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quarta-feira, 20 de maio de 2020

Gari




Era gari. Quando entrou, não havia concurso. Agradeceu, passou a ter uma renda fixa, era funcionário público estatutário. Todo domingo, ia pra missa. Gostava de rezar. Carregava o terço de Fátima no pescoço. Não falava muito. Não pensava muito. Apenas trabalhava, recolhia lixo e rezava. Casou moço. Sua esposa não sabia ler e escrever. Era assim de pai e mãe. Ele sabia escrever e ler. Pouco, mas sabia. Durante o trabalho, não precisava disso. Precisava só usar luva, boné e as pernas. Trabalhava no caminhão. Andava pendurado por cinquenta metros e corria mais cinquenta a cada esquina. Era tanta sujeira que banho não bastava para tirar o óleo da sua pele. Ele e a mulher já estavam acostumados. Passaram anos. Ele se aposentou. Não aconteceu nada que mudasse sua vida.

texto de 2015
imagem do Google

sexta-feira, 26 de abril de 2019

Conversas de chá


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Não é que seja careta, mas não frequento muitos bares. Não enfrentaria uma espera mortal pelo transporte público caótico do meu bairro, nem pagaria caríssimo por um taxi. Não é nem medo da Lei seca, mas, de fato, de verdade, sem hipocrisia, eu, realmente, não acredito que é legal dirigir após beber. Nunca fiz isso, e não estou muito disposto a testar a minha perícia etílica. Enfim... esta história se passa num café.
Na mesa ao lado, duas amigas conversam. Apesar de estarem numa das cafeterias mais legais, elas pediram chá e broas. Nem sei se chá combina com broas... só tomo chá como medicamento. Claro que, além de curiar o pedido, eu atentei os ouvidos para escutar um assunto que me interessa: religião.

– Teresa, você não sabe o que aconteceu esse final de semana. Gabriel está impossível.
– O que foi? – perguntou a amiga.
– Eu disse a ele: – Vá dormir que amanhã a gente vai cedo à missa. E ele respondeu: – Mãe, eu tenho dúvidas se eu quero ser mesmo católico, disse o filho.
– Olha só, Tereza. Olha o que esse menino me disse!
– O que você falou?
– Na hora, eu tive vontade de brigar, mas eu falei: – Olha, a gente pode sentar e conversar bastante sobre isso daí. – Isso é bem coisa do pai – disse mulher. – Gilberto já mudou não sei quantas vezes de religião. Eu sabia que isso um dia ia acabar acontecendo, mas ele só tem oito anos. 
– Mulher!... – espantada, a Teresa exclamou. 
– Você não fez a primeira eucaristia, Gabriel? Você não vai à missa comigo todo domingo? Você não presta atenção no que o padre fala?
– E ele disse o quê?
– Não sei, mãe. Não estou muito convicto – repetiu a mãe. – Vê se pode, Teresa. O que diabos um menino de oito anos tem na cabeça pra falar em convicção? Olha, nessas horas o padre Manoel faz falta... Ele ria saber o que fazer... agora estou enrolando pra continuar a conversa com Gabriel.
– Sim... o que aconteceu com o padre Manoel?
– Olha, o bispo não quis o padre mais na paróquia. Falou que, enquanto ele estivesse vivo, o padre não comandaria igreja nenhuma em sua região.
– E o que o padre Manoel fez?
– Mulher, ele é carioca, cheio de gírias, muito simpático. Agora, ele está numa igreja lá no Acre.
– No Acre?
– Sim... Encontrei com ele na Jornada Mundial da Juventude, no Rio. Ele disse que tinha sido perseguido pelo bispo... ele era muito divertido, as pessoas não iam mais às outras paróquias, aquela igreja sempre ficava lotada. Transferiram o padre por isso...  
– Vish...
                                                                                                                            

Rodrigo Slama 25/05/2015 

segunda-feira, 24 de setembro de 2018

O cidadão de bem



– Essa cidade tá muito perigosa!
– O país todo tá. Pega.
– Mas tá foda, pô. Esses dias meu pai foi assaltado, levaram o carro dele.
– Foi mesmo? Como ele tá?
– Tá puto... não tinha seguro e encontraram o carro batido. Pega.
– Peraí... Mas ele sofreu alguma violência física?
– Não, pô... mas é foda.
– É...
– Se o cidadão de bem andasse armado... isso não acontecia. Pega.
– Que conversa... Toma.
– Se meu pai tivesse armado, não teriam roubado ele.
– Como que foi o roubo?
– Ele tava entrando no carro e renderam ele.
– Por trás?
– Foi, pô... foda. Oh, pegaí.
– Mas se ele tivesse com arma na cintura do que iria adiantar?
– Se o bandido soubesse que todo mundo podia tá armado não iria assaltar. Passa aí.
– Ou então já ia chegar atirando.
– Tu acha?... Toma.
– Tô de boa. Claro!
– Depois que inventaram esse negócio de Direitos Humanos só a gente que se ferra... bandido tá tudo solto. Apagou.
– Toma o isqueiro. Né assim não! Direitos Humanos não defendem bandido não... na Declaração só diz que todo mundo tem que ser julgado de acordo com as leis.
– Lei só serve pra bandido... Dá pra conversar com você não, mano!
– Pô, negão, pensa um pouco! Tu acha que andando armado você vai tá mais protegido?
– Se o bandido souber que todo mundo anda armado... não vai assaltar. Tem comida aí?
– Tem pão com mortadela lá na cozinha... pega lá.


* Baseado (rs) em fatos reais...

sábado, 2 de setembro de 2017

Um pênis de duas cabeças

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- Toda noite eu acordo com sua mão no meu pênis. Aquilo já estava virando um pesadelo. Eu não aguentava mais ver o meu próprio corpo ser violado daquela maneira. Não queria ser tocado daquele jeito, não queria ser estimulado por ele, seu juiz...
- Toda noite é a mesma agonia. Eu demoro a dormir... tento dormir depois dele, mas ele sempre dá um jeito de acordar e me masturbar enquanto eu durmo. Ele diz que o meu pênis é dele, que ele tinha direito sobre o meu corpo. Mas isso é um absurdo! Eu não aguento mais aquilo e, por isso, procurei a justiça...
O outro ouvia tudo aquilo calado.
- E parece que tudo piorou. Durante o banho, com a desculpa de limpar, ele aproveita e me toca daquele jeito imundo. Eu reclamo, ele para, mas volta. E ainda vê pornografia na minha frente... eu nunca gostei disso, seu juiz, mas ele sempre foi tarado!


No julgamento, o juiz analisa o caso dos irmãos siameses que dividem o mesmo pênis. 

sexta-feira, 25 de agosto de 2017

O rolezeiro

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– Bora, cara! A gente vai se atrasar.
– Calma. Tô terminando aqui.
– Que merda, velho. Parece uma mulher se arrumando... puta-que-pariu!
– Parceiro, eu tô terminando aqui.

Na festa, todas mulheres olham pra ele. Estava de bermuda branca, camiseta de marca comprada no camelô do Alecrim, elásticos coloridos num aparelho que não precisava usar, óculos espelhados - apesar de ser noite - e um corte de cabelo bem peculiar.
– Tá vendo, parceiro? Todas as mulheres estão me olhando...
– Percebi.
– Quer fazer uma aposta?
– Que aposta?
– Quem pegar mais mulher aqui na festa come o cu do outro?
– Como é? Olha as ideias!
– Bora? Sabe que vai perder, né?
– É impossível você pegar mais mulher que eu aqui.
– Então bora apostar o cus!
– Tá apostado, então.

Duas horas depois, a Festa dos anos 80’ terminou. O rolezeiro não pegou uma mulher sequer. O amigo, que não estava interessado em perder a aposta, mas, ao mesmo tempo, não tinha pretensões de ficar com muitas meninas, ficou com uma garota com quem trocou telefone e promessas de reencontros.

– Porra, parceiro... Não sei o que aconteceu hoje. Toda festa que eu vou as minas ficam loucas comigo.
– Mano, você tem que analisar cada situação. Tem que saber qual é o público da festa. Tava na cara que você não ia pegar ninguém vestido desse jeito.
– Foda. Agora já era, vou ter que te dar o cu.
– Relaxa, cara. Quero comer teu cu não.
– Como é?
– Não quero comer teu cu! Só apostei porque sabia que você ia perder.
– Que papo é esse, parceiro?
– Ué?

– Aposta é aposta... pode botando esse pau pra fora e comendo meu cu, parceiro!

sexta-feira, 1 de julho de 2016

Beatriz e Tiago



Aos quatorze anos, ele não era um adolescente normal como todo adolescente deve ser. De manhã, ia para a escola. Não sentava nem na frente e nem no fundo, não ficava quieto, mas não era do grupo da conversa. À tarde, ele ia pro inglês e aprendia novamente o que via nos jogos. Além do inglês, fazia judô. Nunca passou da segunda faixa, mas não achava tão ruim usar o quimono. À noite, revezava seu tempo entre jogos on-line e o pornhub, mas estudava quando estava perto das provas, sobretudo para as provas de recuperação.
Nunca namorou, mas era seu sonho. Todas as noites, antes de dormir, pensava na menina mais bonita da sala, que era disputada pelos caras mais populares das festas que ele ia e nas festas às quais ele não era convidado. Nos seus devaneios, eles eram um casal. Namoravam há tempos, comemoravam datas importantes, trocavam presentes... Na vida real, eles mal se falavam. Pertenciam a grupos tão distintos que não tinha nem como conversar.
Beatriz era inteligente, linda e gostava de ler. Tiago era medíocre, pálido e assistia a filmes dublados. Ela era de classe média, ele era riquíssimo. Um dia, mandou flores, mas não assinou o cartão. Quem entregou foi o coordenador da escola que disse ser de um admirador secreto. Durante as noites, ele sonhava antes de dormir. Durante as noites, ela estudava antes de sonhar.
Aos trinta anos, Beatriz realizará todos os seus sonhos.  

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Rastro de feijão descomido






Fazia três dias que eu não cagava. Eu nunca tinha ficado entupido antes. Na verdade, o meu problema sempre foi o contrário... eu, geralmente, cago demais. O problema é que minha mãe fez uma farofa muito boa no natal e sobrou quase tudo. Como adoro farofa e ninguém aguentava mais comer resto da ceia, me esbaldei naquele balde de farofa temperada. Comi tanto que a merda ficou presa no meu intestino e não saiu nem com reza braba.
Meio envergonhado, pedi ajuda à minha mãe. Me deu laxante. Um quarto do recomendado. Pense num laxante porreta! Estava no curso. Tinha tomando o remédio na hora do almoço, antes de sair. Durante as primeiras aulas, não senti uma pontada sequer no bucho. Achei que não iria fazer efeito e teria de tomar de novo. No intervalo, aproveitei a caminhada até a cantina para peidar um pouco... já estava começando a me sentir aliviado, mas vontade de cagar que é bom nada. Bom... que eu cagaria só em casa, no conforto do meu sanitário.
Fim da aula. Fui sem muita pressa, mas sem a calma de sempre, para o ponto de ônibus costumeiro. Caminho até em casa era breve, mas que se alongava devido ao horário, ao trânsito e à quantidade de pessoas espremidas no coletivo. Consegui pegar lugar sentado. Quase sempre eu conseguia, porque a o curso ficava antes do centro, e lá que subia muita gente. Sentei na janela, pouco antes do meio do ônibus. Ouvia Kate Perry no celular. Gosto muito de Kate Perry, quase tanto quanto de Motörhead.
Estava quase na metade do caminho quando comecei a ouvir um ronco na minha barriga. Não era fome, tinha comido uma coxinha com bastante catchup, mostarda e uma maionese que que ficava quase todo horário de funcionamento da cantina do lado de fora da geladeira. Sabia que aquele ronco significava merda. Comecei a rezar para o ônibus chegar logo. Sabia que iria demorar ainda mais quase uma hora para chegar ao meu destino. A cada freada, era um susto diferente. Queria peidar, mas tinha medo. Queria cagar, mas não podia. Pensei em descer do ônibus e procurar algum banheiro, mas acreditava que conseguiria chegar em casa na hora. Eu tinha de chegar em casa na hora!
A velha que estava sentada do meu lado desceu, sentou uma menina bem bonitinha com a camisa do Helloween. Eu já estava sem os meus fones de ouvido, porque a Kate Perry estava me deixando mais nervoso. Percebi que a menina ouvia Mc Ludmilla. Ela devia achar que a camisa era da festa de halloween, nem devia saber que é de uma banda. No tempo em que pensava nisso, me senti um pouco aliviado, até que o primeiro peido saiu. Queria muito que ele não tivesse sido barulhento e molhado, mas já era. Teria de segurar o cu agora. Uma freada era uma mancha além da minha cueca, mas na minha dignidade.
Pelo jeito, tinha saído mais merda do que eu pensei. Toda vez que o ônibus passava num quebra-molas, eu me sentia escorregando da cadeira. Até que a vontade apertou de vez. Eu já estava preocupado, mas a sensação era de que eu iria explodir pelo furico e eu tive que desapertar o caneco. Saiu merda. Saiu muita merda. Saiu mais merda do que alguém em plenas condições físicas poderia produzir. Era tanta matéria orgânica que eu sentia escorrendo pelas minhas pernas, entrando nos meus tênis e deixando no ar um cheiro de peido no banho incontrolável.
As pessoas começaram a tapar o nariz. A menina ao meu lado disfarçou e pediu parada. Não tinha mais gente de pé, mas as pessoas que estavam sentadas logo se levantavam para abrir as janelas superiores. Alguns arriscavam a colocar a cabeça para fora enquanto o casal de idosos atrás de mim comentava que esse governador desgraçado não estava arrumando o esgoto da região.  Nesse momento, liguei o botão do foda-se. Já estava cagado mesmo, se tivesse que sair mais, que saísse. E saiu. Continuou saindo mais e mais por alguns segundos, talvez minutos.
Enfim, chega meu ponto. Entre o ponto e a minha casa ainda precisava andar uns oitocentos metros. Levantei a alça da minha mochila para ela não encostar na minha calça e segui meu caminho. Os meus pés, mais o direito que o esquerdo, estavam, literalmente, encharcados de bosta. Nos primeiros cinquenta metros, fui deixando um rastro grosso de bosta que se estendeu mais modesto até a porta de casa. Parecia uma vaca, mas ao invés de capim saíam uns carocinhos de feijão.
Cheguei todo cagado. Minha mãe quase vomitou. Mandou eu tirar a roupa no quintal mesmo. Não deu pra reaproveitar a cueca. Não compensava lavar. Enquanto eu seguia para o banheiro, minha mãe tapava o nariz com uma mão e empunhava o cabo de uma vassoura na outra. Ela pegou minhas roupas, colocou no tanque e deixou a água correr como se não houvesse conta no fim do mês e tacou todo tipo de produto de lavanderia em cima.
Depois de estar de banho tomado, comecei a rir da história. Pensei como as pessoas do bairro iriam reagir ao ver o rastro de feijão descomido que jamais levaria para uma casa de doces, mas para o primeiro banheiro químico do carnaval de Olinda. E fiquei com certa pena do cara que iria limpar o ônibus depois e encontrar aquela poça de merda fedida nos pés do quinto assento do lado da janela direita. 

sábado, 31 de outubro de 2015

Pastor 03



– Pastor!
– Você novamente, irmão? O que foi desta vez?
– É que eu estive pesando...
– É justamente este o seu problema, meu amado! Você pensa demais... deixa as postas de sua mente aberta para o inimigo lhe colocar dúvidas sobre a sua fé! Amém?
– Amém. Mas, pastor, eu oro, faço jejum, contribuo com os dízimos e ofertas, compro todos os livros da igreja... invisto muito dinheiro na Obra do Senhor e não me sinto pleno!
– Meu irmão, esta sua inquietude só quer dizer uma coisa!
– O quê?
– Você precisa participar mais da Obra do Senhor! Amém?
– Amém. Mas como, pastor?
– Você precisa, além de dinheiro, dar o seu tempo para Deus. Por exemplo, o seu dia tem vinte e quatro horas, certo?
– Certo.
– Você dá duas horas e quarenta minutos para Deus?
– Não, pastor... certamente, não!
– Então! Você precisar ser obreiro em nossa igreja! Tenho certeza que o seu coração se encherá de Jesus e você não pensará mais em nada que lhe tire o foco em Cristo. Amém?
– Amém.
– A partir de amanhã, você pode sair do seu trabalho e vir direto para a igreja. Você vai começar pela provação da faxina. Amém?
– Amém...
– E todo final de semana você vai passar aqui!
– Mas e quando eu vou me divertir?
– Amado, você se divertirá aqui na igreja mesmo! O Senhor habitará o seu coração e lhe dará a alegria de Davi.

***
Numa reunião com os obreiros...

– Olha aqui! Quero saber quem foi o safado que pegou a grana dos dízimos e ofertas do culto de ontem à noite! Está faltando muita coisa! Quem era o maldito responsável pelo apurado de ontem?
– Era eu, pastor! Eu dei parte do dinheiro para uma irmã que passava necessidades... ela me disse que estava sem poder comprar alimentos...
– Maldito dos infernos! Como você, seu cretino, ousa tocar suas mãos pecaminosas no meu dinheiro!
– Achei que o dinheiro fosse para obra de Deus!

– E é! E não tem nada que dar para as pessoas! Elas que têm que nos pagar! Maldito seja você! Eu te amaldiçoo, ialamá baloquenchë, jucunataque! 

domingo, 25 de outubro de 2015

Meninas, mulheres




A primeira vez, me senti suja. Ele levantou o meu vestido e tocou em mim. Resisti, ameacei gritar. Foi embora. Não sabia se agradecia a Deus pelo livramento ou o culpava por ter permitido aquilo. Chorei, tomei banho. Enquanto lavava os meus seios ainda muito pequenos que tinham despertado o desejo imundo dele, pensava se aquilo aconteceria de novo.
Da segunda vez, ele veio preparado. Tapou minha boca antes que eu pudesse gritar chamando por alguém que estivesse distante. Tudo era longe. Com a mão livre, ele apertava forte os meus peitos, e enquanto eu sentia seu pau endurecer, ele me alisava entre as pernas. Me lambia o pescoço e cheirava a mão. Um barulho vindo de fora interrompeu sua festa.
Eu pensava o que tinha feito contra Deus para que ele permitisse isso. Antes que eu pudesse pensar em contar para alguém, ele veio até meu quarto à noite. Me ameaçou. Mataria a minha mãe, o meu irmão e depois me mataria. Apertou meu pescoço até me sufocar para provar o quanto sua palavra valia. Chorando, não produzi nenhum som e toda hora tentava não olhar na cara dele. Rezei, mas não dormi.
Desatenta, quebrei um prato enquanto preparava o almoço. Mais do que por esta bobagem, apanhei com cinto, levei murro. Me chamava de puta, dizia que eu era uma vadia. Se minha mãe não tomasse conta, acabaria engravidando de um vagabundo. Chorei, mas sem fazer barulho. Eu tinha ódio, eu tinha muita vontade de fugir, mas não tinha para onde. Xingava Deus por isso.  
À noite, naquele mesmo dia, eu ainda estava toda marcada por conta da surra. Fui dormir cedo, sono leve, preocupado. Meu coração apertava, eu remoía uma culpa que achava ser só minha. Senti aquela mão na minha bunda. Ele puxou minha calcinha, abriu minhas pernas e me penetrou. Sem soltar um pio, tentando nem chorar, virei mulher aos dez anos de idade. Não sei se doía mais lá embaixo ou no meu coração. Se eu pudesse, eu não o mataria. Eu mataria Deus por isso.
Minha mãe quase não falava comigo. Quando falava, era pra mandar fazer alguma coisa. Eu queria contar pra ela, mas achava que ela já sabia. E toda noite ele vinha no mesmo horário. Fazia sempre quase as mesmas coisas. De vez em quando, mandava eu fazer algo nojento. Sem soltar um som, fazia o que ele mandava. Durante o dia, ele me xingava. Não deixava mais eu ir pra escola, porque lá eu viraria puta. Puta era a palavra que mais usava para me agredir. Mal sabia o que era puta, mas eu preferia ser qualquer coisa do que ser eu.


terça-feira, 22 de setembro de 2015

Pastor 02




– Pastor.
– Sim, meu filho.
– Eu estou com um dúvida.
– Novamente, irmão?! Vejo que o inimigo está implantando a inquietude no seu coração. Se o seu coração não tem Deus, o Diabo toma conta, Amém?
– Amém. Pastor, é justamente sobre o coração que eu gostaria de falar.
– Pode falar, irmão! Deus me deu o dom da palavra, encontrarei a palavra certa para lhe confortar, Além?
– Amém. Pastor, é que eu estou com dúvidas sobre a minha orientação sexual.
– Como assim, irmão?
– Faz um tempo que eu tenho desejos por homens. Vivo trocando de namorada e não consigo gostar de nenhuma.
– Isso é coisa do Satanás! Isso é coisa daquele que quer lhe arrastar da igreja para te jogar numa sauna cheia de veados. O Satanás quer que você gaste todo seu dinheiro com perfumes, roupas de marca... ele está implantando esses desejos no seu coração para você ter cada vez menos dinheiro para o dízimo, para as ofertas e para os propósitos. Deus não gosta de gays, Amém?
– Amém. Mas, pastor, eu estou dando quase todo meu dinheiro em propósitos para esses meus desejos pararem... Eu andei lendo a Bíblia e não vi Jesus condenando em momento nenhum a homossexualidade.
– Mas você não pode confiar só no que sai da boca de Jesus de acordo com o evangelho. Em Levítico 18:22, Jesus fala “Não se deite com um homem como quem se deita com uma mulher; é repugnante”, Amém?
– Amém. Mas, pastor, este livro não foi escrito por Moisés... muitos e muitos séculos antes de Jesus?
– Está vendo, irmão, como o inimigo está te cegando! Antes mesmo de Jesus nascer ele já era Deus... e ele quem falava com Moisés. Amém?
– Amém.
– Olha. Você precisa deixar de frequentar festas. Você vai ficar em casa nos finais de semana lendo os livros que o bispo escreveu. Amém?
– Amém. Mas, pastor, não é melhor eu ler a Bíblia?
– Não, amado. Leia os livros do bispo que ele já leu a bíblia e deixou mais fácil de entendê-la. Pra entender a Bíblia, você precisa estar cheio do Espiro Santo, caso contrário, o inimigo te encherá de dúvidas. Amém!
– Amém, pastor!

Mais textos aqui no blog em Pastor e outras histórias

sábado, 19 de setembro de 2015

O comedor da escola



Bombado. Notas baixas. Uma ou duas reprovações. Alto índice de ocorrências por indisciplina. O comedor da escola é um sujeito bonito por fora e cheirando a ovo cozido e batata doce por dentro. As meninas o adoram... e ele, geralmente, se aproxima das estudiosas e nem sempre é pra conseguir cola.
Se fosse apenas cola... O comedor da escola já foi pego colando, já foi pego fumando, já foi pego estuprando. “Cu de bêbada não tem dono” é o lema do seu grupinho de amigos, que transcende a Constituição, mas não fere o regimento. Eles têm tempo pra beber, trepar, viajar, mas não estudam...  são os meninos que dormem durante as aulas, porque acordaram muito cedo pra treinar, como eles chamam a ida à musculação.  
Todos bebem com o comedor da escola. Todos resenham com ele. Ele vai embora bêbado das festas com o carro cheio de gente. O próprio carro que dirige aos dezessete anos sem habilitação, sem cinto, sem medo. Chega em Pirangi com a turma, continua bebendo com o som alto. Uma das meninas agora já é mulher. O arrependimento será esquecido nos próximos meses, nos próximos porres, quando passar na Federal.
O comedor da escola não vai passar na Federal, mas vai ser doutor! Já no primeiro semestre do curso de Direito da UnP, consegue estágio no escritório do pai, mas quer ser juiz como a mãe. Maldita OAB! Agora, ele tem de estudar. Com dinheiro, dá-se um jeito. Já tem sala própria, tem alguns clientes importantes...
           Está defendendo um rapaz de dezessete anos. Bombado. Notas Baixas. Uma ou duas reprovações. Alto índice de ocorrências por indisciplina. Uma batida com o próprio carro que dirigia sem habilitação, sem cinto e sem medo. Uma morte de um mendigo que dormia na calçada na madrugada. Causa fácil. Mais uma vitória.

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Crente que é gente




Carla era uma mulher sem muito amor. Era mãe de dois filhos já na faculdade, mas que moravam com ela. Era filha de pais aposentados que moravam no interior, mas que se falavam todo dia pelo telefone. A protagonista desta curta história era casada há 21 anos, e, durante muito tempo, o seu sonho foi estudar e trabalhar, mas tinha que cuidar da casa, cuidar dos filhos, cuidar do marido e das coisas da igreja.
            Enfim, para a sua felicidade, Carla conseguiu, depois da maturidade, entrar numa faculdade. Ela escolheu uma profissão de status, que lhe conferiria o respeito que ninguém, nem marido nem filho algum, já a haviam dispensado. Catou seus documentos e conseguiu um financiamento federal para estudar Direito numa decente universidade do seu estado. Ah... ela estava tão feliz... agora, como a sua irmã, que era médica formada na Universidade Federal, ela teria algum valor... Direito era um curso muito belo... poderia, além do diploma, lhe conferir dignidade, como se só quem tivesse um título emoldurado na parede tivesse o direito inalienável, como anos atrás, de ter dignidade neste país.
            Foi uma luta terminar o curso... no início, teve que se virar para pagar o material, os livros e ainda pagar pelos trabalhos e provas que não conseguia fazer... Afinal, não é uma, duas ou dezoito disciplinas que não se acompanha bem que fará um estudante universitário sair com menos bagagem, não é mesmo? E assim ela foi... fez os estágios, colou o grau... o marido, nestes cinco anos, havia sido promovido então eles já vinham pagando o FIES para não deixar tudo pra depois...
            O problema, caro leitor ou leitora, é que quando você paga para fazerem seus trabalhos, quando você paga para fazerem seus resumos, fichamentos, só te darem a parte pronta num seminário ou mesmo paga para fazer uma prova em dupla, você acaba saindo da universidade do mesmo jeito que entrou. Agora, Carla era uma doutora como diz no popular, mas não conseguia passar no exame da OAB e, consequentemente, exercer a sua profissão. Tinha um diploma na parede. Tinha apenas um diploma na parede.           
            O problema, sabe, não é nem a falta da carteira da Ordem ou o fato dela ter pago pelos trabalhos, enfim... O problema todo é a sua arrogância... a sua prepotência. Parece que, mesmo não tendo entrado de verdade no mundo do direito, a empáfia que alguns profissionais carregam a acompanha. Por isso, ela arruma briga com o padeiro, com o porteiro, com o professor dos seus filhos... Se um dia você cruzar com ela, não ouse falar em leis, direitos ou constituição em sua frente ou pelas costas, ou você será vítima – sim, vítima – de um discurso armado, pronto, no esqueleto, faltando apenas a cereja, a contextualização temporal e local para que ela tente passar por cima de você...
            Sim... como não conseguiu muita coisa em sua vida, agora, a sua alegria é passar por cima do ego alheio, da moral, da verdade... tudo que estiver acompanhando o seu opositor – todos que não concordam com ela são seus inimigos – será alvo de seus argumentos ancorados no senso comum com algumas palavras-chave prontas, em stand-by aguardando o momento oportuno.
          Quando consegue, raramente, passar por cima de alguém menos instruído, Carla se sente mais gente, mais ser humano, mais advogada formada... o seu marido, pobre coitado, nem entra mais na onda de sua esposa. Ele também participa de sua igreja que prega o amor eterno entre os casais, o ‘felizes para sempre’... e acha que é uma provação o que ele passa... como se o seu deus quisesse que ele sofresse tanto vendo a mulher pregar e ler uma coisa nos púlpitos da igreja e fazer absolutamente o contrário em sua vida real.
            É, meu amigo ou amiga, eu me preocupo muito com este tipo de pessoa que quer se tratorar através das outras, estes parasitas que têm seu ego inflado quando suprimem da forma mais baixa e mesquinha o direito dos outros. Quando eu encontro com Carla, eu finjo que ela ou eu somos um personagem... e tento não levar para o lado pessoal as asneiras que diz. Pra mim, agir desta forma é algo que vai contra o que eu sigo, o que eu prego, o que eu vejo e acredito. Eu creio que o mundo precisa de mais humanidade e menos arrogância. Carla, por sua vez, é crente que é gente. 

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

É medicina. É Federal!


Cara de médica, família de médica. Sonhava desde menina em ser médica. Era uma aluna semiexemplar... tirava boas notas, mas não mostrava muita humanidade. Ela era aquela menina que questiona o professor como um arguidor de banca de pós-graduação, só que sem saber de quase nada. Ao ter o questionamento sempre respondido e contradito, não concordava. Tinha lido em algum lugar que era diferente... O pai, que era médico, disse que tal conceito de biologia era diferente... A mãe, também médica, disse que tal concepção de linguagem era diferente... A irmã, estudante do último período de medicina, disse que o cálculo do problema de matemática era diferente. Estava tudo errado e não tinha argumentos para sustentar sua indiferença.
Médica, sim. Ela seria médica em breve. Claro que passaria no vestibular, mesmo com as cotas injustas que diminuem as chances dos filhos de quem trabalhou a vida inteira para pagar uma boa escola particular. Nicole acreditava em meritocracia. Achava que, ao estar naquela escola de ponta paga pelos seus pais que herdaram a profissão elitista dos seus avós, tinha as mesmas oportunidades de um aluno de escola pública. Não, mentira. Ela não tinha as mesmas oportunidades, na verdade, ela era prejudicada pelas malditas cotas. Malditas cotas! Uma discriminação com quem é negro, porque está dizendo que o negro não tem a mesma capacidade de alguém branco, loiro, de olhos claros e família de médicos.
Nunca maltratou os funcionários terceirizados da escola... mas nunca cumprimentou o porteiro ou o faxineiro... Na verdade, nunca reparou nos faxineiros. Mesmo dispensando uma educação falsa e, por várias vezes, falha aos professores e demais membros da equipe pedagógica, Nicole era a esperança da escola. Teremos, certamente, uma aluna aprovada em medicina este ano e garantir os mesmos resultados dos anos anteriores. Essa menina vai estampar nossos outdoors e fazer campanha com curativos coloridos no nosso site. Vamos ter muitos alunos... Inclusive, ela é boa candidata para tirar nota 1000 na redação.
Mediana. Não foi a primeira colocada. Se não fossem os cotistas, teria até ficado numa posição melhor no SISU. Não importa. O que importa é que Nicole é Federal. Já é médica. Nas suas redes sociais, médica em formação era o que mais se via... mesmo antes da matrícula na UFRN, afinal, ela já estava se preparando há anos para entrar na Universidade. Após a festa, regada a muita carne de primeira e whisky 18 anos, Nicole iria para Miami comprar as suas roupas para começar a faculdade. Trouxe várias sandálias e sapatos brancos, bolsas de marca, roupas de grife... mas o principal era o jaleco. Desde pequena, já tirava fotos com jaleco.
Era muito trabalho. Estudar medicina não é fácil pra ninguém. Estudar medicina e ter uma vida social badalada é mais difícil ainda. Fora as calouradas, era preciso continuar frequentando as festas disputadas do seu nicho social. Mas ela era guerreira. Ao contrário dos cotistas, ela tinha mais inteligência para conciliar os estudos às demais atividades. Ganhou um carro antes da viagem à Miami. Um carro importado, claro, quem é que dirige carro popular na faculdade de medicina? Só quem entrou pela cota. Como aquele carinha que era farmacêutico e aproveitou a cota por ser negro. Nada a ver. Ele já tinha até carro, tinha uma profissão. Como alguém se submete a um programa que te reconhece como alguém inferior?
Passaram os primeiros semestres. Começaram os estágios. Não sei por que tem que estagiar em hospital público também... era mais fácil eu ficar no hospital da minha família, é lá que eu vou trabalhar! E a especialidade? Está chegando o final do curso. Nicole não quer cuidar de criança, detesta crianças. Desta velho também, Deus a livre de ser geriatra. Com cardiologia também não queria mexer, só iria cuidar de velho, gordo e velho gordo. Não era muito chegada a sangue... não queria fazer cirurgia. De problemas de pele, ela também se esquivava... tem cada gente perebenta, não!  Anestesiologia parecia ser uma área legal. Ninguém era anestesista na família. Dava grana e, em tese, era só dar injeção.
Assim que formada, se tornaria a anestesista chefe do hospital. O anestesista que ocupava este posto foi convidado a cuidar dos residentes. Só faria supervisão e, de quanto em vez, iria para a sala de cirurgia. A nova médica da família agora tinha um jaleco de médico. Tinha uma sala de médico. Trabalhava no ramo médico de sua família. E continuava sem enxergar o faxineiro, nem dar bom dia ao porteiro e desconfiando sempre de alguém que fala diferente daquilo que os seus familiares e amigos médicos falam. Médico sabe mais que todo mundo, menos se o médico tiver entrado pela cota.


sábado, 20 de junho de 2015

O demônio do canavial




Oito anos, uma faca e uma vontade de chupar cana. Sem permissão, invadi o quintal do vizinho para roubar um pouco do bambu doce que seria a sobremesa de uma janta que não tão agradável. Naquele escuro terreno do interior paulista, segurei meu medo e deixei a vontade de consumir algo engordativo tomar conta dos seus instintos. Sentia um pouco de medo, mas a vontade de me lambuzar de cana era maior... Nenhum mal poderia acontecer, certo? Ledo engano.  
Uma criatura demoniosa sai apavorante da terra quando eu estava levantando a faca favorita da minha mãe para desferir o primeiro golpe na minha sobremesa. Quando vi aquele ser das trevas, fiquei sem ter como gritar, sem quase respirar... Pavor, muito pavor. Aquele bicho parecia um bode com rabo de cobra, chifres pontudos e uma aura maligna que me fez esquecer de mim mesmo. Estava convencido de que não iria dormir na minha cama, mas numa cama de pregos em cima de um braseiro no inferno.
As chamas do inferno iriam consumir a minha carne magra, os meus olhos seriam arrancados pelas unhas cheias de bactérias demoníacas que me presenteariam com uma infecção terrível que tiraria toda a pele do corpo e comeria o tutano dos meus ossos sem deixar nenhum vestígio de humanidade em meu corpo, que só teria um coração para que eu pudesse lembrar de que não poderia invadir o terreno alheio para roubar cana-de-açúcar.
Sorte que minhas pernas não entenderam o perigo e correram, correram como nunca correram e nunca correriam novamente. Naquele momento, a minha preocupação se dividia entre as pernas, o demônio do canavial e os pulmões que começavam a falhar. Eu não conseguia respirar, e ainda faltava um bom pedaço de chão para percorrer... Cheguei, enfim, em casa com os olhos mais esbugalhados do que um japonês telescópio, agradeci a Deus em pensamento por encontrar a minha mãe lavando a louça do jantar. Lhe contei o que tinha acontecido, que vi um demônio que me levaria para morar no inferno. Apavorado, ouvi da minha mãe: – Cadê a faca? Vá já buscar, Silvo Luís!

segunda-feira, 15 de junho de 2015

O demônio do Beco da Luz




O Beco da Luz era um atalho no centro da cidade. Entretanto, ao contrário do que o nome sugere, é escuro durante todo o dia. Isso porque as lâmpadas eram constantemente quebradas e as construções em volta, os prédios muito colados, impediam que a luz penetrasse naqueles 170 metros de umidade, sujeira e depressão.
Mas eu não tinha saída. Nunca andava pelo Beco da Luz. A aula tinha acabado tarde, eu não poderia me dar ao luxo de percorrer cinco quarteirões para pegar o último ônibus. Sei que não é bom alguém andar sozinho num lugar ermo, como aquele – eu pedia muito a Deus que estivesse ermo – ainda mais sendo mulher. Eu não tinha saída. Tinha que passar pelo Beco da Luz.
Peguei o meu terço na bolsa. Andava o mais rápido possível para não correr. Eu já tinha passado por lá antes, mas durante o dia e acompanhada por alguns colegas da faculdade. Sabia que não seria uma experiência agradável, muito menos passaria rápido como da vez que estava acompanhada... mas seria rápido no relógio, isso que importava naquele momento.
Eu andava rápido e rezava tão depressa quanto as batidas do meu coração permitiam. Quase no meio, me aparece, repentinamente, um ser esguio, estranho, quase da minha altura com o rosto encoberto pelas sombras. Gelei. Não sabia o que fazer... não podia ser deste mundo, era uma criatura que parecia uma criança nua, sem sexo, com unhas enormes, com pés assustadoramente estranhos e uma aura que quase me fez arrancar as contas do terço com os calafrios.
Não consegui gritar e nem sabia se um grito me colocaria em maior apuro. Ela arrodeou o meu corpo e, com a pouca luz que por ali se perdia, consegui ver que não tinha rosto, não tinha a pele do rosto, mas uma face mutilada, cadavérica, digna de uma criatura que tinha acabado de fugir do inferno. Era isso, só poderia ser isso... era um demônio, um enviado de Satanás para me atormentar, para me levar para o inferno.
A criatura ficou me encarando, tentou ficar ereta em minha frente. Eu já me esquecia do terço, eu já me esquecia de Deus, eu já esquecia de mim mesma... só me concentrava naquele olhar sem olhos, naquela rosto sem face, naqueles pés demoníacos, naquelas mãos com garras prontas a me agarrar e naquela mandíbula cheia de dentes para arrancar toda a minha carne magra de meus ossos que tremiam geladamente.
Não me agarrou, não me devorou... só me encarou. Corri.