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sexta-feira, 2 de setembro de 2022

Laranja, verde, branco, números

 



 

Era uma novidade de mais de vinte anos. Uma esperança frágil, desconfiável de quase metade dos descidadãos. Poucos permaneciam marginalizados frente à escolha, quase pseudo, mas existente. Vinha de avião, canoa, escoltada. Ela vinha! Chegava em todo lugar, chegava onde não havia saúde, onde não havia lazer, onde não havia comida e onde, sobretudo, não há educação!

O tempo todo na TV até hoje. É fácil! Laranja, verde, branco, números, foto e letras. Uma antiga caixa conhecida e vítima de terraplanismo, mentira fundamentalista para manter o poder em marionetes, um poder pouquissimamente perfurado por uma base de boa vontade, mas de pouca instrução, pouca desconfiança e pouca credibilidade. Uma base vítima da desinformação, do desestudo dos milhões rejeitados e de quem projeta a permanência da miséria em todo futuro alheio.

Resistência! Símbolo de inclusão, modernidade, democracia. Para quem? Não para todos, claro, mas o melhor do que existe, melhor fruto do que o limitado cérebro primata conseguiu alcançar. Segura, o que há? Quem é ela? Quem ela guarda, o que ela guarda, o que nos aguarda? Ah... ela não chega, sonhamos, jamais um sonho perfeito, mas o fim do pior pesadelo de toda uma gênese, inédita a duas, algozmente legitimado pela nossa salvadora apunhalada por quem se sorriu jubileu no inverno eterno infernal da última geração.

Não sei, ninguém sabe. Toalhas não cantam, telefones não caminham às escolas. E o café clareia, o feião afina, e o coração aperta, a cana já não basta, até o futuro escureceu. Foi embora o lirismo, só versos e cenas de resistência aparecem nas telas. E é tanta tela que ninguém vive mais.

 

Rodrigo Slama 01/08/22

quarta-feira, 27 de julho de 2022

Macaco é uma porra!






Era mentira aquilo tudo do Instagram e da escola. Nunca vira estrela, era poeira da redoma, certeza. Apois, apostou na terraplanice militante. Globolóides que se cuidem, a farsa vai acabar! Em palavras de ódio, odiava a mentira.

Um religioso da ciência desacreditada. Entregava-se ao duro sacerdócio sem esperar dinheiro, mas apenas pela verdade. Nisso, era mais nobre que clérigos de multirreligiões. Seu canal bombava, suas redes eram supermovimentadas, mas ele gostava mesmo era de bater de porta em porta pregando a palavra de Deus, que é a palavra da verdadeira ciência, claro. Para ser verdadeiramente de Deus, era preciso abandonar as ilusões científicas manipuladoras.

Confiando cegamente no Global Position System, vulgo GPS, rodava as cidades vizinhas para fazer pregação. Seguidores fiéis juntavam as pessoas, arrumavam cadeiras... na maioria das vezes era preciso ter microfone e caixa de som. Muita gente levava Bíblia, mas ele não lia. Sua pregação era uma pregação da ciência inspirada por Deus.

– Boa noite, pessoal. Tudo que contaram pra vocês sobre o planeta é uma mentira! A Terra não é redonda!

O povo se olhava sem entender nada. O cara que juntou o pessoal não tinha explicado. Acharam que era um culto normal, mas não era? Apesar do burburinho, o empolgado pseudocientista continuou.

– Vocês acham que viemos do macaco? – perguntou e timidamente a plateia negou com a cabeça. – Vocês acham que o universo veio de uma explosão do nada ou foi Deus quem fez?

Nessa hora, ele ganhou a atenção do público. Ninguém quer vir do macaco. Parece que vir do barro é mais interessante. Enfim... o fato é que as pessoas ali, humildes e pouco escolarizadas, cansadas de uma vida de trabalho duro, explorador e pouco recompensatório queriam acreditar que, por algum motivo, eram especiais. Era melhor acreditar que foram escolhidos pelo criador do universo, se é que ele existe, para viverem uma vida sofrida e irem para o céu, do que terem o véu arrancado e perceberem que os homens é que os mantém assim, cativos economicamente. Isso é desde os tempos das cavernas gregas. A gente, humanidade, gosta de ser iludido, gosta de alienação, né? E essa de agora ultramoderna... peraí, que preciso rir.

 

***

 

– Olha, Francisca. Eu acho que aquele cara tem razão.

– Mas, mulher, tem tanta foto, tanto vídeo.

– Eu sei, mas ele disse que é manipulado. E outra, você veio do macaco?

– Eu sei lá de onde eu vim, eu vim de Santo Antônio – disse rindo, mas logo escondeu a risada porque a piada não agradou.

– Deixa de ser besta, criatura, eu tô falando sério. Olha o sapato da gente... ele num é reto?

  Olha, de tudo que ele falou, isso é o que eu fiquei mais pensando.

  Num é?! E você veio do macaco?

  Eu sei lá, mulher, já disse. Eu acho que a gente veio de Adão e Eva mesmo.

  Claro! Deus fez a Terra pra gente, tá na Bíblia, você acredita na Bíblia ou vai ficar acreditando em macaco?

  Você cismou com macaco, Severina. Macaco é uma porra!


*imagem da internet

*publicado em Pastor e outras histórias

quinta-feira, 26 de maio de 2022

Pastor 07 – Ocupação da Assembleia?

 


            Pré-campanha. A pandemia arrefeceu. Parece que a mostarda tinha conseguido salvar a maior parte dos fiéis do pastor. Um ou outro rebelde tinha saído, mas, agora, a igreja já estava cheia novamente. Quanto mais a barriga da população esvazia, mais a igreja é lembrada.

 Felizmente para o Pastor, muitos jovens estavam frequentando o sábado da mocidade. A estratégia de distribuir vinho ungido (uma parte de suco de uva, uma parte de água de torneira e uma parte de vinho barato) e deixar os adolescentes livres para utilizarem os instrumentos musicais parece ter funcionado. Agora, no entanto, a conta precisava ser paga.

– Gente, o pastor chegou. Muda a música pra um hino!

– Olá, mocidade. A paz, Amém!

– Amém, pastor! – disse a juventude em coro.

Um jovem obreiro, responsável pela da dispensa durante o culto jovem, foi convencido pelos outros a deixar o vinho ungido mais forte. Ora, se Jesus abençoou o vinho, por que eles deveriam diluí-lo bastante em água e suco de uva, certo?

– Irmãos, precisamos ter uma conversa. Eu vim aqui conversar com vocês sobre as eleições, amém?

– Amém, pastor.

– É o seguinte. Precisamos de todas as forças de Jesus para mantermos nosso presidente no poder. Os comunistas satanistas estão voltando. Lula, o anticristo, já está afrente do Capitão de Cristo. Mas eu tenho certeza em Cristo que todas essas pesquisas são compradas... Aqui no estado a sapatona também está na frente pro governo. Mentira também, mas precisamos nos unir para ocupar os cargos políticos em cristo, Amém.

– Amém, pastor.

– Hoje, mocidade. Eu recebi um chamado de Deus. Em sonho, Cristo me disse que precisava me usar para que sua obra na Terra fosse protegida e multiplicada. Jesus me escolheu pra ser Deputado. Amém?

– Amém, pastor. – disse a mocidade meio sem muita expectativa.

– Pastor? – levantou um jovem irmão do fundo da roda... ele tinha um violão na mão e usava uma camisa preta desbotada.

– Sim, irmãozinho. Qual a sua inquietude? Vejo que você é novo no grupo de jovens... Não sei se você sabe, mas Deus me deu o dom da palavra! Encontrarei a palavra certa para lhe consolar, Amém?

– Ah... Amém?! Então, o senhor vai se candidatar a Deputado Federal ou Estadual?

– Deputado Estadual pelo partido do presidente, amém? Vejo que o jovem irmão já está empolgado com a nossa jornada, certo?

– Não, pastor. Eu só não consigo entender qual a relação entre uma candidatura a Deputado Estadual e a defesa da obra de Deus na Terra.

– Ah, irmãozinho. Sabe o que mais Cristo me disse no encontro comigo? Que eu teria muitos percalços pelo caminho, que eu seria muito alvo do inimigo. Não achei que já ia começar logo cedo. Mas vamos lá, Amém? É o seguinte, o nosso presidente, presente de Deus, precisa de todo apoio. Houve muita reunião com os bispos e lideranças evangélicas e chegamos à conclusão que seria bom ocupar todos os espaços em o nome do senhor Jesus, Amém, mocidade.

– Amém! – a mocidade, já perdendo o brio alcoólico, respondeu num coro desensaiado.

– Mas, pastor. O Estado precisa ser separado da religião. Não acho certo sacerdotes ocuparem espaços públicos deste jeito.

– Você acha errado um homem de Deus ocupar uma cadeira na Câmara, irmão?

– Seria na Assembleia, pastor. Acho errado sim.

– Assembleia! Tá vendo, irmão. Até você concorda indiretamente que eu preciso estar lá, amém igreja.

– Amém, pastor! – a gurizada respondeu com um pouco mais de euforia.

– Não é nada disso, pastor. Mas, vamos lá. Quais as suas propostas?

– Já falei. Continuar fazendo a obra de Deus.

– Me desculpe, pastor. Mas isso não é proposta de Deputado.

– Como não? Vem cá, quem é você que eu nunca te vi aqui? Quem te trouxe?

– Fui eu, pastor – disse Mariana. – A gente estuda junto. Chamei ele pra conhecer a mocidade.

– E você trouxe ele pra cá sabendo que ele é um herege, irmã? – disse bravamente o pastor constrangendo a menina.

– Não sou herege coisa nenhuma, pastor. Sou nascido e criado do cristianismo. Por, justamente, conhecer a palavra de Deus eu acho que deve haver separação entre religião e Estado. As tribos de Israel, por exemplo...

– De que Igreja você é, irmão? Quem é seu pastor?

– Eu congrego com minha família na...

– Não, para. Nem precisa continuar. Estou sentindo o Espírito Santo aqui. Eu estou vendo, mocidade, a alma do nosso irmão está consumida pelo espírito maligno. Ele foi plantado aqui pelo pai da mentira para colocar vocês contra mim!

– Tá repreendido, em nome de Jesus! – bradou o jovem obreiro, já achando que a culpa de tudo era sua, por adulterar o ponche ungido da galera com mais vinho do que deveria.

– Por favor, enviado do Satanás, saia da minha igreja em o nome de Jesus.

O rapaz saiu. Levou uma garrafa de vinho e o violão da igreja. Ninguém reclamou. Mariana o seguiu. Fazia já um tempo que ela estava achando a igreja meio esquisita e já vinha cogitando sair apesar dos pais.

– Irmãos da mocidade, futuro da nossa congregação! – dizia o pastor para a juventude tentando se recompor. – Um filho do inimigo trazido à nossa casa de Deus por uma ovelha desgarrada quis plantar a semente da discórdia aqui. Mas vocês sabem que eu sou um enviado de Deus na Terra, Amém?

– Amém, pastor! – os jovens repetiram com mais vontade.

– Ele pode entender de violão e de garotas, mas de Assembleia eu entendo, Amém? Conto com vocês para me multiplicar os votos em mim assim como Jesus multiplicou o pão e os peixes, Amém igreja?

– Amém pastor!

– Louvado seja o nome do senhor Jesus! – disse o obreiro.

– Obreiro.

– Sim, pastor.

– Traga vinho ungido pra gente comemorar nossa candidatura com a mocidade, Amém?

– Pastor...

– Sim, irmão.

– Acabou o vinho.

– Acabou o vinho ungido?

– Acabou.

 

Rodrigo Slama 26/05/22

* Imagem do Google

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quinta-feira, 5 de maio de 2022

Devolução, revolta, desordem – Deus, o Diabo e a Morte

 



– Javé! Javé, seu cretino! Abra logo essa porta!

– O que foi, cão do inferno? Me deixe em paz. A cada dois mil anos é isso... Não dá um tempo de paz!

– Javé, eu te liguei esses dias, em 2018 depois de Cristo, e você prometeu que ia resolver aquela bronca lá do babaca da Terra.

– E não resolvi?

– Resolveu, mas o filha da puta tá pra entrar lá em casa de novo.

– Lu – tentou, Deus, acalmar o amigo – Eu não tenho nada a ver com isso. Eu já disse que a Morte tem seus próprios planos... eu estou muito ocupado com essa merda de universo pra me preocupar com um infeliz lá da Terra.

– Porra, Javé! Cadê sua palavra?

– Para de me chamar de Javé, Lúcifer, você sabe que não gosto mais desse nome demodê.

– Vai pra uma porra, Deus! Eu não quero aquele arrombado lá em casa. O Adolf desde que chegou me perturba... Veio um tal de Olavo dia desses... puta-que-te-pariu! Num aguento mais essa vida, não!

– Já falei que não posso fazer nada. Sai daqui logo que tenho mais o que fazer... tô com um projeto de dinossauro não-orgânico aqui pra um planeta medíocre de Andrômada e eu estou empolgado.

– Porra nenhuma! O infeliz tá quase entrando e eu não quero!

– Caralho, Diabo, tua obrigação é abrigar uns cretinos... faça seu trabalho quieto!

– Não. Desta vez, não.

– Ah, vai dizer agora que vai se rebelar de novo? Toda era é isso agora?!

– Olha aqui, Javé. Se vira com esse B.O.... Eu mesmo não quero.

– Porra, eu devia ter te feito mortal... eu não te aguento e nem eu posso contigo. Olha, vou chamar a Morte aqui pra resolver isso agora.

 

– Chamou, meu Deus?

– Chamei, sim! Olha aqui, não mata o... Qual o nome do infeliz?

– Jair, Javé!

– Morte, não mata o Jair agora não o que o Cramunhão aqui não gosta dele e tá putinho comigo.

– Senhor, eu não posso adiar mais isso. Eu tenho uma lista enorme de tarefas a cumprir... O senhor sabe que nunca durmo e...

– Sim, eu sei... eu que te fiz, caralho!

– Desculpe, pai. Eu não quis dizer isso, é que...

– Olha, eu num quero esse puto lá em casa não.

– Satanás, se cale que eu vou resolver.

O Diabo, temeroso pela falta de resolução do seu problema, se calou desta vez.


– Morte, por favor, adia essa merda desse homem, por favor.

– Mas, senhor, eu já adiei demais!

– Quem manda nessa merda de Universo?

– O senhor, meu Deus.

– Então faz o que eu tô te mandando, caralho!

– Mas, meu pai, o senhor mesmo me criou para cumprir a minha missão. Eu já adiei muito esse trabalho e...

– Morte, tu não tá querendo obedecer a Deus, é isso? – retrucou o capiroto.

– Com licença, mas eu só devo satisfação ao meu pai.

– Uma porra! Quase todo mundo que você mata vai lá pra casa... eu num aguento mais um monte de alma sebosa, não, seu otário!

– Com licença, senhor Diabo, mas eu só devo me reportar a Deus.

– Então, porra! Faz o que tô te mandando. Não mata esse cara! – disse bem nervoso, o criador de tudo.

– Senhor, me perdoe, mas não posso cumprir esta ordem.

– Ah, fodeu mesmo! Outro rebelde! – disse Deus furioso enquanto o Diabo aguardava impaciente.

– Olha, Deus – disse a Morte. – Eu já estou cansada mesmo dessas ironias, dessas ordens. O senhor não quer, tudo bem? Não mato esse ser humano, mas também não vou mais matar ninguém! Estou entregando meu cargo.

– O quê?

– Isso mesmo, senhor! Me recuso a matar mais qualquer coisa da Terra. Estou me demitindo. Adeus.

A Morte, simplesmente, saiu da sala de reuniões do paraíso deixando tanto o Deus quanto o Diabo perplexos.

 

Rodrigo Slama, 05/05/22

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* Imagem do Google

quarta-feira, 20 de abril de 2022

Clandestino neon

 



– Cara, isso não vai dar certo.

– Mas eu quero, tô pagando!

– Nem tudo é questão de dinheiro. Você tem certeza do que quer fazer?

– Lógico! Tá me chamando de menino?

– Então, não costumo, mas você vai ter que assinar um termo de consentimento.

– Eu assino, porra! Só faz o que eu tô te pagando pra você fazer.

 

Sessão de um sábado inteiro. Fechamento de costas. Um trabalho filha da puta. Termo assinado, pix feito. O otário nem questionou o valor. Foda-se, babaca é pra se foder mesmo.

 

– Ô seu arrombado, o que você fez nas minhas costas?

– Oxente! A tatuagem de Bolsonaro que você pediu.

– Deixe de putaria, você sabe muito bem o que você fez.

– Sei, e daí?

– E daí que eu tô parecendo um palhaço agora. É só eu tá num canto escuro que todo mundo ri de mim, seu galado!

– E?

– E daí que eu vou te processar, seu merda!

– Mas você assinou um termo, tem até foto sua sorrindo depois da tatuagem... agradecimento no Instagram...

– Sim, mas não tava no acordo que você ia botar tinta neon nessa porra, não!

– Não posso fazer nada.

– O quê? Você vai tirar essa merda ou eu...

– Ou eu o que, palhaço? – disse o tatuador enquanto percebia seu segurança chegando mais perto e intimidando o feroz cliente.

– Eu... eu vou te processar!

– Processe!

– Olha... – o cara tava se fazendo de santo se mijando com medo do Armarinho, o segurança. – Quanto você quer para ajeitar esse negócio? Já procurei outros tatuadores, gente que remove tatuagem... todo mundo disse que não tem jeito... que essa sua técnica é exclusiva e ninguém pode fazer nada.

– Eu sei. Só eu sei trabalhar com essa tinta aqui no Brasil...

– Então, por favor, quanto você quer para apagar ou cobrir isso?

– Nada. Eu não vou mexer.

– Mas...

– Eu te avisei que nem tudo era por dinheiro... você assinou concordando que tudo que eu fizesse em você era responsabilidade sua e pedido seu. Não vou fazer nada!

– Por favor! – já se ajoelhando. – Todo mundo tá me zuando... tem foto minha rodando um monte de grupo de WhatsApp. Você precisa me ajudar!

– Eu preciso que você saia do meu estúdio que já já tá chegando cliente.  

– Me ajuda! Às vezes aparece até quando eu estou de camisa se ela for clara. Eu não posso viver com isso!

– Armarinho!

– Sim, chefe.

– Tira esse idiota daqui e não deixa mais ele entrar no prédio.

– Tá certo!


Rodrigo Slama 20/04/22

 * Imagem do Google 



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