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quarta-feira, 14 de julho de 2021

O homem do intestino invertido

 


– Uma vez eu conheci um homem que tinha o intestino invertido.

– É o quê, criatura?

– Sim. Ele tinha o intestino invertido. Era tudo ao contrário ali.

– Como foi isso?

– Tinha sido atacado por uma ema. Eu nem sabia que emas podiam atacar alguém... mas são como galinhas gigantes, né? Às vezes, galinhas atacam mesmo. Daí, levaram o cara para o primeiro hospital que viram, né? Foda que o médico que tinha lá não entendia de ataque de emas... e dizem, a galera toda de lá, sabe?, que ele era viciado em remédio de malária. Passou um tempo, há muito tempo, lá no Norte... na falta de tóxico começou a tomar aquilo. Era o que tinha, né?  

– Homi, deixe de enrolagem e conta logo essa história!

– Sim... aí o médico lá, chega tinha a boca torta de tanto remédio de malária, viu o sujeito de bucho aberto. Tava uma coisa feia, tudo sujo, tudo cagado, tudo cheio de baba de ema...

– E danado galinha baba, caboco?

– Rapaz, foi minha prima enfermeira lá que disse que tava tudo uma nojeira.

– Sim... continue...

– Aí o médico não podia costurar daquele jeito, teve que tirar tudo pra lavar.

– Lavar?

– Tu quer saber a história ou não?

– Conte!

– Apois deixe!

– Vá, caba...

– Aí o médico tirou tudo pra lavar. Mas como ele tava muito doido de droga, costurou todo ao contrário.

– Costurou ao contrário?

– Foi. Daí o sujeito agora caga pela boca. Coisa horrível... um bafo da porra!

– E come por onde?

– Macho, se ele caga pela boca, tu acha que ele come por onde?

– Sério? Deixe de mentir...

– Rapaz, minha prima disse que ele tinha que tomar sopa por uma sonda no furico. Mas, depois de uns dias, já podia comer normal. Era só colocar que o cu mastigava e engolia.

– O cu mastigava?

– Ô se não... Esse caba gosta muito de comer galinha de capoeira, sabe? Aí ele come uma inteirinha. Bota numa cadeira e senta.

– O caba senta numa galinha e come com o cu?

– Tô dizendo... ainda digo mais... ele era magrinho, merminho um atleta, mas depois da operação ele tá é gordo... tá gostando mais de comer pelo boga.

– Já pensasse?

– Pior é aquilo, né? Quanto mais come, mais caga. E nem a esposa consegue mais ficar perto do caboco. Mas ele tá nem aí não... Henrique que é mais chegado me disse que ele passa mesmo o tempo é comendo... abacaxi, coalhada, manga rosa...

– Abacaxi?

– Sim... e digo mais... ele nem descasca.

 

Rodrigo Slama 14/07/21


*Imagem do Google


terça-feira, 23 de março de 2021

Lyudmila

 

Fazia dias que Ana não dormia direito. Parecia viajar, se desdobrar para uma guerra. Ela nem gostava de ver filme de guerra, nem muito de filme ela gostava. Acordava cedo todo dia. Molhava a calçada como se a escassez de água não fosse um problema. Geralmente, caminhava até a pracinha a três quadras de casa... ficava lá uns minutos e, às vezes, levava até um pãozinho duro pros pombos. O clima andava seco no Planalto central... se comprasse o pão de manhã ele já estava duro à tarde.

Em casa, todo dia ela, ela fazia pequenos serviços domésticos. Não mexia mais no fogão porque suas mãos não estavam tão firmes e há dois anos ela se queimou derramando água do macarrão. Lia um pouco, rezava a Prece de Cáritas e meditava para que o Dr. Bezerra de Menezes ajudasse a curar a pandemia no mundo e, principalmente, no Brasil. Kardecista e conservadora, Ana votou contra o PT nas eleições. Ela não aguentava mais a roubalheira. Não estava gostando muito do presidente que ela elegeu, mas... Na época seus netos tentaram avisá-la, no entanto votou como o filho, major do Exército, que se perguntava onde tinha errado para criar filhos comunistas.

Antes de dormir, nos últimos dias, rezava um Pai Nosso e pedia por bons sonhos. Conversava com seu mentor, fazia uma prece para o seu falecido marido e pedia auxílio para a pandemia mais uma vez. Talvez sonhar com guerra fosse saudades do companheiro falecido há mais de 15 anos. Ele era Coronel do exército e morreu de câncer no estômago. Ana acreditava que era um carma de uma vida passada.

Naquela noite, seu mentor apareceu em sonho. Disse que ela estava perto de concluir uma importante missão na Terra, uma missão em que ela se comprometeu antes mesmo de encarnar. Desde pequena, quando começou o contato com o mestre, ela sabia que certo dia ela deveria realizar um ato humanitário de extrema importância, mas nunca lhe foi revelado quando e nem o que deveria fazer.

Ao acordar, ela agradeceu com uma prece, vestiu roupas claras e foi, naturalmente, molhar a calçada da rua depois do café. Ela não gostava da máscara, bem que o presidente disse que se respira gás carbônico por ela... mas até que Ana estava usando direitinho nos últimos tempos, estava realmente difícil. Não levou pão seco desta vez, mas caminhou um pouco pela até a praça. Antes de chegar ao seu banco, sentiu sua consciência quase se esvaindo... botou a culpa na máscara. Ela, agora, iria cumprir sua missão.

Quando acordou, deitada no topo de um dos prédios ministeriais, Ana não reconheceu a pessoa do seu lado... muito menos os equipamentos ali. Ela estava segurando uma arma, uma arma grande, um rifle de precisão. O homem ao seu lado tinha em suas mãos binóculos e outros apetrechos. Naquela hora, confusa, tentou se levantar, mas se assustou com o som do helicóptero.

Ana se virou e levou um tiro a queima roupa no peito. Não sentiu dor, não sentiu medo. Chegou do outro lado e lá estavam o seu amado companheiro, com roupas que nada lembravam sua patente militar, seu mestre e mentor além de uma mulher com o rosto um pouco peculiar que ela não conhecia, mas que sentia conhecer. Esta mulher a abraçou e agradeceu. “Obrigado, minha irmã. Pelas suas mãos o 310° inimigo foi abatido. Vidas serão salvas na Terra”. Todos os meios de informação e desinformação do mundo se perguntavam como uma mulher de 85 anos sem treinamento militar algum e com certa dificuldade de movimentos conseguiu subir num prédio ministerial com armamento sofisticado e matar o presidente do Brasil com um tiro na cabeça.

 

Rodrigo Slama 23/03/21


Histórias inéditas em 

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quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Amarga Odontíase

 

 


Infelizmente, terminou a pandemia.

A gente já pode sair sem máscara. Ninguém usava mais máscara mesmo! Um bom bocado de vacina deu certo e logo a imunidade da população mundial chegou a padrões seguros. Enfim o normal voltava. O velho normal, com bar, escola, terreiro cheios. No Rio de Janeiro, as escolas de samba preparavam os carnavais, os maracatus ensaiavam em Pernambuco e o Amazonas prometia uma Festa de Boi como nunca se viu.

Mas Josefa se lamentava. Ninguém entendia direito e muito poucos desconfiavam. Pra ela, infelizmente, a pandemia tinha terminado.

Com quase sessenta anos e poucos pés de galinha, mais do que a sua melanina, a falta de sorriso contribuía para a economia de marcas de expressões no rosto. Desde a adolescência, se acostumou a pouco rir, a pouco chorar, a pouco manifestar qualquer sentimento. Na verdade, Maria Josefa tentava não alimentar nenhum sentimento... bom ou triste, alegre ou ruim, nada que sentia era manifesto... tudo guardado, embalado, escondido.  

Mas durante um ano, Josefa estava visivelmente mais alegre. Seus olhos sorriam. Até mais rugas apareciam. Gente parente que nunca tinha ouvido sua risada, acostumava-se, inicialmente com certa desconfiança, a reconhecer sua gargalhada.

“É falta da igreja”, disse um sobrinho ateu. “É nada, deve ter arrumado um pé de lã”, retrucou o marido covarde. “Gente, deixa ela. Ela só tá feliz”, respondeu a filha mais nova que fazia faculdade.

A felicidade, porém, estava ameaçada. A pandemia tinha acabado. Todo mundo saía sem máscara e Josefa tinha que sair assim também. Sem máscara, não sorria; sem máscara, tinha vergonha, sabe? Tinha vergonha.

Rodrigo Slama 14/10/20


Imagem do Google (Revista Exame) 

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Fake Plastic Dicks

 


Foi a pandemia.

Nunca gostei muito de computador, celular pra mim era pro básico. Pornografia então, jamais.

Mas foi a pandemia, eu juro!

Eu tinha um namorado, ficamos sem nos ver por quatro meses. No início, ah, no início foi duro, mas me acostumei. Me acostumei comigo, me acostumei com o sexo virtual, meus dedos, meus brinquedos que chegaram atrasados do Mercado Livre.

Aí todo mundo começou a relaxar. Estavam abrindo bares, estavam abrindo igrejas. Estavam, olha!... Estavam abrindo shoppings! Tu acha? Eu deveria encontrar o Maurício. Já eram cinco meses incompletos de isolamento. Eu nem sabia mais qual era o seu gosto. Nem meu gosto em sua barba, só meu gosto nos meus dedos.

Aqui em casa era foda. Meus pais, mesmo liberais, viviam em casa. E ainda tinha Vó Petra, não, na boa, não rola. E eu sabia que queria soltar todos os gritos e gemidos sufocados pelo isolamento. Na casa dele era foda, ele morava com o pai, bicho alcóolatra, sabe, rolava não.

Motel? Cê tá doido? Imagina se alguém infectado usa antes da gente. Não quero adoecer. Vovó é idosa, esqueceu.

Tá bem, tá bem. Vamos pro motel amanhã. Você passa aqui e me pega. Não, Maurício, não vou de Uber, você passa aqui no seu Uber e me pega já que seu pai bateu o carro. Não. Já disse que não vou pegar Uber sozinha pra ir pra motel. Não estou nem aí, o problema é seu.

Pernoitamos no motel. Foi uma merda. Acho que Maurício esqueceu como se trepa ou então fui eu. Ele gozou três vezes. Na terceira durou mais de meia hora, certeza, mas não faz diferença.

A gente ainda tentou outras vezes. Eu fui enrolando também. Disse que tava com Covid, disse que tava com enjoo, disse que tava com daltonismo.... Olha, eu enrolei como podia até não poder mais.

Acabou a pandemia, mas não quero saber de ninguém, na boa. Nem homem, nem mulher. Acho que fui eu, sabe. Acho que foi a pandemia.

Sim. Foi a pandemia.

- Maria Tereza, encomenda pra você!

Já vou, mãe. Peraí, não abre o pacote!

 

Rodrigo Slama  26/08/2020

quinta-feira, 21 de maio de 2020

O dia que mataram Bolsonaro





Quarta-feira. Mês de junho. O Nordeste comemorando seus santos, o Sudeste vindo pro Nordeste curtir as praias. Meio do Ano. Todo mundo merece descanso, todo mundo precisa descansar. Eu dava aulas e dançava quadrilhas. Comia milhos e cheirava cangotes no Beco. Tudo seguia e a gente seguia também, sem muita escolha, sem ter muito o que fazer além de reclamar em páginas de redes sociais para os nossos próprios amigos semidesconhecidos e poucos desconhecidos que a gente mal sabia quem eram.
– Mataram Bolsonaro! – gritou um aluno quase no fundo da sala e todo mundo começou a falar. Pensei em brigar com o guri que estava mexendo no celular na minha aula e inventando história, mas por que alguém iria inventar que mataram o presidente?
– Como é? – inquiri.
– Professor, acabaram de mandar aqui. Mataram o Bolsonaro!
Saquei meu celular. Todos os grupos em polvorosa. Um monte de gente comemorando, poucos lamentando, mas, sim, tinham matado o presidente.
Não consegui mais dar aula naquela quarta-feira. Ninguém mais conseguiu se concentrar no meu texto de Saramago.
Saí para a sala dos professores. Boa parte das turmas estava saindo, mesmo faltando ainda mais de 15 minutos para o fim daquela aula.
– Dessa vez acertaram! – alguém gritou da cantina. Na hora, não entendi. Sabia que tinha sido uma facada, mas ainda estava meio perplexo com aquilo tudo. Não sei você, mas eu, particularmente, demoro um pouco para processar certas informações... sobretudo porque, infelizmente, fico tentando achar brechas que não foram ditas, possibilidades, outras narrativas, enfim... eu ainda estava meio perplexo.
Era uma quarta-feira. Era junho. Tinha gente com toras e galhos de madeira em frente às casas. Era interior... o dia todo era gente soltando bomba, fogos... fossem vinte anos atrás, teria balões, mas hoje não pode mais.
Aquele dia não teve mais aula. Era impossível manter os meninos quietos. Na TV, só se falava nisso. Muita gente preocupada com o que aconteceu, outras pessoas, em menor número, preocupadas com o que seria? Nunca, no Brasil, alguém tinha matado um presidente. – E Tancredo? – Não, desse jeito não. Tancredo não conta. – E agora?
– Olha, rapaz, não sei. Uma parte de mim está feliz, outra está muito preocupada.
– Preocupada uma porra!
– Não sei.
– Bora beber!
– Beber?
– Beber, bora?
– Bora.

Rodrigo Slama
21/05/2020
Imagem do Google 

sábado, 2 de setembro de 2017

Um pênis de duas cabeças

Google imagens

- Toda noite eu acordo com sua mão no meu pênis. Aquilo já estava virando um pesadelo. Eu não aguentava mais ver o meu próprio corpo ser violado daquela maneira. Não queria ser tocado daquele jeito, não queria ser estimulado por ele, seu juiz...
- Toda noite é a mesma agonia. Eu demoro a dormir... tento dormir depois dele, mas ele sempre dá um jeito de acordar e me masturbar enquanto eu durmo. Ele diz que o meu pênis é dele, que ele tinha direito sobre o meu corpo. Mas isso é um absurdo! Eu não aguento mais aquilo e, por isso, procurei a justiça...
O outro ouvia tudo aquilo calado.
- E parece que tudo piorou. Durante o banho, com a desculpa de limpar, ele aproveita e me toca daquele jeito imundo. Eu reclamo, ele para, mas volta. E ainda vê pornografia na minha frente... eu nunca gostei disso, seu juiz, mas ele sempre foi tarado!


No julgamento, o juiz analisa o caso dos irmãos siameses que dividem o mesmo pênis. 

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Rastro de feijão descomido






Fazia três dias que eu não cagava. Eu nunca tinha ficado entupido antes. Na verdade, o meu problema sempre foi o contrário... eu, geralmente, cago demais. O problema é que minha mãe fez uma farofa muito boa no natal e sobrou quase tudo. Como adoro farofa e ninguém aguentava mais comer resto da ceia, me esbaldei naquele balde de farofa temperada. Comi tanto que a merda ficou presa no meu intestino e não saiu nem com reza braba.
Meio envergonhado, pedi ajuda à minha mãe. Me deu laxante. Um quarto do recomendado. Pense num laxante porreta! Estava no curso. Tinha tomando o remédio na hora do almoço, antes de sair. Durante as primeiras aulas, não senti uma pontada sequer no bucho. Achei que não iria fazer efeito e teria de tomar de novo. No intervalo, aproveitei a caminhada até a cantina para peidar um pouco... já estava começando a me sentir aliviado, mas vontade de cagar que é bom nada. Bom... que eu cagaria só em casa, no conforto do meu sanitário.
Fim da aula. Fui sem muita pressa, mas sem a calma de sempre, para o ponto de ônibus costumeiro. Caminho até em casa era breve, mas que se alongava devido ao horário, ao trânsito e à quantidade de pessoas espremidas no coletivo. Consegui pegar lugar sentado. Quase sempre eu conseguia, porque a o curso ficava antes do centro, e lá que subia muita gente. Sentei na janela, pouco antes do meio do ônibus. Ouvia Kate Perry no celular. Gosto muito de Kate Perry, quase tanto quanto de Motörhead.
Estava quase na metade do caminho quando comecei a ouvir um ronco na minha barriga. Não era fome, tinha comido uma coxinha com bastante catchup, mostarda e uma maionese que que ficava quase todo horário de funcionamento da cantina do lado de fora da geladeira. Sabia que aquele ronco significava merda. Comecei a rezar para o ônibus chegar logo. Sabia que iria demorar ainda mais quase uma hora para chegar ao meu destino. A cada freada, era um susto diferente. Queria peidar, mas tinha medo. Queria cagar, mas não podia. Pensei em descer do ônibus e procurar algum banheiro, mas acreditava que conseguiria chegar em casa na hora. Eu tinha de chegar em casa na hora!
A velha que estava sentada do meu lado desceu, sentou uma menina bem bonitinha com a camisa do Helloween. Eu já estava sem os meus fones de ouvido, porque a Kate Perry estava me deixando mais nervoso. Percebi que a menina ouvia Mc Ludmilla. Ela devia achar que a camisa era da festa de halloween, nem devia saber que é de uma banda. No tempo em que pensava nisso, me senti um pouco aliviado, até que o primeiro peido saiu. Queria muito que ele não tivesse sido barulhento e molhado, mas já era. Teria de segurar o cu agora. Uma freada era uma mancha além da minha cueca, mas na minha dignidade.
Pelo jeito, tinha saído mais merda do que eu pensei. Toda vez que o ônibus passava num quebra-molas, eu me sentia escorregando da cadeira. Até que a vontade apertou de vez. Eu já estava preocupado, mas a sensação era de que eu iria explodir pelo furico e eu tive que desapertar o caneco. Saiu merda. Saiu muita merda. Saiu mais merda do que alguém em plenas condições físicas poderia produzir. Era tanta matéria orgânica que eu sentia escorrendo pelas minhas pernas, entrando nos meus tênis e deixando no ar um cheiro de peido no banho incontrolável.
As pessoas começaram a tapar o nariz. A menina ao meu lado disfarçou e pediu parada. Não tinha mais gente de pé, mas as pessoas que estavam sentadas logo se levantavam para abrir as janelas superiores. Alguns arriscavam a colocar a cabeça para fora enquanto o casal de idosos atrás de mim comentava que esse governador desgraçado não estava arrumando o esgoto da região.  Nesse momento, liguei o botão do foda-se. Já estava cagado mesmo, se tivesse que sair mais, que saísse. E saiu. Continuou saindo mais e mais por alguns segundos, talvez minutos.
Enfim, chega meu ponto. Entre o ponto e a minha casa ainda precisava andar uns oitocentos metros. Levantei a alça da minha mochila para ela não encostar na minha calça e segui meu caminho. Os meus pés, mais o direito que o esquerdo, estavam, literalmente, encharcados de bosta. Nos primeiros cinquenta metros, fui deixando um rastro grosso de bosta que se estendeu mais modesto até a porta de casa. Parecia uma vaca, mas ao invés de capim saíam uns carocinhos de feijão.
Cheguei todo cagado. Minha mãe quase vomitou. Mandou eu tirar a roupa no quintal mesmo. Não deu pra reaproveitar a cueca. Não compensava lavar. Enquanto eu seguia para o banheiro, minha mãe tapava o nariz com uma mão e empunhava o cabo de uma vassoura na outra. Ela pegou minhas roupas, colocou no tanque e deixou a água correr como se não houvesse conta no fim do mês e tacou todo tipo de produto de lavanderia em cima.
Depois de estar de banho tomado, comecei a rir da história. Pensei como as pessoas do bairro iriam reagir ao ver o rastro de feijão descomido que jamais levaria para uma casa de doces, mas para o primeiro banheiro químico do carnaval de Olinda. E fiquei com certa pena do cara que iria limpar o ônibus depois e encontrar aquela poça de merda fedida nos pés do quinto assento do lado da janela direita. 

sábado, 19 de setembro de 2015

O comedor da escola



Bombado. Notas baixas. Uma ou duas reprovações. Alto índice de ocorrências por indisciplina. O comedor da escola é um sujeito bonito por fora e cheirando a ovo cozido e batata doce por dentro. As meninas o adoram... e ele, geralmente, se aproxima das estudiosas e nem sempre é pra conseguir cola.
Se fosse apenas cola... O comedor da escola já foi pego colando, já foi pego fumando, já foi pego estuprando. “Cu de bêbada não tem dono” é o lema do seu grupinho de amigos, que transcende a Constituição, mas não fere o regimento. Eles têm tempo pra beber, trepar, viajar, mas não estudam...  são os meninos que dormem durante as aulas, porque acordaram muito cedo pra treinar, como eles chamam a ida à musculação.  
Todos bebem com o comedor da escola. Todos resenham com ele. Ele vai embora bêbado das festas com o carro cheio de gente. O próprio carro que dirige aos dezessete anos sem habilitação, sem cinto, sem medo. Chega em Pirangi com a turma, continua bebendo com o som alto. Uma das meninas agora já é mulher. O arrependimento será esquecido nos próximos meses, nos próximos porres, quando passar na Federal.
O comedor da escola não vai passar na Federal, mas vai ser doutor! Já no primeiro semestre do curso de Direito da UnP, consegue estágio no escritório do pai, mas quer ser juiz como a mãe. Maldita OAB! Agora, ele tem de estudar. Com dinheiro, dá-se um jeito. Já tem sala própria, tem alguns clientes importantes...
           Está defendendo um rapaz de dezessete anos. Bombado. Notas Baixas. Uma ou duas reprovações. Alto índice de ocorrências por indisciplina. Uma batida com o próprio carro que dirigia sem habilitação, sem cinto e sem medo. Uma morte de um mendigo que dormia na calçada na madrugada. Causa fácil. Mais uma vitória.

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Crente que é gente




Carla era uma mulher sem muito amor. Era mãe de dois filhos já na faculdade, mas que moravam com ela. Era filha de pais aposentados que moravam no interior, mas que se falavam todo dia pelo telefone. A protagonista desta curta história era casada há 21 anos, e, durante muito tempo, o seu sonho foi estudar e trabalhar, mas tinha que cuidar da casa, cuidar dos filhos, cuidar do marido e das coisas da igreja.
            Enfim, para a sua felicidade, Carla conseguiu, depois da maturidade, entrar numa faculdade. Ela escolheu uma profissão de status, que lhe conferiria o respeito que ninguém, nem marido nem filho algum, já a haviam dispensado. Catou seus documentos e conseguiu um financiamento federal para estudar Direito numa decente universidade do seu estado. Ah... ela estava tão feliz... agora, como a sua irmã, que era médica formada na Universidade Federal, ela teria algum valor... Direito era um curso muito belo... poderia, além do diploma, lhe conferir dignidade, como se só quem tivesse um título emoldurado na parede tivesse o direito inalienável, como anos atrás, de ter dignidade neste país.
            Foi uma luta terminar o curso... no início, teve que se virar para pagar o material, os livros e ainda pagar pelos trabalhos e provas que não conseguia fazer... Afinal, não é uma, duas ou dezoito disciplinas que não se acompanha bem que fará um estudante universitário sair com menos bagagem, não é mesmo? E assim ela foi... fez os estágios, colou o grau... o marido, nestes cinco anos, havia sido promovido então eles já vinham pagando o FIES para não deixar tudo pra depois...
            O problema, caro leitor ou leitora, é que quando você paga para fazerem seus trabalhos, quando você paga para fazerem seus resumos, fichamentos, só te darem a parte pronta num seminário ou mesmo paga para fazer uma prova em dupla, você acaba saindo da universidade do mesmo jeito que entrou. Agora, Carla era uma doutora como diz no popular, mas não conseguia passar no exame da OAB e, consequentemente, exercer a sua profissão. Tinha um diploma na parede. Tinha apenas um diploma na parede.           
            O problema, sabe, não é nem a falta da carteira da Ordem ou o fato dela ter pago pelos trabalhos, enfim... O problema todo é a sua arrogância... a sua prepotência. Parece que, mesmo não tendo entrado de verdade no mundo do direito, a empáfia que alguns profissionais carregam a acompanha. Por isso, ela arruma briga com o padeiro, com o porteiro, com o professor dos seus filhos... Se um dia você cruzar com ela, não ouse falar em leis, direitos ou constituição em sua frente ou pelas costas, ou você será vítima – sim, vítima – de um discurso armado, pronto, no esqueleto, faltando apenas a cereja, a contextualização temporal e local para que ela tente passar por cima de você...
            Sim... como não conseguiu muita coisa em sua vida, agora, a sua alegria é passar por cima do ego alheio, da moral, da verdade... tudo que estiver acompanhando o seu opositor – todos que não concordam com ela são seus inimigos – será alvo de seus argumentos ancorados no senso comum com algumas palavras-chave prontas, em stand-by aguardando o momento oportuno.
          Quando consegue, raramente, passar por cima de alguém menos instruído, Carla se sente mais gente, mais ser humano, mais advogada formada... o seu marido, pobre coitado, nem entra mais na onda de sua esposa. Ele também participa de sua igreja que prega o amor eterno entre os casais, o ‘felizes para sempre’... e acha que é uma provação o que ele passa... como se o seu deus quisesse que ele sofresse tanto vendo a mulher pregar e ler uma coisa nos púlpitos da igreja e fazer absolutamente o contrário em sua vida real.
            É, meu amigo ou amiga, eu me preocupo muito com este tipo de pessoa que quer se tratorar através das outras, estes parasitas que têm seu ego inflado quando suprimem da forma mais baixa e mesquinha o direito dos outros. Quando eu encontro com Carla, eu finjo que ela ou eu somos um personagem... e tento não levar para o lado pessoal as asneiras que diz. Pra mim, agir desta forma é algo que vai contra o que eu sigo, o que eu prego, o que eu vejo e acredito. Eu creio que o mundo precisa de mais humanidade e menos arrogância. Carla, por sua vez, é crente que é gente. 

sábado, 20 de junho de 2015

O demônio do canavial




Oito anos, uma faca e uma vontade de chupar cana. Sem permissão, invadi o quintal do vizinho para roubar um pouco do bambu doce que seria a sobremesa de uma janta que não tão agradável. Naquele escuro terreno do interior paulista, segurei meu medo e deixei a vontade de consumir algo engordativo tomar conta dos seus instintos. Sentia um pouco de medo, mas a vontade de me lambuzar de cana era maior... Nenhum mal poderia acontecer, certo? Ledo engano.  
Uma criatura demoniosa sai apavorante da terra quando eu estava levantando a faca favorita da minha mãe para desferir o primeiro golpe na minha sobremesa. Quando vi aquele ser das trevas, fiquei sem ter como gritar, sem quase respirar... Pavor, muito pavor. Aquele bicho parecia um bode com rabo de cobra, chifres pontudos e uma aura maligna que me fez esquecer de mim mesmo. Estava convencido de que não iria dormir na minha cama, mas numa cama de pregos em cima de um braseiro no inferno.
As chamas do inferno iriam consumir a minha carne magra, os meus olhos seriam arrancados pelas unhas cheias de bactérias demoníacas que me presenteariam com uma infecção terrível que tiraria toda a pele do corpo e comeria o tutano dos meus ossos sem deixar nenhum vestígio de humanidade em meu corpo, que só teria um coração para que eu pudesse lembrar de que não poderia invadir o terreno alheio para roubar cana-de-açúcar.
Sorte que minhas pernas não entenderam o perigo e correram, correram como nunca correram e nunca correriam novamente. Naquele momento, a minha preocupação se dividia entre as pernas, o demônio do canavial e os pulmões que começavam a falhar. Eu não conseguia respirar, e ainda faltava um bom pedaço de chão para percorrer... Cheguei, enfim, em casa com os olhos mais esbugalhados do que um japonês telescópio, agradeci a Deus em pensamento por encontrar a minha mãe lavando a louça do jantar. Lhe contei o que tinha acontecido, que vi um demônio que me levaria para morar no inferno. Apavorado, ouvi da minha mãe: – Cadê a faca? Vá já buscar, Silvo Luís!

segunda-feira, 15 de junho de 2015

O demônio do Beco da Luz




O Beco da Luz era um atalho no centro da cidade. Entretanto, ao contrário do que o nome sugere, é escuro durante todo o dia. Isso porque as lâmpadas eram constantemente quebradas e as construções em volta, os prédios muito colados, impediam que a luz penetrasse naqueles 170 metros de umidade, sujeira e depressão.
Mas eu não tinha saída. Nunca andava pelo Beco da Luz. A aula tinha acabado tarde, eu não poderia me dar ao luxo de percorrer cinco quarteirões para pegar o último ônibus. Sei que não é bom alguém andar sozinho num lugar ermo, como aquele – eu pedia muito a Deus que estivesse ermo – ainda mais sendo mulher. Eu não tinha saída. Tinha que passar pelo Beco da Luz.
Peguei o meu terço na bolsa. Andava o mais rápido possível para não correr. Eu já tinha passado por lá antes, mas durante o dia e acompanhada por alguns colegas da faculdade. Sabia que não seria uma experiência agradável, muito menos passaria rápido como da vez que estava acompanhada... mas seria rápido no relógio, isso que importava naquele momento.
Eu andava rápido e rezava tão depressa quanto as batidas do meu coração permitiam. Quase no meio, me aparece, repentinamente, um ser esguio, estranho, quase da minha altura com o rosto encoberto pelas sombras. Gelei. Não sabia o que fazer... não podia ser deste mundo, era uma criatura que parecia uma criança nua, sem sexo, com unhas enormes, com pés assustadoramente estranhos e uma aura que quase me fez arrancar as contas do terço com os calafrios.
Não consegui gritar e nem sabia se um grito me colocaria em maior apuro. Ela arrodeou o meu corpo e, com a pouca luz que por ali se perdia, consegui ver que não tinha rosto, não tinha a pele do rosto, mas uma face mutilada, cadavérica, digna de uma criatura que tinha acabado de fugir do inferno. Era isso, só poderia ser isso... era um demônio, um enviado de Satanás para me atormentar, para me levar para o inferno.
A criatura ficou me encarando, tentou ficar ereta em minha frente. Eu já me esquecia do terço, eu já me esquecia de Deus, eu já esquecia de mim mesma... só me concentrava naquele olhar sem olhos, naquela rosto sem face, naqueles pés demoníacos, naquelas mãos com garras prontas a me agarrar e naquela mandíbula cheia de dentes para arrancar toda a minha carne magra de meus ossos que tremiam geladamente.
Não me agarrou, não me devorou... só me encarou. Corri.

sexta-feira, 5 de junho de 2015

O palhaço assassino da Rua 417


Ilustração André Silva
           Morava na Rua 417 um palhaço muito engraçado que costumava fazer apresentações na porta de sua casa quando não estava em algum circo ou fazendo campanha para um supermercado ou loja de brinquedos chineses. Ele era muito querido por todos... uma das figuras mais cativantes e amistosas do bairro.
            Meninos e meninas sempre saíam da escolinha e passavam direto na Rua 417 para apertar a mão de Palhaço e assistir aos seus números de mágica e toda a sua palhaçada. Era sempre uma festa. Ninguém sabia quem ficava mais feliz com as visitas das crianças, que foram crescendo e, aos poucos, se esquecendo do palhaço que, já sem circo e sem muito ter onde se apresentar, ficava cada vez mais solitário.
            O que antes era alegria, motivo de acordar sorrindo e pensando num novo truque, numa nova piada, agora era motivador de raiva. Não podia mais ver uma criança, não podia mais ver alguém se divertindo que lhe batia uma ira incontrolável, mas ele não era um mal sujeito, ele queria trazer a verdadeira alegria àquele bairro novamente.
            – As pessoas hoje andam muito felizes... Antigamente, quando a situação financeira era pior, todos precisavam de mim... agora, qualquer criança pobre tem celulares modernos, videogames de última geração... Eles não são felizes de verdade...
            Palhaço começou a matutar um plano para acabar com a alegria das pessoas. Mas de que adiantaria extinguir com a felicidade alheia se ele continuaria amargurado, triste, solitário? Não era justo acabar com a felicidade alheia se isso não lhe daria nada em troca – Já sei! Preciso de piadas novas, de truques novos, de bordões modernos!
            O morador da casa mais colorida da Rua 417 começou a se atualizar... passou semanas lendo, assistindo aos vídeos de humor da moda, treinando novos truques de mágica. Ele sentia que estava pronto para voltar à ativa – mesmo que nunca tivesse saído. Estava pronto para fazer as pessoas rirem dele novamente... E ser o motivo da alegria dos outros era o que lhe proporcionava a felicidade.  
            Tudo pronto, vizinhos convidados, balas, doces, pirulitos coloridos. Naquele fim de tarde de sábado, Palhaço iria voltar com novidades e alegrar todo mundo novamente. Um carro de som passou pela manhã, mas, apesar disso, ninguém apareceu. Ninguém parecia precisar de um pouco de alegria. As crianças não se interessaram, os pais tinham equipamentos eletrônicos de ponta e uma assinatura de TV riquíssima. Por que iriam para um showzinho de Palhaço, o palhaço do fundo de quintal?
            Palhaço montou um plano. Ele mataria alguém do bairro. Dona Edilene era a mulher mais velha da vizinhança. Uma verdadeira matriarca que gerou muitos dos que fundaram a escola, a igreja e o posto de saúde. À noite, na calada, ele foi até a sua casa. A matou com um martelo colorido. Ela nem pode reagir no auge dos seus 99 anos. Tudo já estava programado para a festa do seu centésimo aniversário no mês seguinte. No entanto, a tristeza que tomou conta de todos foi muito passageira. Ninguém procuraria os serviços do palhaço do bairro por conta da morte de uma velha que já tinha passado da hora.
            Desta vez, ele faria o que achava mais certo. Matar uma velha já a beira da morte não tinha sido um bom plano. É certo que todos da região a amavam, mas daí a perder a capacidade de se alegrar por conta de uma senhora de quase cem anos é querer um pouco demais... se fossem crianças, se fosse uma tragédia... se fosse algo que acontecesse na igreja, no catecismo. Sim... agora, Palhaço tinha um plano.
            Foi, de fato, uma tragédia. Três crianças na primeira infância foram encontradas vítimas de morte violenta na creche do bairro. Saiu no RN TV, saiu no Jornal Nacional, saiu no Fantástico como nota. Comoção geral dos moradores do bairro em que ficava a Rua 417. Um conforto: Palhaço, o palhaço tinha anunciado há poucos dias um novo show com novas piadas, novos truques e bordões modernos. Passado o luto inicial, o mais dolorido, todos foram à Rua 417 comer balas, picolés e pirulitos que deixavam a língua azul. Toda vez que algo macabro acontecia, Palhaço tinha seus momentos de felicidade. Ele alegrava um pouco a vida de quem tivera sido marcado por alguma tragédia. 

sábado, 14 de fevereiro de 2015

Com a luneta 001

Eu tava no muro tentando olhar para a vizinha da frente, mas não vi. Via a mãe dela, uma mulher chata que inveja a vida das pessoas, que chifra o marido com um dos amigos do bêbado que ele se tornou por conta da traição. A mãe dela se transformou num bode, num bode voador... parecia a aquele cachorro da história sem fim, mas ele era bem menor, e tinha chifres, e carregava uma bolsa rosa. O bode tentava impedir que uma pomba levasse seus temperos mágicos que seriam colocados na merenda barata e superfaturada da escola pública do bairro distante. Um bairro conhecido pelas suas altas taxas de criminalidade, um bairro pra onde iriam adolescentes de classe mérdia comprar talco de narina de senador e desencaminhar mocinhas quase inocentes. Vi tudo isso com a minha luneta. 

sábado, 8 de setembro de 2012

O episódio da lâmpada



Estava cumprindo a quarentena no hospital onde acordei após meu sono de dez anos. Era tardezinha. Eu acabava de tomar o chá de erva cidreira que me deram acompanhado de um belo pão com manteiga, um pão quentinho como eu não comia fazia tempo – isso sem levar em conta os dez anos – é que mesmo antes de dormir eu já desejava um pãozinho desse mesmo jeito, que me fazia parecer ter voltado à infância... Comer aquele pão me lembrava bons momentos, uma simples mistura milenar de trigo e água que era incrementada pela minha mãe com a quantidade exata do recheio perfeito para um pão quentinho, a manteiga.
Decidi passear pelo hospital, conhecer gente nova. Caminhando pelos corredores aleatoriamente olhando para as fotografias nos murais, nos recortes de revista que falavam sobre os pacientes importantes e desimportantes que haviam sido “salvos” naquele centro de ajuda, como ainda eu não tinha visto a não ser por aquelas séries americanas que passavam na televisão antes da Rede Globo começar a fazer minisséries tão boas como as produzidas nos Estados Unidos.
Sentado, calado e olhando para o teto; foi assim que estava ele, Antônio de Macedo e Maria, pelo menos foi o que a enfermeira me disse quando a indaguei sobre aquele sujeito que me fez dar tantas gargalhadas que quase não consegui escrever este capítulo só por lembrar aquela cena de alguns muitos anos atrás.
Disse olá e me apresentei da forma mais simpática possível. – E você, como se chama? – perguntei com toda delicadeza e respeito, pois não sabia como iria reagir aquele sujeito meio... pensativo, talvez. Porém ele nada me respondeu, apenas me olhou, não nos olhos, e pôs-se a voltar a admirar o teto, que era tão comum como o teto da sua casa, a não ser que você more numa casa sem forro, num palacete ou debaixo duma ponte de concreto, com todo respeito.
– Hei, senhor! – chamei pela segunda vez, desta cutucando-o no ombro. Ele, além de não responder, não me olhou, nem se moveu como no primeiro contato.
– Amigo, vamos conversar! O gato comeu sua língua? Vamos cara... vamos bater um papo, eu lhe pago um cafezinho... – ele nem deu atenção.
Percebi que poderia estar falando com uma pessoa simplesmente grossa, que não gostasse mesmo de conversar. Aquele cara poderia estar me esnobando, logo eu que fui tão amistoso, que já tinha feito amigos em todo o andar e metade do andar de cima ser ignorado por alguém que nem olhar nos meus olhos olhava...   
 – Vamos comer a lâmpada? – perguntei tentando descontrair, deixá-lo mais a vontade.
– O quê? – ele perguntou com os olhos arregalados, olhos de quem está sendo perseguido por policiais militares armados e despreparados.
– Vamos, me ajude a puxar este banco... Nós vamos comer esta lâmpada e vai ser agora­ – me levantava como se realmente quisesse a lâmpada.
 Eu já tinha percebido que ele era um doido e quis me divertir. Mas ele se agarrou ao banco e disse:
 – Não! Não! Não!... Não quero comer a lâmpada! Ela deve ter gosto de cebola. Não me dê por favor, por favor, por favor, por favor, por favor...
Nessa hora o doido começou a chorar enquanto eu já ficava sem ar de tanto rir. Os outros pacientes, entre eles deveria estar o segurança da rodoviária, caíram na gargalhada assim como eu. Aquela imagem era mesmo engraçada. Um doido, que deveria ter uns setenta anos, chorando como um bebê chamando a mãe para que ela não o deixasse comer aquela lâmpada, que ora devia ter gosto de cebola, ora devia ter gosto de vaga-lume, causando-o, assim, azia, que ele chamava de vulcãozinho no bucho.
Eu tinha que ter pedido uma cópia da fita à segurança do hospital, só para ver o povo todo caindo no chão, inclusive alguns enfermeiros, quando ouviam: – ­“Eu não quero ter um vulcãozinho no bucho, mãe! Eu não quero...” – e mais – “isso deve ter gosto de cebola crua, e eu não como cebola crua, porque cebola crua é ruim, é por isso que eu não como cebola crua, se eu achasse bom cebola crua eu comia cebola crua, mas como eu não gosto de cebola crua, eu não como cebola crua, porque cebola crua é ruim...” – O pobre dizia e chorava, aos soluços, ao mesmo tempo. Mas aí chegou uma psicóloga metida a dona da verdade, e do doido, acabando com a brincadeira.
Daí em diante, eu não precisava sair à procura de gente para conversar, as pessoas é quem me puxavam assunto partindo, é claro, da história da lâmpada com o doido Antônio de Macedo e Maria.
  

Trecho de Após o sono de dez anos
romance - Rodrigo Slama 

domingo, 30 de outubro de 2011

Chapeuzinho Vermelho e sua curiosidade sobre os lobos



– Vá na casa da sua avó, sua preguiçosa, e leve a cesta básica do mês – disse a mãe da Chapeuzinho Vermelho, uma menina de dezesseis anos que desde pequena usava um modelo original de chapéu cobiçado secretamente por todas as meninas da região.
– Não tô a fim, mãe! Todo mês eu levo essa cesta, por que você mesma não leva? Eu estou assistindo a nova temporada de Glee e não estou nem aí pra vovó...
Você sabe que aquela velha não fala comigo desde que seu pai morreu naquele acidente de carro.
O acidente tinha sido há cinco anos e meio, desde então, a mãe de Chapeuzinho tinha que ajudar a sua ex-sogra porque ela ameaçava pô-la na justiça e retirar a horta que ela cultivava, idealizada pelo pai da Chapéu. Até hoje, as causas do acidente não foram completamente esclarecidas, mas sabe-se que o pai dirigia, e perdeu o controle. O problema é que ele era conhecido pela sua extrema atenção, não desfocava de nada por nada. Algo fez com que ele perdesse os sentidos. O estranho é que ele estava com o sexo rígido quando encontrado, uma leve mancha de batom em sua cueca e um sorriso de felicidade que espantou a todos. No carro, só estavam o pai e a mãe de Chapeuzinho Vermelho.
Tá bom eu vou, falou a Chapéu, mas vou querer que aumente minha mesada daqui pra frente... todo mês é isso...
Menina, não reclame! Já não basta o colégio caro que te pago, a internet, a conta do celular e todo prejuízo que você me dá...
Tá bom, mas não enche o saco disse a menina, saindo com a cesta e deixando a mãe falando sozinha... Quando estava atravessando a rua, escutou o grito de sua mãe, que dizia a mesma coisa todo mês a mais de cinco anos:
Não vá pelo Bosque... tem muito lobo por lá e pode querer comer você.
Lobo era como as pessoas da região chamavam os rapazes que se aproveitavam de moças ingênuas.
Chapeuzinho Vermelho, que há muito não respeitava sua mãe – movida por uma índole rebelde da qual não sabia a origem –, foi, obviamente, pelo Bosque, o caminho mais curto, pois queria voltar logo para casa e continuar assistindo o seriado que parecia amar mais que sua própria segurança.
O Bosque é um lugar sombrio, um extenso corredor que ligava um lado da pequena cidade a outro, no entanto, a maior parte de sua extensão fica entre prédios antigos, alguns abandonados ou habitado por sem-tetos ou sabe-se lá Deus pelo quê. É conhecido pela quantidade de vagabundos e prostitutas que abriga. É quase que inteiramente calmo, mas não custa redobrar ou triplicar a atenção ao passar por lá, lembrando que só se dever fazer isso em caso de extrema necessidade.
Há muito, a Chapéu queria passar pelo Bosque e ver quem eram os tais lobos que todo mundo falava. – Será que são bonitões como o Cory Monteith? – se perguntava. Ela não sabia e nem tinha coragem para descobrir, mas naquele dia era unir o útil ao agradável... ela queria voltar logo para casa e queria saber quem eram os lobões...
No caminho, um pouco amedrontada, claro, ela cruzou pelo primeiro lobo, mas ele estava vendendo drogas para uma menina magra que só e nem deu atenção a ela. E, conforme foi caminhando em sua longa caminhada, ela cruzou com um lobo lindo, era exótico, tinha os cabelos grandes, a barba por fazer, um olhar tão negro quanto os seus sentimentos pela professora de física, ela olhou para as mãos dele – tinha fetiche com mãos – e se admirou com o tamanho: – Deve ser lutador de boxe – pensou.
O lobo logo flertou com a menina que recusou qualquer contato maior que o visual já existente, e pediu para seguir seu caminho em paz. O rapaz, que já ouvira boatos sobre a linda menina que visitava sua avó mensalmente, se apressou e foi para a casa da velha, tentar esperá-la lá, de preferência na cama. E assim o fez.
Chapeuzinho mal falava com sua avó, e assim que chegou na casa, que, em todo dia 05 de cada mês já ficava aberta, ela foi procurar saber se a velha estava viva.
– Vó! Cadê você? Sou eu...
Sem obter resposta ela pensou: – Ou a velha está dormindo ou morreu de vez. E foi até o quarto para saber como a velha estava. Ela estava dormindo, coberta dos pés à cabeça pelo edredom.
– Nossa, ela parece maior quando deitada – pensou em voz ligeiramente alta.
– Vó, vó, sou eu, Chapeuzinho, a senhora está dormindo?
Com a voz rouca a avó respondeu: – Não, minha netinha, estava esperando por você.
– Netinha? O que deu na senhora? E o que é isso grande aí no meio do edredom?
De súbito, o lobo tirou o edredom e disse: – É o meu pau, e é pra te comer...
Sem reação, sentindo uma mistura de excitação e medo, a Chapeuzinho não correu. Ficou ali parada esperando a ação do lobo, que a tornaria uma mulher.
Durante alguns longos minutos que formaram poucas horas, os dois se divertiram. Na hora de ir embora, a Chapéu perguntou ao novo amigo: – O que você fez com minha avó?
– Eu a comi antes de você chegar, de tão feliz, ela me emprestou a casa e foi fazer uma visita ao lenhador, o porteiro de um dos prédios da rua que faz uns bicos de michê para as madames da região. Acho que queria continuar a brincadeira.
Eles trocaram telefone e ficaram de se encontrar mais vezes. Daquele dia em diante, a Chapeuzinho Vermelho não reclamava mais quando mandada levar a cesta para sua avó. Elas até tinham um assunto em comum agora.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Um domingo diferente


Era manhã, já tarde. Acordava cedo todos os dias, mas naquele domingo precisava descansar. Danem-se os filhos, dane-se a esposa. A única coisa que precisava era de umas horas a mais de sono. De sonhos. Sonhos que demoram a chegar e acabavam logo, como o salário que não queria conhecer o fim do mês, como os momentos de felicidade com a mulher amada, que, por sinal, já fazia tempo que não via.
            Ah, aquela manhã tarde de domingo. Não sabia o que era o aconchego da cama há muito. Mas não tinha mesmo como saber. Acordando quatro e meia e dormindo às duas, quando o ônibus não atrasava mais do que o de costume, não restava mesmo tempo para apreciar as madeiras velhas e mal dispostas que maltratavam as costas de qualquer mortal.
            Mortal. Era mortal, mas esquecia. Acordava rápido e não tomava café. No meio do caminho, na baldeação, comprava um café de cinquenta centavos e um pão do mesmo preço. Se a pressa não fosse tamanha, poderia comprar cinco pães com aquele dinheiro, mas uma extravagância de vez em quando, e, pelo menos de vez em quando era quase todo dia, não fazia mal a ninguém. Era só acordar um pouco mais cedo num domingo ou outro e fazer um bico em algum lugar. Mas não naquele. Dane-se a esposa, danem-se os filhos.
            Era manhã, já tarde. As costas descobriam de onde vinham as dores que sentiam durante todos os dias. À tarde, assistia ao jogo, mas não naquele domingo. 

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Uma breve história de Gabriel, Bolsa Favela


Gabriel saía de casa todos os dias às seis e meia para comprar pão. A mãe trabalhava numa fábrica de calçados da cidade, o pai tinha abandonado a casa e a irmã mais velha só chegava depois das oito da manhã em casa, era camareira de um motel, ou pelo menos dizia ser.           
          Depois da aula de matemática, tinha aula de artes, sua aula favorita. Era opcional, por isso Michel, que gostava mais de futebol do que qualquer manifestação artística, não estaria lá para importuná-lo, chamá-lo de Bolsa Favela, já que era bolsista em um tradicional colégio particular, e o único negro da turma.
           Todos os professores gostavam do Gabriel, exceto a professora de geografia, que tinha feito especialização no Canadá e trabalha há dezessete anos da escola, seis a menos que o professor de matemática, Liovério, que já deveria ter se aposentado, mas tomava muitos remédios e, financeiramente, valia mais a pena passar dois expedientes de sua vida de idoso, mas não caduco, na sala de aula do Nossa Senhora de Fátima, do que vegetar com um salário miserável.
            De repente, ao sair da padaria que ia todos os dias, mesmo nos domingos, Gabriel sentiu uma dor, uma dor como nunca sentiu na vida, a última dor de sua vida. Um tiro. Na cabeça. Um tiro. Ele estava correndo, correndo por medo da chuva que se aproximava. Gabriel estava colocando o pão por baixo da camisa, e foi confundido com um bandido. Dor. Muita dor. O sangue escorria na calçada. Um telefonema. No orelhão da rua, uma ligação avisa a mãe de Gabriel sobre o tiro. Um tiro. A dor. A última dor. O desespero. A tristeza. Policiais alegaram legítima defesa. Um tiro. Os policiais foram absolvidos. Calado. Gabriel foi calado. Os pães ficaram lavados em sangue. Um tiro. A dor. A última dor.
         A escola que deu a bolsa de estudos cedeu a capela e pagou o caixão. Gabriel foi enterrado na comunidade onde morava. Deixou uma mãe triste, uma irmã quase indiferente, uma professora arrependida e um Michel feliz.

domingo, 14 de novembro de 2010

A INVASÃO – parte 1

– Você viu aquilo? – perguntou Pablo a Danilo que, perplexo, não conseguiu responder.
– Hei, cara, vamos... corra!!!
Danilo estava em estado de choque. Nunca vira uma nave daquele tamanho. Na verdade, nunca vira uma nave espacial, muito menos um alienígena.
A tevê noticiava a visita de extraterrestres... A força aérea brasileira toda em peso se posicionava estrategicamente em todas as direções possíveis. Outros países estavam também sendo invadidos, mas até aquele momento nenhum sinal de violência ou ataque era percebido pelas autoridades e pelos irmãos Pablo e Danilo, este com dez anos e aquele com treze.

“Autoridades mundiais firmaram acordo de não atacar até que sejamos atacados. É a primeira vez que a humanidade resolve não combater o desconhecido. Mas será que isso é uma visão pacifista ou medo de represálias... Isso é o que vamos ver após o intervalo, em trinta segundos” – disse Willian Waack, repetindo a notícia que os brasileiros, ou pelo menos a grande maioria, vinha acompanhando pela Globo.
Danilo permanecia atônito... A mãe rezava ajoelhada defronte a uma santa que estava em frente a uma vela acesa. O pai pregava as portas e as janelas, e dizia a todo o momento que estava arrependido de não ter colocado laje na casa ainda. Pablo também estava com medo, todos estavam com medo, mas, estranhamente, sentia que tinha que auxiliar o irmão, que há alguns bastantes minutos deu sinal de que logo iria sair do estado de choque.
Todos aqueles desenhos, filmes, e tudo o que tinha assistido sobre ETs não fazia mais sentido, é como se nunca os homens tivessem podido prever o que estava acontecendo. Já se passaram três dias desde o primeiro contato visual, mas ninguém tinha sido abduzido, ninguém havia morrido pelas mãos – se é que têm mãos, pensava – dos visitantes mais que inesperados. A agonia e a incerteza eram sentimentos presentes em todos, todos os nativos do mundo, mas, até agora, não havia motivo para pânico, e pânico é pouca coisa mais forte que o medo.
A televisão não dava nada de novo, e a mesma imagem era mostrada em todos os canais, sob pequena variação de ponto de vista, ângulo da câmera, qualidade... A Record mostrava uma grande nave sobre o Rio Tietê, ao passo que a Globo mostrava um objeto parado acima do Cristo Redentor como principal foco, o que não os impedia de mostrar algumas outras naves sobre o Brasil e sobre o mundo, que começava a cogitar outras formas de fazer contato... e essas outras formas envolviam armas nucleares.
“É impressionante o tamanho... Especialistas afirmam que os alienígenas podem destruir toda a humanidade e o planeta Terra em menos de dez segundos. O mundo se une na tentativa de não ser destruído por estes invasores...” – Willian Bonner, com muito menos olheiras que seu xará, no JN.
– Maria, você está há mais de três dias ajoelhada rezando... você precisa cuidar dos seus filhos... pare de clamar por ajuda do gesso e olhe as crianças enquanto eu vou, novamente, atrás de comida e água – Juvenal, pai de Pablo e Danilo, falou. O governo tinha proibido de qualquer comércio importante fechar, tais como mercados, farmácias, além de hospitais, unidades de assistencialismos, etc. mas quem respeita o governo nessas horas? Ou qualquer delas?
– Posso ir com você, pai? – perguntou Danilo. – Tenho medo de ficar sozinho.
– Mas sua mãe está em casa... e o Pablo vai cuidar de você.
Contudo, a esta altura, o próprio Pablo, tão forte, que gostava de fazer o irmão aprender o quanto era superior, precisava de ajuda. Um pai, nessas situações, não iria negar companhia aos seus filhos, mas não podia levá-los para a guerra de comida que acontecida lá fora, e nem deixar Maria sozinha na presença de seus santos.
Sem saber o que fazer, Juvenal decidiu tentar convencer sua mulher mais uma vez, em vão. E, na esperança de o tempo passar, decidiu se voltar à tevê mais uma vez... bem na hora em que era anunciado, em um canal ainda não citado, que os invasores tinham feito contato com o presidente da Organização das Nações Unidas, como se o pobre Ban tivesse o mesmo poder que Obama.
Rodrigo Slama (invasão - Cristo)

sábado, 9 de outubro de 2010

A Tartaruga e o Pinto





         As pessoas me perguntam por que não gosto de bichos de estimação. Eu nunca disse que não gostava de bicho, apenas não criava por ter sofrido bastante com os animaizinhos que eu tinha quando criança.
            Minha primeira experiência foi com um pintinho... como eu gostava daquele pintinho, criava como se fosse um cão – talvez o comesse quando virasse um galo, mas até então era o meu melhor amigo. Certo dia, minha mãe entrava em casa com sacolas na mão... doida para guardar logo as compras e acender seu cigarro. Avexada e bruta como sempre, ela pisou no meu pintinho.
            Aquele cena é uma das mais tristes que me lembro... toda tripa da pobre avezinha saiu de seu corpo pelo cu. Não pensei duas vezes... peguei uma caixinha de sapatos e levei meu amigo para uma benzedeira, tia Aladir. Insisti para que ela o rezasse, quem sabe assim ele ficaria bom já que não estava morto, podíamos vê-lo respirando, com muita dificuldade, por sinal, mas respirando. 
            – Tia Aladir, a senhora pode rezar o meu pintinho? Ele tá quase morrendo...
            – Mas, Maurinho, você sabe que só rezo pessoas... posso tentar... se bem que acho que não vai resolver...
            – Mas tenta, tia, tenta, por favor! – pedi olhando como quem olha a mãe do fundo de um poço com os braços estendidos, lágrimas correndo, e esperando por socorro imediato.
            É claro que titia não conseguiu curar meu pintinho, mas espero que ele tenha morrido sem muita dor depois da reza.
                                                   
         Depois do pintinho, eu tive um jabuti, mas naquele tempo chamava de tartaruga. Já ganhei a tartaruga grandinha e tal... Também não tinha nome... ora, se já era uma tartaruga para que inventar outro nome?... Chamava o jabuti de tartaruga mesmo. E detalhe: achava que era uma tartaruga... fêmea.
        – Pronto, Maurinho – disse minha mãe. Agora se eu pisar nesse seu novo bicho eu não vou matar – e me estendeu a tartaruga. – E vê se para de chorar também.
           – Viva! – gritava de emoção.
          Eu brincava sempre com a tartaruga, corria do colégio para poder lhe dar alface outras comidas de tartaruga. Gostava de colocá-la de cabeça para baixo e ver se ela conseguia se virar... mas ela nunca conseguia sozinha. Mesmo quando eu a deixei a noite inteira assim, ela não se virou.
            Nunca tive um bicho tão forte como aquela tartaruga. Botava brinquedinho em suas costas e ela carregava sem problema... e se minha mãe ou qualquer outra pessoa pisassem na bichinha ela não morreria como o pintinho.
            Mas – o tal mas da história – certo dia uns amigos do meu pai tinham vindo beber com ele em casa... beberam até altas horas. Meu pai e os outros bebedores não limparam o quintal depois da noitada, deixando todas as garrafas espalhadas por lá.  Ao acordar cedo – pois era domingo, e sábado e domingo eu sempre acordava muito cedo, ao contrário dos outros dias –, eu logo corri para brincar com a tartaruga...
            Dei um grito estridente e minha mãe, meu pai e meu irmão acordaram imediatamente. Minha tartaruga estava toda ensanguentada e com indícios de morte....
            Acontece é que aquela tartaruga era macho, e resolveu acasalar com uma das garrafas de cerveja do chão. Devido à pressão ou outro fator, a garrafa estourou e cortou fora o pênis da minha tartaruga. Ela morreu devido à perda do sangue... Eu não a levei para a tia Aladir, queria mesmo que a tartaruga morresse... Eu não gostaria de viver sem meu pênis, a tartaruga devia pensar o mesmo. 

domingo, 19 de setembro de 2010

Pedro e a poça d'água

Estava cansado e com sono, caminhando numa rua deserta, quando, de repente, um carro passou numa poça e jorrou água suja em Pedro, que despertou definitivamente. Ele geralmente não prestava muita atenção em coisas como uma poça no chão, afinal, a rua era deserta e nunca passava carro lá. Assim que deu conta de que todo o uniforme estava molhado, Pedro resolveu voltar para casa e mudar de roupa para não ir todo imundo para a escola. Por sorte, ele estava ainda acerca de um quarteirão de casa.
O garoto molhado estava decidido a tomar banho, mas estava muito frio para isso, então ele resolveu apenas trocar de roupa... Então secou o rosto e os baços, trocou de camisa e seguiu para a escola, já que estava indo mal em matemática, disciplina do primeiro tempo, e não podia perder uma aula a mais... sua mãe o mataria se ficasse em recuperação de novo.
Três dias depois, assim que saiu do banho matinal antes da escola, Pedro olhou no espelho e percebeu que estava com manchas vermelhas nos braços e no rosto, justamente onde a água jogada pelo carro tinha batido. Ele mostrou à sua mãe e lhe contou toda a história. Foi ao médico imediatamente. Ana, mãe de Pedro, parecia levemente feliz com aquilo, pois havia acabado de fazer um plano de saúde para a família e estava doida para estrear os serviços caríssimos que vinha pagando.
Após a consulta, o médico disse que não tinha sido nada grave, apenas uma micose... Pedro só precisaria usar uma pomada e não coçar, principalmente não coçar. E era justamente o que Pedro vinha fazendo no caminho de casa até o consultório do dermatologista... Na verdade, desde a noite, anterior ele vinha coçando o corpo, principalmente os braços e o rosto.
De lá, eles seguiram imediatamente à farmácia de manipulação para encomendar a pomada – como Ana não tinha entendido a letra do médico, só fez entregar a receita ao farmacêutico. Mesmo doente, Pedro ficou feliz, pois não precisaria ir à aula naquela quinta-feira, mas seu corpo não parava de coçar e coçar... A pomada incomodava, ardia... E a vontade de coçar só fazia aumentar. Aquela pomada deveria aliviar a irritação, mas não estava adiantando de nada, muito pelo contrário. Pedro já estava ficando com raiva daquele incomodo todo.
A irritação era tão grande que ele acabou tirando a pomada, e continuou a coçar. Ele passou gelo, o que não adiantou; fez umas receitas caseiras que pegou na Internet, mas nada resolvia, absolutamente nada. E um dia depois de ter ido ao dermatologista, Pedro voltava ao consultório com a mãe. Agora, até mesmo os seus olhos estavam vermelhos: não tinha pregado os olhos durante a noite.
Ao ver o estado do rosto e dos braços do rapaz, o dermatologista ficou assombrado, perguntou o que mãe e filho fizeram de errado, afinal, passar pomada e ficar sem coçar não é uma coisa muito complicada para uma mãe e um menino de treze anos fazerem. Mas era o que parecia.
O médico conferiu a pomada que havia prescrito, mas a receita estava correta. Então ele pediu para conferir a pomada comprada, e para sua surpresa era a pomada errada. Pedro vinha usando uma pomada para outra enfermidade que, ao entrar em contato com a micose, causou esse efeito colateral.
– Eu falei pra você conferir o nome do remédio, menino...
– Mãe, o cara da farmácia me deu esse e mandou conferir com a cópia da receita, pois a que a gente deixou lá tava no arquivo ou foi pro Ministério da Saúde, sei lá...
– E você não conferiu por quê?
– Porque esqueci a receita...
– Bem feito... isso é pra você aprender a lembrar das coisas.

Para a sorte do garoto, o médico dermatologista deu um jeito. Ele mesmo aplicou uma pomada que imediatamente aliviou a irritação e a coceira. Com três dias, Pedro já havia notado a diferença e não passara a noite querendo arrancar a pele do braço e do rosto. Quem não gostou nada da história foi a irmão de Pedro, Cíntia, que estava escrevendo um conto sobre mutação... era a história de um menino que se expôs a determinado produto e ganhou o poder de camaleão... mas não era um herói esse protagonista, era o vilão da destruição da paz do mundo.