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quarta-feira, 14 de julho de 2021

O homem do intestino invertido

 


– Uma vez eu conheci um homem que tinha o intestino invertido.

– É o quê, criatura?

– Sim. Ele tinha o intestino invertido. Era tudo ao contrário ali.

– Como foi isso?

– Tinha sido atacado por uma ema. Eu nem sabia que emas podiam atacar alguém... mas são como galinhas gigantes, né? Às vezes, galinhas atacam mesmo. Daí, levaram o cara para o primeiro hospital que viram, né? Foda que o médico que tinha lá não entendia de ataque de emas... e dizem, a galera toda de lá, sabe?, que ele era viciado em remédio de malária. Passou um tempo, há muito tempo, lá no Norte... na falta de tóxico começou a tomar aquilo. Era o que tinha, né?  

– Homi, deixe de enrolagem e conta logo essa história!

– Sim... aí o médico lá, chega tinha a boca torta de tanto remédio de malária, viu o sujeito de bucho aberto. Tava uma coisa feia, tudo sujo, tudo cagado, tudo cheio de baba de ema...

– E danado galinha baba, caboco?

– Rapaz, foi minha prima enfermeira lá que disse que tava tudo uma nojeira.

– Sim... continue...

– Aí o médico não podia costurar daquele jeito, teve que tirar tudo pra lavar.

– Lavar?

– Tu quer saber a história ou não?

– Conte!

– Apois deixe!

– Vá, caba...

– Aí o médico tirou tudo pra lavar. Mas como ele tava muito doido de droga, costurou todo ao contrário.

– Costurou ao contrário?

– Foi. Daí o sujeito agora caga pela boca. Coisa horrível... um bafo da porra!

– E come por onde?

– Macho, se ele caga pela boca, tu acha que ele come por onde?

– Sério? Deixe de mentir...

– Rapaz, minha prima disse que ele tinha que tomar sopa por uma sonda no furico. Mas, depois de uns dias, já podia comer normal. Era só colocar que o cu mastigava e engolia.

– O cu mastigava?

– Ô se não... Esse caba gosta muito de comer galinha de capoeira, sabe? Aí ele come uma inteirinha. Bota numa cadeira e senta.

– O caba senta numa galinha e come com o cu?

– Tô dizendo... ainda digo mais... ele era magrinho, merminho um atleta, mas depois da operação ele tá é gordo... tá gostando mais de comer pelo boga.

– Já pensasse?

– Pior é aquilo, né? Quanto mais come, mais caga. E nem a esposa consegue mais ficar perto do caboco. Mas ele tá nem aí não... Henrique que é mais chegado me disse que ele passa mesmo o tempo é comendo... abacaxi, coalhada, manga rosa...

– Abacaxi?

– Sim... e digo mais... ele nem descasca.

 

Rodrigo Slama 14/07/21


*Imagem do Google


terça-feira, 23 de março de 2021

Lyudmila

 

Fazia dias que Ana não dormia direito. Parecia viajar, se desdobrar para uma guerra. Ela nem gostava de ver filme de guerra, nem muito de filme ela gostava. Acordava cedo todo dia. Molhava a calçada como se a escassez de água não fosse um problema. Geralmente, caminhava até a pracinha a três quadras de casa... ficava lá uns minutos e, às vezes, levava até um pãozinho duro pros pombos. O clima andava seco no Planalto central... se comprasse o pão de manhã ele já estava duro à tarde.

Em casa, todo dia ela, ela fazia pequenos serviços domésticos. Não mexia mais no fogão porque suas mãos não estavam tão firmes e há dois anos ela se queimou derramando água do macarrão. Lia um pouco, rezava a Prece de Cáritas e meditava para que o Dr. Bezerra de Menezes ajudasse a curar a pandemia no mundo e, principalmente, no Brasil. Kardecista e conservadora, Ana votou contra o PT nas eleições. Ela não aguentava mais a roubalheira. Não estava gostando muito do presidente que ela elegeu, mas... Na época seus netos tentaram avisá-la, no entanto votou como o filho, major do Exército, que se perguntava onde tinha errado para criar filhos comunistas.

Antes de dormir, nos últimos dias, rezava um Pai Nosso e pedia por bons sonhos. Conversava com seu mentor, fazia uma prece para o seu falecido marido e pedia auxílio para a pandemia mais uma vez. Talvez sonhar com guerra fosse saudades do companheiro falecido há mais de 15 anos. Ele era Coronel do exército e morreu de câncer no estômago. Ana acreditava que era um carma de uma vida passada.

Naquela noite, seu mentor apareceu em sonho. Disse que ela estava perto de concluir uma importante missão na Terra, uma missão em que ela se comprometeu antes mesmo de encarnar. Desde pequena, quando começou o contato com o mestre, ela sabia que certo dia ela deveria realizar um ato humanitário de extrema importância, mas nunca lhe foi revelado quando e nem o que deveria fazer.

Ao acordar, ela agradeceu com uma prece, vestiu roupas claras e foi, naturalmente, molhar a calçada da rua depois do café. Ela não gostava da máscara, bem que o presidente disse que se respira gás carbônico por ela... mas até que Ana estava usando direitinho nos últimos tempos, estava realmente difícil. Não levou pão seco desta vez, mas caminhou um pouco pela até a praça. Antes de chegar ao seu banco, sentiu sua consciência quase se esvaindo... botou a culpa na máscara. Ela, agora, iria cumprir sua missão.

Quando acordou, deitada no topo de um dos prédios ministeriais, Ana não reconheceu a pessoa do seu lado... muito menos os equipamentos ali. Ela estava segurando uma arma, uma arma grande, um rifle de precisão. O homem ao seu lado tinha em suas mãos binóculos e outros apetrechos. Naquela hora, confusa, tentou se levantar, mas se assustou com o som do helicóptero.

Ana se virou e levou um tiro a queima roupa no peito. Não sentiu dor, não sentiu medo. Chegou do outro lado e lá estavam o seu amado companheiro, com roupas que nada lembravam sua patente militar, seu mestre e mentor além de uma mulher com o rosto um pouco peculiar que ela não conhecia, mas que sentia conhecer. Esta mulher a abraçou e agradeceu. “Obrigado, minha irmã. Pelas suas mãos o 310° inimigo foi abatido. Vidas serão salvas na Terra”. Todos os meios de informação e desinformação do mundo se perguntavam como uma mulher de 85 anos sem treinamento militar algum e com certa dificuldade de movimentos conseguiu subir num prédio ministerial com armamento sofisticado e matar o presidente do Brasil com um tiro na cabeça.

 

Rodrigo Slama 23/03/21


Histórias inéditas em 

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quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Amarga Odontíase

 

 


Infelizmente, terminou a pandemia.

A gente já pode sair sem máscara. Ninguém usava mais máscara mesmo! Um bom bocado de vacina deu certo e logo a imunidade da população mundial chegou a padrões seguros. Enfim o normal voltava. O velho normal, com bar, escola, terreiro cheios. No Rio de Janeiro, as escolas de samba preparavam os carnavais, os maracatus ensaiavam em Pernambuco e o Amazonas prometia uma Festa de Boi como nunca se viu.

Mas Josefa se lamentava. Ninguém entendia direito e muito poucos desconfiavam. Pra ela, infelizmente, a pandemia tinha terminado.

Com quase sessenta anos e poucos pés de galinha, mais do que a sua melanina, a falta de sorriso contribuía para a economia de marcas de expressões no rosto. Desde a adolescência, se acostumou a pouco rir, a pouco chorar, a pouco manifestar qualquer sentimento. Na verdade, Maria Josefa tentava não alimentar nenhum sentimento... bom ou triste, alegre ou ruim, nada que sentia era manifesto... tudo guardado, embalado, escondido.  

Mas durante um ano, Josefa estava visivelmente mais alegre. Seus olhos sorriam. Até mais rugas apareciam. Gente parente que nunca tinha ouvido sua risada, acostumava-se, inicialmente com certa desconfiança, a reconhecer sua gargalhada.

“É falta da igreja”, disse um sobrinho ateu. “É nada, deve ter arrumado um pé de lã”, retrucou o marido covarde. “Gente, deixa ela. Ela só tá feliz”, respondeu a filha mais nova que fazia faculdade.

A felicidade, porém, estava ameaçada. A pandemia tinha acabado. Todo mundo saía sem máscara e Josefa tinha que sair assim também. Sem máscara, não sorria; sem máscara, tinha vergonha, sabe? Tinha vergonha.

Rodrigo Slama 14/10/20


Imagem do Google (Revista Exame) 

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Fake Plastic Dicks

 


Foi a pandemia.

Nunca gostei muito de computador, celular pra mim era pro básico. Pornografia então, jamais.

Mas foi a pandemia, eu juro!

Eu tinha um namorado, ficamos sem nos ver por quatro meses. No início, ah, no início foi duro, mas me acostumei. Me acostumei comigo, me acostumei com o sexo virtual, meus dedos, meus brinquedos que chegaram atrasados do Mercado Livre.

Aí todo mundo começou a relaxar. Estavam abrindo bares, estavam abrindo igrejas. Estavam, olha!... Estavam abrindo shoppings! Tu acha? Eu deveria encontrar o Maurício. Já eram cinco meses incompletos de isolamento. Eu nem sabia mais qual era o seu gosto. Nem meu gosto em sua barba, só meu gosto nos meus dedos.

Aqui em casa era foda. Meus pais, mesmo liberais, viviam em casa. E ainda tinha Vó Petra, não, na boa, não rola. E eu sabia que queria soltar todos os gritos e gemidos sufocados pelo isolamento. Na casa dele era foda, ele morava com o pai, bicho alcóolatra, sabe, rolava não.

Motel? Cê tá doido? Imagina se alguém infectado usa antes da gente. Não quero adoecer. Vovó é idosa, esqueceu.

Tá bem, tá bem. Vamos pro motel amanhã. Você passa aqui e me pega. Não, Maurício, não vou de Uber, você passa aqui no seu Uber e me pega já que seu pai bateu o carro. Não. Já disse que não vou pegar Uber sozinha pra ir pra motel. Não estou nem aí, o problema é seu.

Pernoitamos no motel. Foi uma merda. Acho que Maurício esqueceu como se trepa ou então fui eu. Ele gozou três vezes. Na terceira durou mais de meia hora, certeza, mas não faz diferença.

A gente ainda tentou outras vezes. Eu fui enrolando também. Disse que tava com Covid, disse que tava com enjoo, disse que tava com daltonismo.... Olha, eu enrolei como podia até não poder mais.

Acabou a pandemia, mas não quero saber de ninguém, na boa. Nem homem, nem mulher. Acho que fui eu, sabe. Acho que foi a pandemia.

Sim. Foi a pandemia.

- Maria Tereza, encomenda pra você!

Já vou, mãe. Peraí, não abre o pacote!

 

Rodrigo Slama  26/08/2020

quarta-feira, 22 de julho de 2020

Pastor 05 – Cloroquina e Deus



As igrejas abriram, mesmo com a pandemia. E o pastor não demorou para convocar os irmãos. Mandou avisar que seria expulso quem não fosse ao primeiro culto depois do decreto.

 

– Irmãos, graças a Deus, a governadora satanista derrubou o decreto que impedia a obra do senhor de continuar, amém?

– Amém! – respondeu a igreja em couro.

– Irmãos, podem retirar a máscara. Tenho aqui comigo um remédio abençoado para acabar com esse vírus chinês, amém?

Todos os seis fiéis que ainda se protegiam retiraram a máscara, menos o irmão desconfiado.

– Irmão, sempre você querendo questionar os mistérios de Deus. Venha aqui na frente, irmão. Venha aqui! – assim que o irmão chegou, o pastor colocou a mão em sua cabeça. – Me diga, abençoado, por que você ainda está com essa máscara?

– Porque o vírus ainda está circulando, pastor. Acho melhor mantê-la.

– Em o nome de Jesus, pode me entregar a máscara, amém.

– Pastor, o senhor me perdoe, mas eu acho melhor ficar com ela.

– Irmão, você está desafiando a ordem de Deus? Entregue a máscara e deixe de ouvir a voz do pai das trevas.

– Mas pastor, o senhor mesmo vendeu esta máscara abençoada pra gente dizendo que ela ia nos proteger.

– Então, protegeu. Você não pegou o vírus. Igreja, vamos glorificar o nome do Senhor Jesus, Amém?

– Amém! Aleluia! Glória a Deus!

– Ah, irmão. Olha como a igreja toda acredita no poder de Deus e você não... Além disso, aqui na igreja temos Cloroquina, santo remédio. Eu peço apenas uma contribuição de cem reais para ajudar com as despesas da obra de Deus. Amém?

– Amém!

– Mas pastor...

– Irmão, você novamente. Vai me dizer que além de não acreditar em Deus você não acredita na ciência dos homens de Deus também?

– Tá amarrado! – disseram duas ou três fiéis.

– Não é bem isso, pastor. Cloroquina é um medicamente para malária, que é causada por um parasita. Covid-19, como todo sabem, é causado pelo Corona vírus. Então, eu...

– Ah, irmão, você deve estar sofrendo a influência do 5G dos comunistas. Todo mundo, até o presidente, está tomando. Todo mundo pode tomar pra não pegar a doença.

– Mas, pastor, não há comprovação científica nenhuma de que o medicamento funcione, inclusive há casos de mortes relacionados ao mal uso da substância.

Enquanto alguns fiéis cochichavam, o pastor tirou a máscara do irmão e colocou as duas mãos em sua cabeça. Falando tanto quanto cuspia, pediu que os irmãos fizessem um círculo em volta do irmão. Todos colocaram as mãos em sua cabeça ou nos ombros de quem estava a sua frente. Oraram terrivelmente para que o diabo saísse do corpo do jovem rapaz.

– Abra a boca irmão, em nome de Jesus.

Assustado com tudo aquilo, o irmão abriu a boca. O pastor pegou dois comprimidos do medicamento e socou na goela do rapaz.

– Engula, vamos!... Isso. Amém, igreja! Nosso irmão agora está curado. Cada um de vocês tem que tomar dois comprimidos por dia. Recebam, após a oferta, uma caixa do remédio com a Pastora Graça, minha esposa. Levem duas. Parcelamos no cartão pra quem precisar.

Assustado o rapaz procurou sua máscara pra ir embora.

– Você não precisa mais de máscara, irmão. Vá e ande em nome de Jesus, Amém?

– Amém. Vou embora então.

– Já deixou sua oferta com a pastora Graça?

– Não, pastor. Não vou levar o medicamento.

– Vai sim, já até tomou a dose de hoje. Acerte com ela, amém? Que Deus te abençoe.


Leia as anteriores 


Pastor 04

Pastor 03

Pastor 02

Pastor 01

 

Rodrigo Slama 22/07/20