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quinta-feira, 5 de maio de 2022

Devolução, revolta, desordem – Deus, o Diabo e a Morte

 



– Javé! Javé, seu cretino! Abra logo essa porta!

– O que foi, cão do inferno? Me deixe em paz. A cada dois mil anos é isso... Não dá um tempo de paz!

– Javé, eu te liguei esses dias, em 2018 depois de Cristo, e você prometeu que ia resolver aquela bronca lá do babaca da Terra.

– E não resolvi?

– Resolveu, mas o filha da puta tá pra entrar lá em casa de novo.

– Lu – tentou, Deus, acalmar o amigo – Eu não tenho nada a ver com isso. Eu já disse que a Morte tem seus próprios planos... eu estou muito ocupado com essa merda de universo pra me preocupar com um infeliz lá da Terra.

– Porra, Javé! Cadê sua palavra?

– Para de me chamar de Javé, Lúcifer, você sabe que não gosto mais desse nome demodê.

– Vai pra uma porra, Deus! Eu não quero aquele arrombado lá em casa. O Adolf desde que chegou me perturba... Veio um tal de Olavo dia desses... puta-que-te-pariu! Num aguento mais essa vida, não!

– Já falei que não posso fazer nada. Sai daqui logo que tenho mais o que fazer... tô com um projeto de dinossauro não-orgânico aqui pra um planeta medíocre de Andrômada e eu estou empolgado.

– Porra nenhuma! O infeliz tá quase entrando e eu não quero!

– Caralho, Diabo, tua obrigação é abrigar uns cretinos... faça seu trabalho quieto!

– Não. Desta vez, não.

– Ah, vai dizer agora que vai se rebelar de novo? Toda era é isso agora?!

– Olha aqui, Javé. Se vira com esse B.O.... Eu mesmo não quero.

– Porra, eu devia ter te feito mortal... eu não te aguento e nem eu posso contigo. Olha, vou chamar a Morte aqui pra resolver isso agora.

 

– Chamou, meu Deus?

– Chamei, sim! Olha aqui, não mata o... Qual o nome do infeliz?

– Jair, Javé!

– Morte, não mata o Jair agora não o que o Cramunhão aqui não gosta dele e tá putinho comigo.

– Senhor, eu não posso adiar mais isso. Eu tenho uma lista enorme de tarefas a cumprir... O senhor sabe que nunca durmo e...

– Sim, eu sei... eu que te fiz, caralho!

– Desculpe, pai. Eu não quis dizer isso, é que...

– Olha, eu num quero esse puto lá em casa não.

– Satanás, se cale que eu vou resolver.

O Diabo, temeroso pela falta de resolução do seu problema, se calou desta vez.


– Morte, por favor, adia essa merda desse homem, por favor.

– Mas, senhor, eu já adiei demais!

– Quem manda nessa merda de Universo?

– O senhor, meu Deus.

– Então faz o que eu tô te mandando, caralho!

– Mas, meu pai, o senhor mesmo me criou para cumprir a minha missão. Eu já adiei muito esse trabalho e...

– Morte, tu não tá querendo obedecer a Deus, é isso? – retrucou o capiroto.

– Com licença, mas eu só devo satisfação ao meu pai.

– Uma porra! Quase todo mundo que você mata vai lá pra casa... eu num aguento mais um monte de alma sebosa, não, seu otário!

– Com licença, senhor Diabo, mas eu só devo me reportar a Deus.

– Então, porra! Faz o que tô te mandando. Não mata esse cara! – disse bem nervoso, o criador de tudo.

– Senhor, me perdoe, mas não posso cumprir esta ordem.

– Ah, fodeu mesmo! Outro rebelde! – disse Deus furioso enquanto o Diabo aguardava impaciente.

– Olha, Deus – disse a Morte. – Eu já estou cansada mesmo dessas ironias, dessas ordens. O senhor não quer, tudo bem? Não mato esse ser humano, mas também não vou mais matar ninguém! Estou entregando meu cargo.

– O quê?

– Isso mesmo, senhor! Me recuso a matar mais qualquer coisa da Terra. Estou me demitindo. Adeus.

A Morte, simplesmente, saiu da sala de reuniões do paraíso deixando tanto o Deus quanto o Diabo perplexos.

 

Rodrigo Slama, 05/05/22

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* Imagem do Google

quarta-feira, 20 de abril de 2022

Clandestino neon

 



– Cara, isso não vai dar certo.

– Mas eu quero, tô pagando!

– Nem tudo é questão de dinheiro. Você tem certeza do que quer fazer?

– Lógico! Tá me chamando de menino?

– Então, não costumo, mas você vai ter que assinar um termo de consentimento.

– Eu assino, porra! Só faz o que eu tô te pagando pra você fazer.

 

Sessão de um sábado inteiro. Fechamento de costas. Um trabalho filha da puta. Termo assinado, pix feito. O otário nem questionou o valor. Foda-se, babaca é pra se foder mesmo.

 

– Ô seu arrombado, o que você fez nas minhas costas?

– Oxente! A tatuagem de Bolsonaro que você pediu.

– Deixe de putaria, você sabe muito bem o que você fez.

– Sei, e daí?

– E daí que eu tô parecendo um palhaço agora. É só eu tá num canto escuro que todo mundo ri de mim, seu galado!

– E?

– E daí que eu vou te processar, seu merda!

– Mas você assinou um termo, tem até foto sua sorrindo depois da tatuagem... agradecimento no Instagram...

– Sim, mas não tava no acordo que você ia botar tinta neon nessa porra, não!

– Não posso fazer nada.

– O quê? Você vai tirar essa merda ou eu...

– Ou eu o que, palhaço? – disse o tatuador enquanto percebia seu segurança chegando mais perto e intimidando o feroz cliente.

– Eu... eu vou te processar!

– Processe!

– Olha... – o cara tava se fazendo de santo se mijando com medo do Armarinho, o segurança. – Quanto você quer para ajeitar esse negócio? Já procurei outros tatuadores, gente que remove tatuagem... todo mundo disse que não tem jeito... que essa sua técnica é exclusiva e ninguém pode fazer nada.

– Eu sei. Só eu sei trabalhar com essa tinta aqui no Brasil...

– Então, por favor, quanto você quer para apagar ou cobrir isso?

– Nada. Eu não vou mexer.

– Mas...

– Eu te avisei que nem tudo era por dinheiro... você assinou concordando que tudo que eu fizesse em você era responsabilidade sua e pedido seu. Não vou fazer nada!

– Por favor! – já se ajoelhando. – Todo mundo tá me zuando... tem foto minha rodando um monte de grupo de WhatsApp. Você precisa me ajudar!

– Eu preciso que você saia do meu estúdio que já já tá chegando cliente.  

– Me ajuda! Às vezes aparece até quando eu estou de camisa se ela for clara. Eu não posso viver com isso!

– Armarinho!

– Sim, chefe.

– Tira esse idiota daqui e não deixa mais ele entrar no prédio.

– Tá certo!


Rodrigo Slama 20/04/22

 * Imagem do Google 



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quarta-feira, 13 de abril de 2022

Não fazem sentido

 




– Um, dois, três, quadro...

– Quatro, três, dois, um!

– O Capitão já anda brocha...

–  E o Tenente aliviado!

– Um, dois, três, quadro...

– Quatro, três, dois, um!

– O General só quer picanha.

– O Major quer Leite Moça.

– Um, dois, três, quadro...

– Quatro, três, dois, um!

 

– O que tá acontecendo ali, Tenente? Que cantoria subversiva é essa?

– Capitão, os Soldados estão nervosos, senhor!

– Cadê a sua autoridade, Tenente?

– Já ameacei, senhor. Mas eles não me obedecem.

 

Tenente e Capitão foram até a tropa, que seguia rindo depois da corrida e se negava a arrancar os tocos do quartel.

 

– Atenção, pelotão. Sentido!

– Os soldados, os cabos e o Sargento olharam para o Tenente e começaram a rir.

– O que está acontecendo com vocês? Desde quando se negam a respeitar seu Tenente? – bradou o Capitão muito revoltado, mas sem saber como reagir àquela inédita rebelião.

– Ô Capitão, ninguém aqui tá mais a fim de obedecer não. A gente tá de saco cheio já.

– Viu, Capitão?!

– Todo mundo tá preso! Já para a cadeia!

– Ô Capitão, a gente não tá a fim, não.

– É, ninguém tá a fim de ser preso, não.

– É... vem prender a gente, Capitão.

– Vem nada... ele não tá prendendo nem o Tenente – disse o Sargento, que tirou risada de todo mundo e deixou o Capitão vermelho de raiva e o Tenente vermelho de vergonha.

 

Sem saber como reagir para que os praças obedecessem, o Capitão mandou fazer logo um churrasco com cerveja boa para todo mundo, não só mais para os oficiais. Tinha acabado de chegar um camião de produtos para o batalhão, presente de todo mês do presidente militar. O Tenente tomou seus comprimidos azuis, levou mais outros para o Capitão e foram para a caserna enquanto todo mundo se divertia comendo, bebendo e jogando futebol.


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Rodrigo Slama 13/04/22

domingo, 23 de janeiro de 2022

Só duzentos reais



 – Duzentos reais, vai querer?

– Porra, tá caro.

– Produto aqui é de primeira, tem procedência. Pode confiar.

– Não, tá caro. Faz por cem?

– Tá maluco? Tá achando caro vai reclamar no Procon!

– Cento e cinquenta, po...

– Mano, você é surdo ou analfabeto? É duzentos reais, se não quiser, vaza!

– Vou querer, mas tá caro.

– Cê tá me tirando?... Agora fodeu... cadê a grana?

– Tá aqui, pega!

 

O comprador atravessou a avenida e dobrou poucas ruas. Entrou num restaurante badalado do Jardins. Lá dentro, seus amigos o esperavam.

– Ué, como você entrou?

– Eu falei que dava um jeito.

– Tô vendo...

– Esse jeito foi caro?

– Nada... só duzentos reais.

– Pô, cara, vacina é de graça... se vacina logo.

– Podem me pagar, que eu não tomo vacina!

 

Todos riram e brindaram à coragem e a inteligência de Ricardo.

– Senhor – disse o garçom –, tem um problema com o seu passaporte vacinal.

– Que problema?

– Ele é falsificado. O senhor se vacinou?

– Claro! Vou tomar a terceira dose semana que vem.


Rodrigo Slama 23/01/22


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sábado, 18 de dezembro de 2021

Jesus Pistola - a (re)volta de Cristo

 




Mais um ano eterno se passando e Jesus tava pistola no céu. Puto, puto. Cansava de gritar reclamando da burrice humana. Burrice de quem demorou pra escrever suas palavras, burrice de quem interpreta suas palavras e a burrice ambiciosa de quem ensina suas palavras.

Era culto de Natal, seu aniversário, claro, num país de maioria cristã. Um estádio cheio em plena pandemia. Miguel, Gabriel, todo mundo lá que podia chegar perto dele não conseguiu impedir a fúria de um homem que foi conhecido por amar até seus assassinos. A situação tava demais pro Jesus, que já não era menino, suportar.

– Bora parar a palhaçada aí que eu tô puto! – disse Jesus, sem nem esperar a nuvem estacionar direito.

– Quem é você? – indagou nervoso o pastor vendo cada vez mais anjo se aproximando.

– Quem sou eu? Não é você mesmo quem passou a vida dizendo que era meu escolhido? – nada podia deixar Jesus mais estressado do que essa pergunta a essa hora.

– Jesus? Meu senhor! Veio nos arrebatar?

– Meu senhor uma porra! Arrebatar vocês? Eu quero é comer vocês na porrada!

A comunidade toda ouvia em alto e bom som o que Jesus dizia. Com sangue nos olhos e ódio no coração, ele discursava...

– Olha. Eu fico impressionado com esta nação, que é uma das mais ricas do mundo sim, mas não é a melhor! Tá todo mundo aí enfeitando árvore, botando luz piscante em casa, fazendo boneco de neve – tem gente que faz mesmo sem ter neve – e os caralho e vai dormir em paz porque ajudou com migalhas a fome de alguém! Eu falei pra vocês se amarem, pra vocês compartilharem o peixe e o pão... o que vocês fazem? Estocam vacina, fazem guerra, têm pena de morte legal e ilegal. Vocês andam todos armados e ninguém mais lê ou faz o que eu preguei. Ainda vêm dizer que são meus seguidores. Eu tô cansado!

– Meu senhor, nem todo mundo é assim!

– Quem é você com toda essa petulância pra querer saber mais do que quem é onisciente, alma sebosa?

Nesse momento, um monte já tinha desmaiado, outros choravam, outros tremiam e outros fugiam.

– Eu mandei vocês matarem em meu nome? Eu mandei vocês controlarem o livre-arbítrio das outras pessoas em meu nome? Eu mandei vocês gastarem mais com arma, foguete e carro elétrico do que ajudando os famintos, bando de escroto? Eu mandei vocês desmatarem as porras das florestas todas e acumularem riqueza, seus arrombados?

– Meu senhor Jesus, nos perdoe! O senhor tem bom coração!

– Mais um cavalo querendo me dizer o que tenho e o que não tenho – dizia com cada vez mais ódio no olhar. – Vou  resolver isso com um milagre que já fiz, mas um pouco diferente. Vou fazer o milagre a multiplicação, mas das balas.

Assim que terminou a fala, dois fuzis se materializaram em suas mãos. Rindo satisfatoriamente, Jesus ativou as armas de munições mágicas que acertavam a cabeça ou os corações dos hipócritas em todo o mundo. Gente de todo lugar teve a cabeça arrebentada, o coração perfurado. Muita gente morreu. Passado algum tempo – nada pra ele, mas muita coisa pra quem tá achando que vai morrer –, Jesus fez as armas desaparecerem. Seu ódio tinha sumido também. Lavado pelo sangue dos pecadores desarrependidos.

– Caros filhos – disse falando com todo mundo do mundo... todo mundo o via também. – Eu dei a vida por vocês dois mil anos atrás, mas vocês não souberam aproveitar este presente. Neste meu mais um aniversário, quem ganha o presente sou eu. Espero que vocês, sobreviventes, aproveitem mais esta dádiva que lhes dou. Aproveitem o mundo sem fascistas pra viverem seu paraíso. Vou deixar os corpos dos hipócritas aí pra vocês lembrarem de que é amando o próximo que se ganha a vida eterna. Feliz Natal.

 

Rodrigo Slama 18/12/21

*Imagem do Google

sábado, 11 de dezembro de 2021

Estrato lúcido

 


Não dissimula a pele quando afagada em êxtase. Feromônios, sabonete de aveia, vai saber? Nos pulmões, o cheiro fazia casa. Inundava, zeloso, a vontade de ficar para sempre grudado, como almas amaldiçoadas ao inferno. Fazer o que quando quereres, apesar dos aromas, são limitados? 

                De tanto que gostava de sua pele, elogiava. Ela, tentada, se convencia da finitude, mas mostrava impavidez. Teve ideia. Engordaria, sem trabalho. Cheesecake e coquinha, aumentava sua doce superfície matando dois vícios: a gula e a responsabilidade. Engrandeceu seu exterior acima do coração.

                Anestesia. Corte. Cirurgia. Sem túnel de luz, tudo foi mal e terminou bem. Lipo. Limpa. Saía esculturalmente moldada. Esculpida por Apolo em carrara. Do que sobrou, no entanto, não deixou que destruíssem. Artesã melhor que ela não havia. Costurou seu couro. Linda boneca fazia. Linda e sem vida, sem emoção alguma que alguém conhecesse.

                Inerte, imóvel e invivída. Mulher tal como é era entregue. De que vale o cheiro, no entanto, sem a alma? De que valem as almas, então, sem cheiro? Sabe lá!? O que não dissimula em pele não responde à realidade.  Fazer o que quando quereres, apesar dos aromas, são limitados? Que fazer?

 

Rodrigo Slama, 11/12/21

*Imagem do Google 

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Levante dos deuses famosos

 



No panteão dos que existem só na Terra, os deuses trabalhavam cada um com as suas demandas. Quase todo dia era sempre igual. Pedidos, agradecimentos, oferta de alimento, tempo, dinheiro... Hoje, não é mais como quase todo dia.

– Esse pessoal não dá um dia de folga! – disse Buda.

– Buda, deixe de pantin. Tá berrando de bucho cheio! – reclamou Jesus, um dos que tinham o maior serviço.

– Relaxa, pessoal. Uma hora o sossego vem. – tranquilizou Hermes.

– Vamos manter o foco na permanência, galera! – recomendou Oxalá.

O fato é que Jesus e Alá trabalhavam vinte e quatro por dia enquanto tinha deus à toa. Era pedido o tempo todo. Ibisu trabalhava pouquíssimo e ainda tinha metade do dia pra descansar sem precisar ouvir ninguém. Tava um clima de injustiça e desunião. Tinha deus querendo sair da galáxia pra ter um pouco mais de paz, mesmo sem saber se existia outro planeta com rezantes.

Jesus já estava de saco cheio. Dentro da sua própria galera no mundo tinha desentendimento. Ele era onipresente, mas isso não quer dizer incansável, né? Era melhor no tempo em que rezavam pros seus santos, agora boa parte dos problemas vai direto nos seus olhos, ouvidos e até no nariz.

Brahma e seu pessoal também estavam impacientes com o tanto de trabalho concentrado para uns. E outra, tinha deus ali que não ganhava nada... pelo menos não ganhava dinheiro, ouro. Tinha deus alimentado por vela e gratidão trabalhando mais que deuses da fortuna. Como um mundo será menos mesquinho se nem a comunidade dos seus deuses é igualitária?

Aurá Masda, um deus bem antigo que ainda vive, não via serviço pesado há pelo menos três mil anos. Teve mais sorte do que os deuses que morreram por falta de lembranças ou rezas. – É claro que vamos mandar pra cima dele! – disse Javé, olhado com desdém pelo seu filho. A maioria concordou. Bolaram um plano e começaram a colocá-lo em prática.

Ao contrário do que dizem, deuses não podem mandar dilúvios, guerras, fogo do céu. Deuses precisam tralhar com as ideias, sabe? Não dá pra ser pela coerção, não. Nas mentes dos mais fiéis, conseguiam entrar em sonhos, plantar quem questionasse sua fé no dia a dia... conseguiram até convencer, não só pela persuasão, quem pudesse difundir a verdade sobre a vida e a espiritualidade, o verdadeiro deus: Aurá Masda.

Para os que não são deuses, passaram-se muitos anos de envelhecimento e morte, mas para os que eram quase imortais, o tempo não lhes dava a delícia do envelhecimento e da inexistência. Enfim, no entanto e felizmente, Aurá Masda era obrigado a trabalhar pseudoinfinitamente mais do que costumava nos últimos milênios.

Jesus e Alá, que sempre sentiram o constante aumento de serviço, nem sabiam o que fazer com o tempo que agora eles conheceram. Por mais que, no princípio, a gente ache que só precisa viver se tiver trabalho, os deuses estão entendendo que têm direito ao lazer, ao ócio e à própria contribuição à humanidade. Quanto ao Aurá Masda, ele tá trabalhando mais do que houvera trabalhado desde que foi inventado, mas nada ao tamanho do que os líderes do levante já trabalharam um dia.

 Este texto faz parte do livro Pastor e outras histórias

 Rodrigo Slama, 27 de outubro de 2021

*Imagem do Google

quarta-feira, 14 de julho de 2021

O homem do intestino invertido

 


– Uma vez eu conheci um homem que tinha o intestino invertido.

– É o quê, criatura?

– Sim. Ele tinha o intestino invertido. Era tudo ao contrário ali.

– Como foi isso?

– Tinha sido atacado por uma ema. Eu nem sabia que emas podiam atacar alguém... mas são como galinhas gigantes, né? Às vezes, galinhas atacam mesmo. Daí, levaram o cara para o primeiro hospital que viram, né? Foda que o médico que tinha lá não entendia de ataque de emas... e dizem, a galera toda de lá, sabe?, que ele era viciado em remédio de malária. Passou um tempo, há muito tempo, lá no Norte... na falta de tóxico começou a tomar aquilo. Era o que tinha, né?  

– Homi, deixe de enrolagem e conta logo essa história!

– Sim... aí o médico lá, chega tinha a boca torta de tanto remédio de malária, viu o sujeito de bucho aberto. Tava uma coisa feia, tudo sujo, tudo cagado, tudo cheio de baba de ema...

– E danado galinha baba, caboco?

– Rapaz, foi minha prima enfermeira lá que disse que tava tudo uma nojeira.

– Sim... continue...

– Aí o médico não podia costurar daquele jeito, teve que tirar tudo pra lavar.

– Lavar?

– Tu quer saber a história ou não?

– Conte!

– Apois deixe!

– Vá, caba...

– Aí o médico tirou tudo pra lavar. Mas como ele tava muito doido de droga, costurou todo ao contrário.

– Costurou ao contrário?

– Foi. Daí o sujeito agora caga pela boca. Coisa horrível... um bafo da porra!

– E come por onde?

– Macho, se ele caga pela boca, tu acha que ele come por onde?

– Sério? Deixe de mentir...

– Rapaz, minha prima disse que ele tinha que tomar sopa por uma sonda no furico. Mas, depois de uns dias, já podia comer normal. Era só colocar que o cu mastigava e engolia.

– O cu mastigava?

– Ô se não... Esse caba gosta muito de comer galinha de capoeira, sabe? Aí ele come uma inteirinha. Bota numa cadeira e senta.

– O caba senta numa galinha e come com o cu?

– Tô dizendo... ainda digo mais... ele era magrinho, merminho um atleta, mas depois da operação ele tá é gordo... tá gostando mais de comer pelo boga.

– Já pensasse?

– Pior é aquilo, né? Quanto mais come, mais caga. E nem a esposa consegue mais ficar perto do caboco. Mas ele tá nem aí não... Henrique que é mais chegado me disse que ele passa mesmo o tempo é comendo... abacaxi, coalhada, manga rosa...

– Abacaxi?

– Sim... e digo mais... ele nem descasca.

 

Rodrigo Slama 14/07/21


*Imagem do Google


terça-feira, 23 de março de 2021

Lyudmila

 

Fazia dias que Ana não dormia direito. Parecia viajar, se desdobrar para uma guerra. Ela nem gostava de ver filme de guerra, nem muito de filme ela gostava. Acordava cedo todo dia. Molhava a calçada como se a escassez de água não fosse um problema. Geralmente, caminhava até a pracinha a três quadras de casa... ficava lá uns minutos e, às vezes, levava até um pãozinho duro pros pombos. O clima andava seco no Planalto central... se comprasse o pão de manhã ele já estava duro à tarde.

Em casa, todo dia ela, ela fazia pequenos serviços domésticos. Não mexia mais no fogão porque suas mãos não estavam tão firmes e há dois anos ela se queimou derramando água do macarrão. Lia um pouco, rezava a Prece de Cáritas e meditava para que o Dr. Bezerra de Menezes ajudasse a curar a pandemia no mundo e, principalmente, no Brasil. Kardecista e conservadora, Ana votou contra o PT nas eleições. Ela não aguentava mais a roubalheira. Não estava gostando muito do presidente que ela elegeu, mas... Na época seus netos tentaram avisá-la, no entanto votou como o filho, major do Exército, que se perguntava onde tinha errado para criar filhos comunistas.

Antes de dormir, nos últimos dias, rezava um Pai Nosso e pedia por bons sonhos. Conversava com seu mentor, fazia uma prece para o seu falecido marido e pedia auxílio para a pandemia mais uma vez. Talvez sonhar com guerra fosse saudades do companheiro falecido há mais de 15 anos. Ele era Coronel do exército e morreu de câncer no estômago. Ana acreditava que era um carma de uma vida passada.

Naquela noite, seu mentor apareceu em sonho. Disse que ela estava perto de concluir uma importante missão na Terra, uma missão em que ela se comprometeu antes mesmo de encarnar. Desde pequena, quando começou o contato com o mestre, ela sabia que certo dia ela deveria realizar um ato humanitário de extrema importância, mas nunca lhe foi revelado quando e nem o que deveria fazer.

Ao acordar, ela agradeceu com uma prece, vestiu roupas claras e foi, naturalmente, molhar a calçada da rua depois do café. Ela não gostava da máscara, bem que o presidente disse que se respira gás carbônico por ela... mas até que Ana estava usando direitinho nos últimos tempos, estava realmente difícil. Não levou pão seco desta vez, mas caminhou um pouco pela até a praça. Antes de chegar ao seu banco, sentiu sua consciência quase se esvaindo... botou a culpa na máscara. Ela, agora, iria cumprir sua missão.

Quando acordou, deitada no topo de um dos prédios ministeriais, Ana não reconheceu a pessoa do seu lado... muito menos os equipamentos ali. Ela estava segurando uma arma, uma arma grande, um rifle de precisão. O homem ao seu lado tinha em suas mãos binóculos e outros apetrechos. Naquela hora, confusa, tentou se levantar, mas se assustou com o som do helicóptero.

Ana se virou e levou um tiro a queima roupa no peito. Não sentiu dor, não sentiu medo. Chegou do outro lado e lá estavam o seu amado companheiro, com roupas que nada lembravam sua patente militar, seu mestre e mentor além de uma mulher com o rosto um pouco peculiar que ela não conhecia, mas que sentia conhecer. Esta mulher a abraçou e agradeceu. “Obrigado, minha irmã. Pelas suas mãos o 310° inimigo foi abatido. Vidas serão salvas na Terra”. Todos os meios de informação e desinformação do mundo se perguntavam como uma mulher de 85 anos sem treinamento militar algum e com certa dificuldade de movimentos conseguiu subir num prédio ministerial com armamento sofisticado e matar o presidente do Brasil com um tiro na cabeça.

 

Rodrigo Slama 23/03/21


Histórias inéditas em 

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quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Amarga Odontíase

 

 


Infelizmente, terminou a pandemia.

A gente já pode sair sem máscara. Ninguém usava mais máscara mesmo! Um bom bocado de vacina deu certo e logo a imunidade da população mundial chegou a padrões seguros. Enfim o normal voltava. O velho normal, com bar, escola, terreiro cheios. No Rio de Janeiro, as escolas de samba preparavam os carnavais, os maracatus ensaiavam em Pernambuco e o Amazonas prometia uma Festa de Boi como nunca se viu.

Mas Josefa se lamentava. Ninguém entendia direito e muito poucos desconfiavam. Pra ela, infelizmente, a pandemia tinha terminado.

Com quase sessenta anos e poucos pés de galinha, mais do que a sua melanina, a falta de sorriso contribuía para a economia de marcas de expressões no rosto. Desde a adolescência, se acostumou a pouco rir, a pouco chorar, a pouco manifestar qualquer sentimento. Na verdade, Maria Josefa tentava não alimentar nenhum sentimento... bom ou triste, alegre ou ruim, nada que sentia era manifesto... tudo guardado, embalado, escondido.  

Mas durante um ano, Josefa estava visivelmente mais alegre. Seus olhos sorriam. Até mais rugas apareciam. Gente parente que nunca tinha ouvido sua risada, acostumava-se, inicialmente com certa desconfiança, a reconhecer sua gargalhada.

“É falta da igreja”, disse um sobrinho ateu. “É nada, deve ter arrumado um pé de lã”, retrucou o marido covarde. “Gente, deixa ela. Ela só tá feliz”, respondeu a filha mais nova que fazia faculdade.

A felicidade, porém, estava ameaçada. A pandemia tinha acabado. Todo mundo saía sem máscara e Josefa tinha que sair assim também. Sem máscara, não sorria; sem máscara, tinha vergonha, sabe? Tinha vergonha.

Rodrigo Slama 14/10/20


Imagem do Google (Revista Exame) 

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Fake Plastic Dicks

 


Foi a pandemia.

Nunca gostei muito de computador, celular pra mim era pro básico. Pornografia então, jamais.

Mas foi a pandemia, eu juro!

Eu tinha um namorado, ficamos sem nos ver por quatro meses. No início, ah, no início foi duro, mas me acostumei. Me acostumei comigo, me acostumei com o sexo virtual, meus dedos, meus brinquedos que chegaram atrasados do Mercado Livre.

Aí todo mundo começou a relaxar. Estavam abrindo bares, estavam abrindo igrejas. Estavam, olha!... Estavam abrindo shoppings! Tu acha? Eu deveria encontrar o Maurício. Já eram cinco meses incompletos de isolamento. Eu nem sabia mais qual era o seu gosto. Nem meu gosto em sua barba, só meu gosto nos meus dedos.

Aqui em casa era foda. Meus pais, mesmo liberais, viviam em casa. E ainda tinha Vó Petra, não, na boa, não rola. E eu sabia que queria soltar todos os gritos e gemidos sufocados pelo isolamento. Na casa dele era foda, ele morava com o pai, bicho alcóolatra, sabe, rolava não.

Motel? Cê tá doido? Imagina se alguém infectado usa antes da gente. Não quero adoecer. Vovó é idosa, esqueceu.

Tá bem, tá bem. Vamos pro motel amanhã. Você passa aqui e me pega. Não, Maurício, não vou de Uber, você passa aqui no seu Uber e me pega já que seu pai bateu o carro. Não. Já disse que não vou pegar Uber sozinha pra ir pra motel. Não estou nem aí, o problema é seu.

Pernoitamos no motel. Foi uma merda. Acho que Maurício esqueceu como se trepa ou então fui eu. Ele gozou três vezes. Na terceira durou mais de meia hora, certeza, mas não faz diferença.

A gente ainda tentou outras vezes. Eu fui enrolando também. Disse que tava com Covid, disse que tava com enjoo, disse que tava com daltonismo.... Olha, eu enrolei como podia até não poder mais.

Acabou a pandemia, mas não quero saber de ninguém, na boa. Nem homem, nem mulher. Acho que fui eu, sabe. Acho que foi a pandemia.

Sim. Foi a pandemia.

- Maria Tereza, encomenda pra você!

Já vou, mãe. Peraí, não abre o pacote!

 

Rodrigo Slama  26/08/2020

segunda-feira, 25 de maio de 2020

Uma noite Brilhante



Estávamos em casa. Não tinha nada lá que pudesse nos identificar como subversivos.
Pelo bem da minha família, tinha feito a barba já há algum tempo, queimado todas as camisas vermelhas e enterrado os livros proibidos. Mas nos entregaram. Não sei quem... nem o culpo. Decerto, a dor que sentiu antes do arrependimento, infelizmente, foi tão grande quanto a minha.
Eu era fiscal de produção de uma fábrica de roupas; Tereza, minha mulher, professora de francês.
Nos conhecemos numa sorveteria. Achei que seria um sonho poder namorar com uma moça estudada. Logo eu, de família pobre, um peão sem eira nem beira, estava apaixonado por uma mulher linda, inteligente, de classe média.
Namoramos por um tempo. Casamos e tivemos uma filha. Vivíamos uma vida tranquila.
Durante as aulas, Tereza aproveitava para ir além do ensino do outro idioma, fazia com que os alunos, durante as conversações, tentassem pensar um pouco fora da caixinha... todos eram de família rica... Quem é que podia pagar por aulas de francês naqueles tempos?
        Lá na fábrica, a gente também tentava ir além do aperto dos parafusos e da checagem das máquinas. Queríamos melhores condições de trabalho. Fazíamos reuniões, levávamos propostas aos patrões... Tudo mudou.
     O golpe veio. Veio a desesperança. Nossos dias viraram uma noite eterna. Muitos amigos foram presos ou simplesmente sumiam... Quando algum aparecia, caso raro, era sempre muito machucado. Machucado por fora e por dentro da cabeça.
     Era uma tarde chuvosa de maio. Eles entraram na minha casa me chamando de comunista. Levaram Tereza também... A nossa filha teve que ficar com uma vizinha, que não entendeu nada do que estava acontecendo, mas não podia se intrometer naquela situação.
         Fomos separados. Me interrogaram e foram aplicando força gradativamente ao passo que eu não falava nada. Me despiram. Me afogaram. Me deram choques. Mesmo assim eu me negava a dizer qualquer coisa que prejudicasse a mim, minha família ou meus companheiros.
        Foram três anos na preso. Durante uma das torturas, pesaram a mão e perfuraram um dos meus rins. Por sorte ou azar, passei o tempo da recuperação sem receber tanto castigo. A infecção que quase me matou me torturava e poupava o fôlego dos meus algozes.
      Mas teve uma noite, já quase recuperado, que eu sofri a maior violação que alguém poderia sofrer. Fazia um ano e meio que não via Tereza. Trouxeram ela para ser estuprada e torturada da minha frente. Me estupraram também. Minha esposa estava muito magra e machucada. Cada golpe que ela levava, um pedaço da minha alma castigada era arrancado.
    Tereza morreu naquela noite. Minha mulher, minha companheira morreu na minha frente. Foi abusada de todas as formas possíveis. Enquanto eu tive a vida poupada por castigo, via o Coronel rindo e cuspindo sobre o corpo frio de Tereza.


Rodrigo Slama 25/05/2020

sábado, 23 de maio de 2020

O Rei da Cocada Branca






Em toda sala de aula, seja de escola pública ou particular, sempre tem um rei sentado numa carteira. O rei das escolas estaduais é o rei da cocada preta. Este é tranquilo, um pouco marrento, mas tranquilo. O rei problemático é o rei das escolas particulares... e eu bem sei... trabalhei (e trabalho no momento desta escrita) nas maiores escolas de Natal. São os reis da cocada branca: héteros, brancos, cristãos, ricos e, geralmente, homens. Um combo de toxidade.   
Os reis das escolas particulares, na verdade, não são lá essas coisas... os seus pais é que são. É sobre o Ethos dos seus progenitores que os reis da cocada branca se arvoram sobre os demais... Se são burros, usam os outros para conseguir notas; se são inteligentes, usam a si mesmos para diminuir o outro. Tentam, inclusive, diminuir o professor.
Esses meninos e meninas crescem influenciados por valores completamente antagônicos aos valores que temos. Eles creem que o dinheiro é tudo, e, por tê-lo, tentam montar nos demais, mesmo que eles também o tenham, mesmo, inclusive, que tenham até mais.
Os professores, portanto, são os que mais são passíveis – em suas cabeças ocas, sobretudo as cabeças ocas dos inteligentes – de serem montados. Ora, professor é um ser fracassado... ele não conseguiu passar pra Medicina, Engenharia ou Direito e, por isso, fizeram um curso mais fácil, eles pensam.
Vivemos angustiados, atacados por todos os lados. Até alguns coordenadores, que foram ‘promovidos’ da sala de aula, utilizam o seu poder para nos explorar e humilhar. Mas o que mais me tira a paciência é o rei da carteira. Aquele aluno que tenta, a todo custo, te derrubar. Ele sabe que só vai conseguir massagear seu ego com a derrubada de um mestre. O burro que te derrubar porque é burro mesmo; o inteligente quer te derrubar porque é burro... não sabe como usar a inteligência...  
– Professor, eu acho que você deveria ouvir mais os alunos.
– Claro. Me diga qual a sua angústia.
– Eu acho que a aula está chata.
– É mesmo?
– Sim. Você deveria animar mais a galera. Passa um filme... tem muita coisa pra gente ler... essa questão está muito difícil...
– Lucas Gabriel, é um exercício de revisão. Eu peguei do livro do fundamental, estamos no médio...
– Está vendo, professor. Você nunca ouve a gente.


Rodrigo Slama 2015
Imagem do Google 

quinta-feira, 21 de maio de 2020

O dia que mataram Bolsonaro





Quarta-feira. Mês de junho. O Nordeste comemorando seus santos, o Sudeste vindo pro Nordeste curtir as praias. Meio do Ano. Todo mundo merece descanso, todo mundo precisa descansar. Eu dava aulas e dançava quadrilhas. Comia milhos e cheirava cangotes no Beco. Tudo seguia e a gente seguia também, sem muita escolha, sem ter muito o que fazer além de reclamar em páginas de redes sociais para os nossos próprios amigos semidesconhecidos e poucos desconhecidos que a gente mal sabia quem eram.
– Mataram Bolsonaro! – gritou um aluno quase no fundo da sala e todo mundo começou a falar. Pensei em brigar com o guri que estava mexendo no celular na minha aula e inventando história, mas por que alguém iria inventar que mataram o presidente?
– Como é? – inquiri.
– Professor, acabaram de mandar aqui. Mataram o Bolsonaro!
Saquei meu celular. Todos os grupos em polvorosa. Um monte de gente comemorando, poucos lamentando, mas, sim, tinham matado o presidente.
Não consegui mais dar aula naquela quarta-feira. Ninguém mais conseguiu se concentrar no meu texto de Saramago.
Saí para a sala dos professores. Boa parte das turmas estava saindo, mesmo faltando ainda mais de 15 minutos para o fim daquela aula.
– Dessa vez acertaram! – alguém gritou da cantina. Na hora, não entendi. Sabia que tinha sido uma facada, mas ainda estava meio perplexo com aquilo tudo. Não sei você, mas eu, particularmente, demoro um pouco para processar certas informações... sobretudo porque, infelizmente, fico tentando achar brechas que não foram ditas, possibilidades, outras narrativas, enfim... eu ainda estava meio perplexo.
Era uma quarta-feira. Era junho. Tinha gente com toras e galhos de madeira em frente às casas. Era interior... o dia todo era gente soltando bomba, fogos... fossem vinte anos atrás, teria balões, mas hoje não pode mais.
Aquele dia não teve mais aula. Era impossível manter os meninos quietos. Na TV, só se falava nisso. Muita gente preocupada com o que aconteceu, outras pessoas, em menor número, preocupadas com o que seria? Nunca, no Brasil, alguém tinha matado um presidente. – E Tancredo? – Não, desse jeito não. Tancredo não conta. – E agora?
– Olha, rapaz, não sei. Uma parte de mim está feliz, outra está muito preocupada.
– Preocupada uma porra!
– Não sei.
– Bora beber!
– Beber?
– Beber, bora?
– Bora.

Rodrigo Slama
21/05/2020
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quarta-feira, 20 de maio de 2020

Gari




Era gari. Quando entrou, não havia concurso. Agradeceu, passou a ter uma renda fixa, era funcionário público estatutário. Todo domingo, ia pra missa. Gostava de rezar. Carregava o terço de Fátima no pescoço. Não falava muito. Não pensava muito. Apenas trabalhava, recolhia lixo e rezava. Casou moço. Sua esposa não sabia ler e escrever. Era assim de pai e mãe. Ele sabia escrever e ler. Pouco, mas sabia. Durante o trabalho, não precisava disso. Precisava só usar luva, boné e as pernas. Trabalhava no caminhão. Andava pendurado por cinquenta metros e corria mais cinquenta a cada esquina. Era tanta sujeira que banho não bastava para tirar o óleo da sua pele. Ele e a mulher já estavam acostumados. Passaram anos. Ele se aposentou. Não aconteceu nada que mudasse sua vida.

texto de 2015
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