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sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Futtobōru




Fazia tempo que os deuses japoneses não trabalhavam tanto. Quando a tecnologia, a civilidade e a educação dedicam-se ao avanço social, ópio deixa de ser eficaz. Mas em tempos de Copa do Mundo até o mais ateu acredita. Quando o assunto é futebol, não existe lógica, ideologia ou compaixão à dor alheia, restam o amor, o bairrismo e a fé.

A fé boa, neste caso, uma fé que quer a dor do outro apenas por levar alguns gols. É uma guerra sem mortos - sem contar os da construção dos campos -, sem sangue, sem espada ou tiro. Uma luta com o único objetivo de sorrir, apesar de tudo. - Pobre menino suíço, em pelo menos algo o Brasil tinha que ser melhor! Olha que Deus não seria brasileiro nem se pudesse escolher, ou melhor, sobretudo se pudesse escolher. 

As divindades que tocavam o Brasil - e são muitas! - estão há muito ocupadas com a miséria e o ódio para terem tempo de ver futebol. Daí quem trabalha na Copa, claro, são os deuses de quem tem barriga cheia e teto para morar. Certamente, os outros até tentam, mas são os dos abastados os que trabalham mesmo neste período. Uns só de quatro em quatro anos mesmo. Os do Brasil não. Pelo menos pra isso não precisamos de ajuda. Hachiman e Benzaiten, no entanto, faz tempo tomaram pra si a missão de alegrar seu povo, mesmo que a sociedade quase nunca precisasse deles. Pelos menos, pelo futebol, eram lembrados... Gostavam de se sentir úteis. 

Não, os seres que ouvem os costa-riquenhos não são mais poderoso. Tengu, Kannon, Amaterasu e todos os outros estavam era mesmo de ressaca naquele domingo de fim de novembro. Foram dias de festa. Ganhar da Alemanha não foi fácil... claro que vacilaram, mas compensariam contra a Espanha. Estes deuses, como seus fiéis, ainda são aprendizes, mas não arredavam da missão que aceitaram há poucas décadas mortais: os antepassados japoneses estão no caminho de conseguirem seu primeiro campeonato mundial de futebol. Para isso, pelo menos, eles têm motivação. Para mais nada são necessários naquela ilha oriental.


Rodrigo Slama 01/12/22

* Imagem do Google 


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quinta-feira, 24 de novembro de 2022

Do pó à luz

 




Eles conseguiram dar o golpe. Houve resistência, guerra civil. Lula morreu, Chuchu derreteu. Acabou. Havia 215 milhões aqui, não sobrou mais nada. Uma terra arrasada. O continente dizimado. Sobrou pouca coisa. Era melhor continuar num estado de exceção ou ter morrido todo mundo? Vai saber... Agora tudo é pó. Não existe mais nada, não há mais nada.

Anos passaram. O sol começou a aparecer. Alguns humanos começaram a retornar à superfície. Todo mundo apavorado. Todo mundo sem criticidade. Sobreviveu só a massa. Os intelectuais, líderes, políticos... todos morreram. Pareceria que o país fora fadado à extinção, não fossem os homens magros saídos das cavernas.

Aos poucos, todos se agruparam. Não tinha sobrado mesmo muito lugar pra viver. O que outrora o Sudeste, era apenas o centro... o que restou. Uma ilha sem vizinhos, sem floresta, sem qualquer coisa que lembre um país ou mesmo uma comunidade. Era apenas uma terra destruía, cercada de mato e nenhum fruto. Tudo um deserto de ervas daninhas e sobras de concreto e construções.

Não havia gente, quase. Uns morreram na guerra, outros pelo colapso da energia e do ar. Sobreviveram por quase duas décadas no submundo, nos esgotos, nos rincões. Alguns comeram carne humana, outros se restringiram a ratos e tatus. Sobreviveram, afinal, não se sabe por misericórdia ou maldade divina. Mas estavam de volta e conseguiram respirar.

Não demorou muito, veio o salvador. O mais velho, o único líder sobrevivente. A única pessoa que poderia tocar o Brasil em frente. Era ele, tinha que ser ele, era a vez dele. O que ele não pôde fazer antes, faria. Governaria o país pela escolha unânime dos sobreviventes. O golpe que motivou a guerra enfim mostrava a que vinha. Era a elite de volta ao poder. Era Minas de volta ao poder. Aécio Neves, presidente aos oitenta e dois anos.

 

Rodrigo Slama 24/11/22

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sexta-feira, 18 de novembro de 2022

A Cartomante e o Cético

 



Casa de Tranca-Rua. Cartomante. Mãe Clara de Oyá.

Tinha sempre consulta. Tinha vezes em que nem desvirava para almoçar, diziam. Duvido. Duvido de tudo e fui ver, disse. Passei uns dias indo. A leitura das cartas não me pegaria como pegou Camilo. Não! Eu não me deixaria me envolver pelas palavras, promessas, amores e fama de lá. Mas voltei. Voltei em outros horários e forcei uma amizade. Nossa, fazia tempo que eu não conhecia gente nova, ela agradecia por ter alguém pra falar de macho, passear... essas coisas.

– Bicha, faz tanto tempo que não saio numa sexta ou num sábado.

– Bora, mulher. Bora tirar um dia de folga.

– Tenho compromisso com Dona Maria Padilha.

– Você tem é boleto, né, mulher?

– Como é?

– Nada não – disse se fazendo de besta.

O tempo passou, não disse o quanto. A gente foi ficando amigo. Ela um tempão chamando que queria ir pro samba no Beco da Lama. Mas já disse que não posso, que tenho psicólogo. Faz meses que tento trocar de horário, mas esse é o único. Enquanto eu fazia análise, Clara dava consulta. E eu justamente discuti isso naquela sessão. Já fazia meses que eu era ‘amigo’ daquela cartomante que eu já estava com pena da mulher. Ela não era má, era apenas meio doida, acreditando na própria mentira. De qualquer maneira, eu não queria lá e desmascarar a charlatã, só queria que ela suprisse suas carências de outras maneiras.

– Mãe Clara, olha só. Tava pensando aqui. Meu psicólogo tem um amigo pra indicar que também tem horário na quinta. Você num tava querendo deixar de atender na quinta de noite?

– É, mas eu quero parar da dar consulta pra ir pro samba, pro funk...

– Ah, mas então vá sozinha.

– Você sabe que não vou sem você.

– Então faz assim. Faz duas sessões de terapia e eu perco uma minha pra sair contigo.

– Num preciso de psicólogo!

– Tá, mas eu preciso, mulher.

Riram e marcaram as consultas. Foram ao Beco na terceira semana, mas ela tinha gostado da análise e retornou para um longo ciclo. Agora ela faz cursinho para o ENEM e está trabalhando numa loja de tecidos. A renda baixou muito, mas não tinha como continuar depois que acordou. Nada mais baixou, conseguia ver que enganava, quebrou a confiança. Ainda não despachou tudo, mas retirou o letreiro da vista do rio. Não era nem caso de psiquiatra não, tá vendo?, disse.

Quanto ao amigo, ele nunca mais pensou em desmascarar a amiga. Ele estava, justamente, trabalhando o fato de estar começando a se sentir mais conectado a algum tipo de energia. Mas tudo é energia, não? Somo matéria e matéria troca energia com o ambiente. Será que eu sou médium?, perguntava. Será que eu tirei Clara do caminho, da religião, doutor?


Rodrigo Slama, 18/11/2022


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quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Pastor 8 - Patriota de ocasião

 



– Irmãos, vamos orar pelo novo presidente. Deus escreve certo por linhas tortas. Tudo o que acontece é por vontade divina, amém?

– Amém! – disse a igreja em coro.

– Pastor?

– Sim, irmão. Diga a sua dúvida porque hoje Deus está falando comigo mais do que o normal, amém, igreja?

– Amém!

– Pastor, o senhor me desculpe, mas a gente fez setenta e sete dias de jejum pra reeleger o mito e agora a gente vai rezar pro nove dedos?

– Sim, irmão! – disse firmemente o pastor para espanto dos cochichos que ratificavam a razão do irmão.

– Por quê?

– Olha só, irmão. Você está duvidando da vontade de Deus?

– Claro que não, pastor. Mas a gente agora vai ter que orar pra bandido?

Cochichos e mais cochichos se espalharam pelo salão. A igreja estava quase cheia, exceto por alguns membros que foram pedir ajuda dos militares nas ruas da cidade. O pastor não concordava com isso... A igreja tem fazenda, vende muita coisa... tem lavanderia também... muito investimento. Tudo para ajudar na obra do senhor, segundo.

– Nos tempos de Cristo, a população também escolheu Barrabás. O povo é assim. Gosta de bandido.

– Sim, e nós vamos ter que aturar isso orando? A gente devia ir pro quartel junto com os outros irmãos!

 A igreja não sabia a quem apoiar. O irmão estava certo para eles, errados, mas o pastor era o pastor. Apesar de errado, era pastor. Mas é aquilo, né? É demais esperar coerência de neopentecostal. É sacanagem com o gado, eles bugam!

– A gente vai orar para que ele não feche nossas igrejas e não transforme os banheiros das escolas em lugar de pedofilia, amém? A gente vai continuar lutando contra o inimigo. O Diabo só está preso até hoje porque a gente ora para ele fique preso, amém?

– Amém, pastor! Tá amarrado, em nome de Jesus.

– Eu não aceito orar para aquele ladrão. Eu quero que as forças armadas botem os tanques nas ruas e mate ele, amém.

– Amém! – disse a igreja, sem refletir.

– Se ele morrer, quem assume é Alckmin, não ajuda em nada e o tinhoso ainda vira herói e a petralhada nunca mais sai do poder.

– Tá amarrado! Tá repreendido!

– Pastor, eu não vou ficar aqui orando por Luladrão não, eu vou pra rua lutar pela nossa liberdade, por Deus e pela família!

– Eu também vou! – gritou um adolescente que estava com a camisa da CBF por debaixo do terno barato.

– Virou rebelião agora? Isso é coisa de comunista! – gritou o pastor quase perplexo.

– Tá amarrado!

Sem que precisasse mandar, os demais irmãos cercaram o irmão rebelde, estiraram as mãos e começaram a bater os pés direitos fortemente contra o chão enquanto gritavam palavras de ordem na intenção de expulsar um demônio. Não existia demônio algum naquele corpo desalmado. Porém, maluco, é que o cara ficou puto, e com certa razão. O próprio pastor dele e os irmãos ali rezando contra ele e a favor do Lula, na sua cabeça. Emputeceu-se. Saiu da igreja, entrou na sua caminhonete importada e arrebentou o portão da frente acertando três irmãs e uma estátua – pois é! – de Abraão que tinha na entrada do templo... rasgou até a bandeira de Israel que envolvia a escultura.

Entre os membros da igreja tinha de toda gente. Dois policiais que estavam no culto armados contiveram o irmão, que gritou: – Fariseus! Patriotas de ocasião! Vocês estão virando as costas para o mito, para Deus, para a liberdade e para a família!

As palavras pareceram pesar. Desde a unificação da Itália é assim. O fascio é inquebrável, mas combatível.  Parte da igreja pediu misericórdia. O pastor mandou soltar o irmão. Rapidamente, chegou uma ambulância para os feridos. Ninguém prestou queixa. Hoje não tem culto. O pastor liberou os irmãos para irem para a porta do quartel, mas tá passando lá pra levar a palavra, rezar pra muro e pneu e pegar as doações, afinal, agora que Lula tá podendo fechar igreja, as doações são ainda mais importantes. O dízimo já tinha sido ajustado pra 22% desde agosto. Todos concordaram. Quem não pode pagar tá indo mais vezes a igreja para fazer uma faxina, preparar uma comida gostosa pros obreiros ou emprestar uma menina bonita pro pastor.


Rodrigo Slama 16/11/22

*Imagem do Google


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terça-feira, 25 de outubro de 2022

Entre loucos e cachorros: esperança

 


Era uma terra de loucos. Loucos de pedra, que atiravam na lei com granadas.
Era uma terra de loucos. Ponto. E mais um ponto.

 

– Mano, como eu tô ansioso pra domingo!

– O que tem domingo, viado? – perguntou Miguel.

– Eleição no Brasil. Segundo turno.

– Eleição onde, cara?

– No Brasil, pô. Lá na Terra!

– Quem liga pra Terra atualmente?

– Ué? Tem canto mais legal pra gente se preocupar?

– A Terra é um absurdo, Yesalel. Há pelo menos mil anos ninguém daqui nem sabe notícias de lá.

– Mas, Miguel, tá um pandemônio lá no Brasil, na Terra.

– Diabo de pandemônio? Demônio já era. Nem ele mesmo quer saber dele. Já virou lenda demais.

– Eu sei que o senhor e o resto do pessoal já saturou. Mas o universo anda perfeitamente calmo. A única emoção genuína vem da Terra.

– Cara, a Terra já era há muito tempo! Nem sabia que ainda existia... A gente deixou pra traz faz uma era! Os caras lá escolheram um bandido, macho. Pai num quer mais saber de lá, não. Entre todos os lugares em que Javé se fez carne, lá foi o pior. A Terra não merece nada da gente, não! Vai arrumar o que fazer!

– Desculpe-me, senhor. Mas tem gente boa na Terra.

– Não vês a petulância paradoxal do que dizes? Se é gente não pode ser boa! Não aprendeu nada nestes séculos e séculos de invento em vida?

– Mas tem, realmente, gente boa lá.

– Eles não sabem o que é bondade!

– Alguns sabem.

– Agora pronto. Eu agora tô errado!

– Não quis dizer isso, senhor.

– Mas foi justamente o que você disse, Yesalel!

– Me perdoe, Miguel, mas, realmente, tenho apreço pelos homens.

– Você tem apreço por coisas inúteis!

Neste momento, Yesalel se perdeu na sua visão da Terra.

– Tá vendo, nem percebe o que eu tô falando! – disse o comandante de todo exército divino, Senhor de todos os soldados de todos os universos.

– Desculpe, senhor general. Me distraí com esse cachorrinho caramelo brincando com a moto?

– Cachorro?

– É! Olha só!

Miguel parou um segundo em sua existência infinita e admirou um cachorro sem raça definida correndo atrás de uma motocicleta. O cachorrinho não queria derrubar o motociclista. Apenas queria correr junto a quem conseguisse alcançar o vigor de suas quatro patas. O cão se ria sozinho pacificamente.

– Isso é na Terra? – Perguntou Miguel.

– É sim! Lá no Brasil.

– Nunca ouvi falar do Brasil. O que tem lá?

– Tem um escroto no poder. Mas parece que sai no próximo domingo.

– Sempre tem escrotos no poder... Tanto aqui quanto lá. Mas diz... esse cara que lá governa gosta de cachorro?

– Gosta não, senhor. Nem de cachorro, nem de gente... não gosta de nada que tenha beleza, inocência ou remeta à esperança.

– Qual o nome desse ditador?

– Jair Messias, senhor.

– Messias?

– Sim, messias.

– Domingo é quando?

– Em cinco dias humanos.

– Só?

– Sim.

– Tá bem. Vou lá. Mas não é pelos homens, Yesalel.

– Gostou do cachorrinho.

– Muito!


* Imagem do Google

Rodrigo Slama, com esperança e sem medo de ser feliz 
25/10/22