Cara de médica, família de
médica. Sonhava desde menina em ser médica. Era uma aluna semiexemplar...
tirava boas notas, mas não mostrava muita humanidade. Ela era aquela menina que
questiona o professor como um arguidor de banca de pós-graduação, só que sem
saber de quase nada. Ao ter o questionamento sempre respondido e contradito,
não concordava. Tinha lido em algum lugar que era diferente... O pai, que era
médico, disse que tal conceito de biologia era diferente... A mãe, também
médica, disse que tal concepção de linguagem era diferente... A irmã, estudante
do último período de medicina, disse que o cálculo do problema de matemática era
diferente. Estava tudo errado e não tinha argumentos para sustentar sua indiferença.
Médica, sim. Ela seria médica em
breve. Claro que passaria no vestibular, mesmo com as cotas injustas que diminuem
as chances dos filhos de quem trabalhou a vida inteira para pagar uma boa
escola particular. Nicole acreditava em meritocracia. Achava que, ao estar
naquela escola de ponta paga pelos seus pais que herdaram a profissão elitista
dos seus avós, tinha as mesmas oportunidades de um aluno de escola pública.
Não, mentira. Ela não tinha as mesmas oportunidades, na verdade, ela era
prejudicada pelas malditas cotas. Malditas cotas! Uma discriminação com quem é
negro, porque está dizendo que o negro não tem a mesma capacidade de alguém
branco, loiro, de olhos claros e família de médicos.
Nunca maltratou os funcionários
terceirizados da escola... mas nunca cumprimentou o porteiro ou o faxineiro...
Na verdade, nunca reparou nos faxineiros. Mesmo dispensando uma educação falsa
e, por várias vezes, falha aos professores e demais membros da equipe
pedagógica, Nicole era a esperança da escola. Teremos, certamente, uma aluna
aprovada em medicina este ano e garantir os mesmos resultados dos anos anteriores.
Essa menina vai estampar nossos outdoors e fazer campanha com curativos
coloridos no nosso site. Vamos ter muitos alunos... Inclusive, ela é boa
candidata para tirar nota 1000 na redação.
Mediana. Não foi a primeira
colocada. Se não fossem os cotistas, teria até ficado numa posição melhor no
SISU. Não importa. O que importa é que Nicole é Federal. Já é médica. Nas suas
redes sociais, médica em formação era o que mais se via... mesmo antes da
matrícula na UFRN, afinal, ela já estava se preparando há anos para entrar na Universidade.
Após a festa, regada a muita carne de primeira e whisky 18 anos, Nicole iria
para Miami comprar as suas roupas para começar a faculdade. Trouxe várias
sandálias e sapatos brancos, bolsas de marca, roupas de grife... mas o
principal era o jaleco. Desde pequena, já tirava fotos com jaleco.
Era muito trabalho. Estudar
medicina não é fácil pra ninguém. Estudar medicina e ter uma vida social
badalada é mais difícil ainda. Fora as calouradas, era preciso continuar
frequentando as festas disputadas do seu nicho social. Mas ela era guerreira.
Ao contrário dos cotistas, ela tinha mais inteligência para conciliar os
estudos às demais atividades. Ganhou um carro antes da viagem à Miami. Um carro
importado, claro, quem é que dirige carro popular na faculdade de medicina? Só
quem entrou pela cota. Como aquele carinha que era farmacêutico e aproveitou a
cota por ser negro. Nada a ver. Ele já tinha até carro, tinha uma profissão.
Como alguém se submete a um programa que te reconhece como alguém inferior?
Passaram os primeiros semestres.
Começaram os estágios. Não sei por que tem que estagiar em hospital público
também... era mais fácil eu ficar no hospital da minha família, é lá que eu vou
trabalhar! E a especialidade? Está chegando o final do curso. Nicole não quer
cuidar de criança, detesta crianças. Desta velho também, Deus a livre de ser
geriatra. Com cardiologia também não queria mexer, só iria cuidar de velho,
gordo e velho gordo. Não era muito chegada a sangue... não queria fazer
cirurgia. De problemas de pele, ela também se esquivava... tem cada gente
perebenta, não! Anestesiologia parecia
ser uma área legal. Ninguém era anestesista na família. Dava grana e, em tese,
era só dar injeção.
Assim que formada, se tornaria a
anestesista chefe do hospital. O anestesista que ocupava este posto foi
convidado a cuidar dos residentes. Só faria supervisão e, de quanto em vez,
iria para a sala de cirurgia. A nova médica da família agora tinha um jaleco de
médico. Tinha uma sala de médico. Trabalhava no ramo médico de sua família. E
continuava sem enxergar o faxineiro, nem dar bom dia ao porteiro e desconfiando
sempre de alguém que fala diferente daquilo que os seus familiares e amigos
médicos falam. Médico sabe mais que todo mundo, menos se o médico tiver entrado
pela cota.