extinção, não fossem os homens magros saídos das cavernas.

Aos poucos, todos se agruparam. Não tinha sobrado mesmo muito lugar pra viver. O que outrora o Sudeste, era apenas o centro... o que restou. Uma ilha sem vizinhos, sem floresta, sem qualquer coisa que lembre um país ou mesmo uma comunidade. Era apenas uma terra destruía, cercada de mato e nenhum fruto. Tudo um deserto de ervas daninhas e sobras de concreto e construções.

Não havia gente, quase. Uns morreram na guerra, outros pelo colapso da energia e do ar. Sobreviveram por quase duas décadas no submundo, nos esgotos, nos rincões. Alguns comeram carne humana, outros se restringiram a ratos e tatus. Sobreviveram, afinal, não se sabe por misericórdia ou maldade divina. Mas estavam de volta e conseguiram respirar.

Não demorou muito, veio o salvador. O mais velho, o único líder sobrevivente. A única pessoa que poderia tocar o Brasil em frente. Era ele, tinha que ser ele, era a vez dele. O que ele não pôde fazer antes, faria. Governaria o país pela escolha unânime dos sobreviventes. O golpe que motivou a guerra enfim mostrava a que vinha. Era a elite de volta ao poder. Era Minas de volta ao poder. Aécio Neves, presidente aos oitenta e dois anos.

 

Rodrigo Slama 24/11/22

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* Imagem do Google

sexta-feira, 18 de novembro de 2022

A Cartomante e o Cético

 



Casa de Tranca-Rua. Cartomante. Mãe Clara de Oyá.

Tinha sempre consulta. Tinha vezes em que nem desvirava para almoçar, diziam. Duvido. Duvido de tudo e fui ver, disse. Passei uns dias indo. A leitura das cartas não me pegaria como pegou Camilo. Não! Eu não me deixaria me envolver pelas palavras, promessas, amores e fama de lá. Mas voltei. Voltei em outros horários e forcei uma amizade. Nossa, fazia tempo que eu não conhecia gente nova, ela agradecia por ter alguém pra falar de macho, passear... essas coisas.

– Bicha, faz tanto tempo que não saio numa sexta ou num sábado.

– Bora, mulher. Bora tirar um dia de folga.

– Tenho compromisso com Dona Maria Padilha.

– Você tem é boleto, né, mulher?

– Como é?

– Nada não – disse se fazendo de besta.

O tempo passou, não disse o quanto. A gente foi ficando amigo. Ela um tempão chamando que queria ir pro samba no Beco da Lama. Mas já disse que não posso, que tenho psicólogo. Faz meses que tento trocar de horário, mas esse é o único. Enquanto eu fazia análise, Clara dava consulta. E eu justamente discuti isso naquela sessão. Já fazia meses que eu era ‘amigo’ daquela cartomante que eu já estava com pena da mulher. Ela não era má, era apenas meio doida, acreditando na própria mentira. De qualquer maneira, eu não queria lá e desmascarar a charlatã, só queria que ela suprisse suas carências de outras maneiras.

– Mãe Clara, olha só. Tava pensando aqui. Meu psicólogo tem um amigo pra indicar que também tem horário na quinta. Você num tava querendo deixar de atender na quinta de noite?

– É, mas eu quero parar da dar consulta pra ir pro samba, pro funk...

– Ah, mas então vá sozinha.

– Você sabe que não vou sem você.

– Então faz assim. Faz duas sessões de terapia e eu perco uma minha pra sair contigo.

– Num preciso de psicólogo!

– Tá, mas eu preciso, mulher.

Riram e marcaram as consultas. Foram ao Beco na terceira semana, mas ela tinha gostado da análise e retornou para um longo ciclo. Agora ela faz cursinho para o ENEM e está trabalhando numa loja de tecidos. A renda baixou muito, mas não tinha como continuar depois que acordou. Nada mais baixou, conseguia ver que enganava, quebrou a confiança. Ainda não despachou tudo, mas retirou o letreiro da vista do rio. Não era nem caso de psiquiatra não, tá vendo?, disse.

Quanto ao amigo, ele nunca mais pensou em desmascarar a amiga. Ele estava, justamente, trabalhando o fato de estar começando a se sentir mais conectado a algum tipo de energia. Mas tudo é energia, não? Somo matéria e matéria troca energia com o ambiente. Será que eu sou médium?, perguntava. Será que eu tirei Clara do caminho, da religião, doutor?


Rodrigo Slama, 18/11/2022


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*Imagem do Google