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quinta-feira, 5 de maio de 2022

Devolução, revolta, desordem – Deus, o Diabo e a Morte

 



– Javé! Javé, seu cretino! Abra logo essa porta!

– O que foi, cão do inferno? Me deixe em paz. A cada dois mil anos é isso... Não dá um tempo de paz!

– Javé, eu te liguei esses dias, em 2018 depois de Cristo, e você prometeu que ia resolver aquela bronca lá do babaca da Terra.

– E não resolvi?

– Resolveu, mas o filha da puta tá pra entrar lá em casa de novo.

– Lu – tentou, Deus, acalmar o amigo – Eu não tenho nada a ver com isso. Eu já disse que a Morte tem seus próprios planos... eu estou muito ocupado com essa merda de universo pra me preocupar com um infeliz lá da Terra.

– Porra, Javé! Cadê sua palavra?

– Para de me chamar de Javé, Lúcifer, você sabe que não gosto mais desse nome demodê.

– Vai pra uma porra, Deus! Eu não quero aquele arrombado lá em casa. O Adolf desde que chegou me perturba... Veio um tal de Olavo dia desses... puta-que-te-pariu! Num aguento mais essa vida, não!

– Já falei que não posso fazer nada. Sai daqui logo que tenho mais o que fazer... tô com um projeto de dinossauro não-orgânico aqui pra um planeta medíocre de Andrômada e eu estou empolgado.

– Porra nenhuma! O infeliz tá quase entrando e eu não quero!

– Caralho, Diabo, tua obrigação é abrigar uns cretinos... faça seu trabalho quieto!

– Não. Desta vez, não.

– Ah, vai dizer agora que vai se rebelar de novo? Toda era é isso agora?!

– Olha aqui, Javé. Se vira com esse B.O.... Eu mesmo não quero.

– Porra, eu devia ter te feito mortal... eu não te aguento e nem eu posso contigo. Olha, vou chamar a Morte aqui pra resolver isso agora.

 

– Chamou, meu Deus?

– Chamei, sim! Olha aqui, não mata o... Qual o nome do infeliz?

– Jair, Javé!

– Morte, não mata o Jair agora não o que o Cramunhão aqui não gosta dele e tá putinho comigo.

– Senhor, eu não posso adiar mais isso. Eu tenho uma lista enorme de tarefas a cumprir... O senhor sabe que nunca durmo e...

– Sim, eu sei... eu que te fiz, caralho!

– Desculpe, pai. Eu não quis dizer isso, é que...

– Olha, eu num quero esse puto lá em casa não.

– Satanás, se cale que eu vou resolver.

O Diabo, temeroso pela falta de resolução do seu problema, se calou desta vez.


– Morte, por favor, adia essa merda desse homem, por favor.

– Mas, senhor, eu já adiei demais!

– Quem manda nessa merda de Universo?

– O senhor, meu Deus.

– Então faz o que eu tô te mandando, caralho!

– Mas, meu pai, o senhor mesmo me criou para cumprir a minha missão. Eu já adiei muito esse trabalho e...

– Morte, tu não tá querendo obedecer a Deus, é isso? – retrucou o capiroto.

– Com licença, mas eu só devo satisfação ao meu pai.

– Uma porra! Quase todo mundo que você mata vai lá pra casa... eu num aguento mais um monte de alma sebosa, não, seu otário!

– Com licença, senhor Diabo, mas eu só devo me reportar a Deus.

– Então, porra! Faz o que tô te mandando. Não mata esse cara! – disse bem nervoso, o criador de tudo.

– Senhor, me perdoe, mas não posso cumprir esta ordem.

– Ah, fodeu mesmo! Outro rebelde! – disse Deus furioso enquanto o Diabo aguardava impaciente.

– Olha, Deus – disse a Morte. – Eu já estou cansada mesmo dessas ironias, dessas ordens. O senhor não quer, tudo bem? Não mato esse ser humano, mas também não vou mais matar ninguém! Estou entregando meu cargo.

– O quê?

– Isso mesmo, senhor! Me recuso a matar mais qualquer coisa da Terra. Estou me demitindo. Adeus.

A Morte, simplesmente, saiu da sala de reuniões do paraíso deixando tanto o Deus quanto o Diabo perplexos.

 

Rodrigo Slama, 05/05/22

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* Imagem do Google

quarta-feira, 20 de abril de 2022

Clandestino neon

 



– Cara, isso não vai dar certo.

– Mas eu quero, tô pagando!

– Nem tudo é questão de dinheiro. Você tem certeza do que quer fazer?

– Lógico! Tá me chamando de menino?

– Então, não costumo, mas você vai ter que assinar um termo de consentimento.

– Eu assino, porra! Só faz o que eu tô te pagando pra você fazer.

 

Sessão de um sábado inteiro. Fechamento de costas. Um trabalho filha da puta. Termo assinado, pix feito. O otário nem questionou o valor. Foda-se, babaca é pra se foder mesmo.

 

– Ô seu arrombado, o que você fez nas minhas costas?

– Oxente! A tatuagem de Bolsonaro que você pediu.

– Deixe de putaria, você sabe muito bem o que você fez.

– Sei, e daí?

– E daí que eu tô parecendo um palhaço agora. É só eu tá num canto escuro que todo mundo ri de mim, seu galado!

– E?

– E daí que eu vou te processar, seu merda!

– Mas você assinou um termo, tem até foto sua sorrindo depois da tatuagem... agradecimento no Instagram...

– Sim, mas não tava no acordo que você ia botar tinta neon nessa porra, não!

– Não posso fazer nada.

– O quê? Você vai tirar essa merda ou eu...

– Ou eu o que, palhaço? – disse o tatuador enquanto percebia seu segurança chegando mais perto e intimidando o feroz cliente.

– Eu... eu vou te processar!

– Processe!

– Olha... – o cara tava se fazendo de santo se mijando com medo do Armarinho, o segurança. – Quanto você quer para ajeitar esse negócio? Já procurei outros tatuadores, gente que remove tatuagem... todo mundo disse que não tem jeito... que essa sua técnica é exclusiva e ninguém pode fazer nada.

– Eu sei. Só eu sei trabalhar com essa tinta aqui no Brasil...

– Então, por favor, quanto você quer para apagar ou cobrir isso?

– Nada. Eu não vou mexer.

– Mas...

– Eu te avisei que nem tudo era por dinheiro... você assinou concordando que tudo que eu fizesse em você era responsabilidade sua e pedido seu. Não vou fazer nada!

– Por favor! – já se ajoelhando. – Todo mundo tá me zuando... tem foto minha rodando um monte de grupo de WhatsApp. Você precisa me ajudar!

– Eu preciso que você saia do meu estúdio que já já tá chegando cliente.  

– Me ajuda! Às vezes aparece até quando eu estou de camisa se ela for clara. Eu não posso viver com isso!

– Armarinho!

– Sim, chefe.

– Tira esse idiota daqui e não deixa mais ele entrar no prédio.

– Tá certo!


Rodrigo Slama 20/04/22

 * Imagem do Google 



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quarta-feira, 13 de abril de 2022

Não fazem sentido

 




– Um, dois, três, quadro...

– Quatro, três, dois, um!

– O Capitão já anda brocha...

–  E o Tenente aliviado!

– Um, dois, três, quadro...

– Quatro, três, dois, um!

– O General só quer picanha.

– O Major quer Leite Moça.

– Um, dois, três, quadro...

– Quatro, três, dois, um!

 

– O que tá acontecendo ali, Tenente? Que cantoria subversiva é essa?

– Capitão, os Soldados estão nervosos, senhor!

– Cadê a sua autoridade, Tenente?

– Já ameacei, senhor. Mas eles não me obedecem.

 

Tenente e Capitão foram até a tropa, que seguia rindo depois da corrida e se negava a arrancar os tocos do quartel.

 

– Atenção, pelotão. Sentido!

– Os soldados, os cabos e o Sargento olharam para o Tenente e começaram a rir.

– O que está acontecendo com vocês? Desde quando se negam a respeitar seu Tenente? – bradou o Capitão muito revoltado, mas sem saber como reagir àquela inédita rebelião.

– Ô Capitão, ninguém aqui tá mais a fim de obedecer não. A gente tá de saco cheio já.

– Viu, Capitão?!

– Todo mundo tá preso! Já para a cadeia!

– Ô Capitão, a gente não tá a fim, não.

– É, ninguém tá a fim de ser preso, não.

– É... vem prender a gente, Capitão.

– Vem nada... ele não tá prendendo nem o Tenente – disse o Sargento, que tirou risada de todo mundo e deixou o Capitão vermelho de raiva e o Tenente vermelho de vergonha.

 

Sem saber como reagir para que os praças obedecessem, o Capitão mandou fazer logo um churrasco com cerveja boa para todo mundo, não só mais para os oficiais. Tinha acabado de chegar um camião de produtos para o batalhão, presente de todo mês do presidente militar. O Tenente tomou seus comprimidos azuis, levou mais outros para o Capitão e foram para a caserna enquanto todo mundo se divertia comendo, bebendo e jogando futebol.


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Rodrigo Slama 13/04/22

domingo, 23 de janeiro de 2022

Só duzentos reais



 – Duzentos reais, vai querer?

– Porra, tá caro.

– Produto aqui é de primeira, tem procedência. Pode confiar.

– Não, tá caro. Faz por cem?

– Tá maluco? Tá achando caro vai reclamar no Procon!

– Cento e cinquenta, po...

– Mano, você é surdo ou analfabeto? É duzentos reais, se não quiser, vaza!

– Vou querer, mas tá caro.

– Cê tá me tirando?... Agora fodeu... cadê a grana?

– Tá aqui, pega!

 

O comprador atravessou a avenida e dobrou poucas ruas. Entrou num restaurante badalado do Jardins. Lá dentro, seus amigos o esperavam.

– Ué, como você entrou?

– Eu falei que dava um jeito.

– Tô vendo...

– Esse jeito foi caro?

– Nada... só duzentos reais.

– Pô, cara, vacina é de graça... se vacina logo.

– Podem me pagar, que eu não tomo vacina!

 

Todos riram e brindaram à coragem e a inteligência de Ricardo.

– Senhor – disse o garçom –, tem um problema com o seu passaporte vacinal.

– Que problema?

– Ele é falsificado. O senhor se vacinou?

– Claro! Vou tomar a terceira dose semana que vem.


Rodrigo Slama 23/01/22


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sábado, 18 de dezembro de 2021

Jesus Pistola - a (re)volta de Cristo

 




Mais um ano eterno se passando e Jesus tava pistola no céu. Puto, puto. Cansava de gritar reclamando da burrice humana. Burrice de quem demorou pra escrever suas palavras, burrice de quem interpreta suas palavras e a burrice ambiciosa de quem ensina suas palavras.

Era culto de Natal, seu aniversário, claro, num país de maioria cristã. Um estádio cheio em plena pandemia. Miguel, Gabriel, todo mundo lá que podia chegar perto dele não conseguiu impedir a fúria de um homem que foi conhecido por amar até seus assassinos. A situação tava demais pro Jesus, que já não era menino, suportar.

– Bora parar a palhaçada aí que eu tô puto! – disse Jesus, sem nem esperar a nuvem estacionar direito.

– Quem é você? – indagou nervoso o pastor vendo cada vez mais anjo se aproximando.

– Quem sou eu? Não é você mesmo quem passou a vida dizendo que era meu escolhido? – nada podia deixar Jesus mais estressado do que essa pergunta a essa hora.

– Jesus? Meu senhor! Veio nos arrebatar?

– Meu senhor uma porra! Arrebatar vocês? Eu quero é comer vocês na porrada!

A comunidade toda ouvia em alto e bom som o que Jesus dizia. Com sangue nos olhos e ódio no coração, ele discursava...

– Olha. Eu fico impressionado com esta nação, que é uma das mais ricas do mundo sim, mas não é a melhor! Tá todo mundo aí enfeitando árvore, botando luz piscante em casa, fazendo boneco de neve – tem gente que faz mesmo sem ter neve – e os caralho e vai dormir em paz porque ajudou com migalhas a fome de alguém! Eu falei pra vocês se amarem, pra vocês compartilharem o peixe e o pão... o que vocês fazem? Estocam vacina, fazem guerra, têm pena de morte legal e ilegal. Vocês andam todos armados e ninguém mais lê ou faz o que eu preguei. Ainda vêm dizer que são meus seguidores. Eu tô cansado!

– Meu senhor, nem todo mundo é assim!

– Quem é você com toda essa petulância pra querer saber mais do que quem é onisciente, alma sebosa?

Nesse momento, um monte já tinha desmaiado, outros choravam, outros tremiam e outros fugiam.

– Eu mandei vocês matarem em meu nome? Eu mandei vocês controlarem o livre-arbítrio das outras pessoas em meu nome? Eu mandei vocês gastarem mais com arma, foguete e carro elétrico do que ajudando os famintos, bando de escroto? Eu mandei vocês desmatarem as porras das florestas todas e acumularem riqueza, seus arrombados?

– Meu senhor Jesus, nos perdoe! O senhor tem bom coração!

– Mais um cavalo querendo me dizer o que tenho e o que não tenho – dizia com cada vez mais ódio no olhar. – Vou  resolver isso com um milagre que já fiz, mas um pouco diferente. Vou fazer o milagre a multiplicação, mas das balas.

Assim que terminou a fala, dois fuzis se materializaram em suas mãos. Rindo satisfatoriamente, Jesus ativou as armas de munições mágicas que acertavam a cabeça ou os corações dos hipócritas em todo o mundo. Gente de todo lugar teve a cabeça arrebentada, o coração perfurado. Muita gente morreu. Passado algum tempo – nada pra ele, mas muita coisa pra quem tá achando que vai morrer –, Jesus fez as armas desaparecerem. Seu ódio tinha sumido também. Lavado pelo sangue dos pecadores desarrependidos.

– Caros filhos – disse falando com todo mundo do mundo... todo mundo o via também. – Eu dei a vida por vocês dois mil anos atrás, mas vocês não souberam aproveitar este presente. Neste meu mais um aniversário, quem ganha o presente sou eu. Espero que vocês, sobreviventes, aproveitem mais esta dádiva que lhes dou. Aproveitem o mundo sem fascistas pra viverem seu paraíso. Vou deixar os corpos dos hipócritas aí pra vocês lembrarem de que é amando o próximo que se ganha a vida eterna. Feliz Natal.

 

Rodrigo Slama 18/12/21

*Imagem do Google