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quarta-feira, 13 de abril de 2022

Não fazem sentido

 




– Um, dois, três, quadro...

– Quatro, três, dois, um!

– O Capitão já anda brocha...

–  E o Tenente aliviado!

– Um, dois, três, quadro...

– Quatro, três, dois, um!

– O General só quer picanha.

– O Major quer Leite Moça.

– Um, dois, três, quadro...

– Quatro, três, dois, um!

 

– O que tá acontecendo ali, Tenente? Que cantoria subversiva é essa?

– Capitão, os Soldados estão nervosos, senhor!

– Cadê a sua autoridade, Tenente?

– Já ameacei, senhor. Mas eles não me obedecem.

 

Tenente e Capitão foram até a tropa, que seguia rindo depois da corrida e se negava a arrancar os tocos do quartel.

 

– Atenção, pelotão. Sentido!

– Os soldados, os cabos e o Sargento olharam para o Tenente e começaram a rir.

– O que está acontecendo com vocês? Desde quando se negam a respeitar seu Tenente? – bradou o Capitão muito revoltado, mas sem saber como reagir àquela inédita rebelião.

– Ô Capitão, ninguém aqui tá mais a fim de obedecer não. A gente tá de saco cheio já.

– Viu, Capitão?!

– Todo mundo tá preso! Já para a cadeia!

– Ô Capitão, a gente não tá a fim, não.

– É, ninguém tá a fim de ser preso, não.

– É... vem prender a gente, Capitão.

– Vem nada... ele não tá prendendo nem o Tenente – disse o Sargento, que tirou risada de todo mundo e deixou o Capitão vermelho de raiva e o Tenente vermelho de vergonha.

 

Sem saber como reagir para que os praças obedecessem, o Capitão mandou fazer logo um churrasco com cerveja boa para todo mundo, não só mais para os oficiais. Tinha acabado de chegar um camião de produtos para o batalhão, presente de todo mês do presidente militar. O Tenente tomou seus comprimidos azuis, levou mais outros para o Capitão e foram para a caserna enquanto todo mundo se divertia comendo, bebendo e jogando futebol.


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Rodrigo Slama 13/04/22

domingo, 23 de janeiro de 2022

Só duzentos reais



 – Duzentos reais, vai querer?

– Porra, tá caro.

– Produto aqui é de primeira, tem procedência. Pode confiar.

– Não, tá caro. Faz por cem?

– Tá maluco? Tá achando caro vai reclamar no Procon!

– Cento e cinquenta, po...

– Mano, você é surdo ou analfabeto? É duzentos reais, se não quiser, vaza!

– Vou querer, mas tá caro.

– Cê tá me tirando?... Agora fodeu... cadê a grana?

– Tá aqui, pega!

 

O comprador atravessou a avenida e dobrou poucas ruas. Entrou num restaurante badalado do Jardins. Lá dentro, seus amigos o esperavam.

– Ué, como você entrou?

– Eu falei que dava um jeito.

– Tô vendo...

– Esse jeito foi caro?

– Nada... só duzentos reais.

– Pô, cara, vacina é de graça... se vacina logo.

– Podem me pagar, que eu não tomo vacina!

 

Todos riram e brindaram à coragem e a inteligência de Ricardo.

– Senhor – disse o garçom –, tem um problema com o seu passaporte vacinal.

– Que problema?

– Ele é falsificado. O senhor se vacinou?

– Claro! Vou tomar a terceira dose semana que vem.


Rodrigo Slama 23/01/22


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sábado, 18 de dezembro de 2021

Jesus Pistola - a (re)volta de Cristo

 




Mais um ano eterno se passando e Jesus tava pistola no céu. Puto, puto. Cansava de gritar reclamando da burrice humana. Burrice de quem demorou pra escrever suas palavras, burrice de quem interpreta suas palavras e a burrice ambiciosa de quem ensina suas palavras.

Era culto de Natal, seu aniversário, claro, num país de maioria cristã. Um estádio cheio em plena pandemia. Miguel, Gabriel, todo mundo lá que podia chegar perto dele não conseguiu impedir a fúria de um homem que foi conhecido por amar até seus assassinos. A situação tava demais pro Jesus, que já não era menino, suportar.

– Bora parar a palhaçada aí que eu tô puto! – disse Jesus, sem nem esperar a nuvem estacionar direito.

– Quem é você? – indagou nervoso o pastor vendo cada vez mais anjo se aproximando.

– Quem sou eu? Não é você mesmo quem passou a vida dizendo que era meu escolhido? – nada podia deixar Jesus mais estressado do que essa pergunta a essa hora.

– Jesus? Meu senhor! Veio nos arrebatar?

– Meu senhor uma porra! Arrebatar vocês? Eu quero é comer vocês na porrada!

A comunidade toda ouvia em alto e bom som o que Jesus dizia. Com sangue nos olhos e ódio no coração, ele discursava...

– Olha. Eu fico impressionado com esta nação, que é uma das mais ricas do mundo sim, mas não é a melhor! Tá todo mundo aí enfeitando árvore, botando luz piscante em casa, fazendo boneco de neve – tem gente que faz mesmo sem ter neve – e os caralho e vai dormir em paz porque ajudou com migalhas a fome de alguém! Eu falei pra vocês se amarem, pra vocês compartilharem o peixe e o pão... o que vocês fazem? Estocam vacina, fazem guerra, têm pena de morte legal e ilegal. Vocês andam todos armados e ninguém mais lê ou faz o que eu preguei. Ainda vêm dizer que são meus seguidores. Eu tô cansado!

– Meu senhor, nem todo mundo é assim!

– Quem é você com toda essa petulância pra querer saber mais do que quem é onisciente, alma sebosa?

Nesse momento, um monte já tinha desmaiado, outros choravam, outros tremiam e outros fugiam.

– Eu mandei vocês matarem em meu nome? Eu mandei vocês controlarem o livre-arbítrio das outras pessoas em meu nome? Eu mandei vocês gastarem mais com arma, foguete e carro elétrico do que ajudando os famintos, bando de escroto? Eu mandei vocês desmatarem as porras das florestas todas e acumularem riqueza, seus arrombados?

– Meu senhor Jesus, nos perdoe! O senhor tem bom coração!

– Mais um cavalo querendo me dizer o que tenho e o que não tenho – dizia com cada vez mais ódio no olhar. – Vou  resolver isso com um milagre que já fiz, mas um pouco diferente. Vou fazer o milagre a multiplicação, mas das balas.

Assim que terminou a fala, dois fuzis se materializaram em suas mãos. Rindo satisfatoriamente, Jesus ativou as armas de munições mágicas que acertavam a cabeça ou os corações dos hipócritas em todo o mundo. Gente de todo lugar teve a cabeça arrebentada, o coração perfurado. Muita gente morreu. Passado algum tempo – nada pra ele, mas muita coisa pra quem tá achando que vai morrer –, Jesus fez as armas desaparecerem. Seu ódio tinha sumido também. Lavado pelo sangue dos pecadores desarrependidos.

– Caros filhos – disse falando com todo mundo do mundo... todo mundo o via também. – Eu dei a vida por vocês dois mil anos atrás, mas vocês não souberam aproveitar este presente. Neste meu mais um aniversário, quem ganha o presente sou eu. Espero que vocês, sobreviventes, aproveitem mais esta dádiva que lhes dou. Aproveitem o mundo sem fascistas pra viverem seu paraíso. Vou deixar os corpos dos hipócritas aí pra vocês lembrarem de que é amando o próximo que se ganha a vida eterna. Feliz Natal.

 

Rodrigo Slama 18/12/21

*Imagem do Google

sábado, 11 de dezembro de 2021

Estrato lúcido

 


Não dissimula a pele quando afagada em êxtase. Feromônios, sabonete de aveia, vai saber? Nos pulmões, o cheiro fazia casa. Inundava, zeloso, a vontade de ficar para sempre grudado, como almas amaldiçoadas ao inferno. Fazer o que quando quereres, apesar dos aromas, são limitados? 

                De tanto que gostava de sua pele, elogiava. Ela, tentada, se convencia da finitude, mas mostrava impavidez. Teve ideia. Engordaria, sem trabalho. Cheesecake e coquinha, aumentava sua doce superfície matando dois vícios: a gula e a responsabilidade. Engrandeceu seu exterior acima do coração.

                Anestesia. Corte. Cirurgia. Sem túnel de luz, tudo foi mal e terminou bem. Lipo. Limpa. Saía esculturalmente moldada. Esculpida por Apolo em carrara. Do que sobrou, no entanto, não deixou que destruíssem. Artesã melhor que ela não havia. Costurou seu couro. Linda boneca fazia. Linda e sem vida, sem emoção alguma que alguém conhecesse.

                Inerte, imóvel e invivída. Mulher tal como é era entregue. De que vale o cheiro, no entanto, sem a alma? De que valem as almas, então, sem cheiro? Sabe lá!? O que não dissimula em pele não responde à realidade.  Fazer o que quando quereres, apesar dos aromas, são limitados? Que fazer?

 

Rodrigo Slama, 11/12/21

*Imagem do Google 

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Levante dos deuses famosos

 



No panteão dos que existem só na Terra, os deuses trabalhavam cada um com as suas demandas. Quase todo dia era sempre igual. Pedidos, agradecimentos, oferta de alimento, tempo, dinheiro... Hoje, não é mais como quase todo dia.

– Esse pessoal não dá um dia de folga! – disse Buda.

– Buda, deixe de pantin. Tá berrando de bucho cheio! – reclamou Jesus, um dos que tinham o maior serviço.

– Relaxa, pessoal. Uma hora o sossego vem. – tranquilizou Hermes.

– Vamos manter o foco na permanência, galera! – recomendou Oxalá.

O fato é que Jesus e Alá trabalhavam vinte e quatro por dia enquanto tinha deus à toa. Era pedido o tempo todo. Ibisu trabalhava pouquíssimo e ainda tinha metade do dia pra descansar sem precisar ouvir ninguém. Tava um clima de injustiça e desunião. Tinha deus querendo sair da galáxia pra ter um pouco mais de paz, mesmo sem saber se existia outro planeta com rezantes.

Jesus já estava de saco cheio. Dentro da sua própria galera no mundo tinha desentendimento. Ele era onipresente, mas isso não quer dizer incansável, né? Era melhor no tempo em que rezavam pros seus santos, agora boa parte dos problemas vai direto nos seus olhos, ouvidos e até no nariz.

Brahma e seu pessoal também estavam impacientes com o tanto de trabalho concentrado para uns. E outra, tinha deus ali que não ganhava nada... pelo menos não ganhava dinheiro, ouro. Tinha deus alimentado por vela e gratidão trabalhando mais que deuses da fortuna. Como um mundo será menos mesquinho se nem a comunidade dos seus deuses é igualitária?

Aurá Masda, um deus bem antigo que ainda vive, não via serviço pesado há pelo menos três mil anos. Teve mais sorte do que os deuses que morreram por falta de lembranças ou rezas. – É claro que vamos mandar pra cima dele! – disse Javé, olhado com desdém pelo seu filho. A maioria concordou. Bolaram um plano e começaram a colocá-lo em prática.

Ao contrário do que dizem, deuses não podem mandar dilúvios, guerras, fogo do céu. Deuses precisam tralhar com as ideias, sabe? Não dá pra ser pela coerção, não. Nas mentes dos mais fiéis, conseguiam entrar em sonhos, plantar quem questionasse sua fé no dia a dia... conseguiram até convencer, não só pela persuasão, quem pudesse difundir a verdade sobre a vida e a espiritualidade, o verdadeiro deus: Aurá Masda.

Para os que não são deuses, passaram-se muitos anos de envelhecimento e morte, mas para os que eram quase imortais, o tempo não lhes dava a delícia do envelhecimento e da inexistência. Enfim, no entanto e felizmente, Aurá Masda era obrigado a trabalhar pseudoinfinitamente mais do que costumava nos últimos milênios.

Jesus e Alá, que sempre sentiram o constante aumento de serviço, nem sabiam o que fazer com o tempo que agora eles conheceram. Por mais que, no princípio, a gente ache que só precisa viver se tiver trabalho, os deuses estão entendendo que têm direito ao lazer, ao ócio e à própria contribuição à humanidade. Quanto ao Aurá Masda, ele tá trabalhando mais do que houvera trabalhado desde que foi inventado, mas nada ao tamanho do que os líderes do levante já trabalharam um dia.

 Este texto faz parte do livro Pastor e outras histórias

 Rodrigo Slama, 27 de outubro de 2021

*Imagem do Google