Era década de 1960, não ficava bem para uma menina brincar de bola, mas Cláudia gostava de futebol, e muito.
Cláudia, que tinha cinco anos na época destes acontecimentos, usava um corte de cabelo curto, estilo Joãozinho, pois sua mãe, além de não ter condições de tratar dos seus cabelos, achava que ter os cabelos curtos ajudava a espantar o calor. Aproveitando-se da situação em que se encontravam os seus cabelos, Cláudia dizia aos meninos da Rua de Trás que seu nome era Cláudio, assim ninguém implicaria com o fato dela ser menina, e a deixaria entrar no time sem problemas.
Cláudia, ou melhor, Cláudio jogava muito bem, inclusive melhor do que Caetano, que até então era considerado o maior jogador de futebol do bairro. Cláudia não tinha medo de bolada, carrinho ou esbarrão, ela jogava feito um menino, era astuta, habilidosa e marrenta, quando necessário. Além de futebol, Cláudia gostava de bola-de-gude, carrinho de rolimã... Seus irmãos a chamavam de Moleque Macho, o que fazia com que ela se enfurecesse e partisse pra cima deles pra agredi-los a socos e pontas-pé.
Cláudia era uma boa menina, mesmo sem muitas vezes ter ao menos um punhado de pão na barriga, ela se esforçava para estudar na maioria das vezes com fome. Certo dia ela sentiu fortes dores no estômago em plena aula de matemática, sua professora, que mesmo parecendo desumana tinha sentimentos, e ao perceber seu rosto pálido e com aparência sofrida, como a de alguém que deixa o cachorro escapar em dias de grande movimento de veículos na rua, decidiu levá-la à diretoria. Chegando à sala da diretora foi constatado que o que ela sentia era fome, pois não comera nada antes de sair de casa. Era normal Cláudia sair sem tomar café da manhã, porém na noite anterior a menina não tinha jantado. A diretora mandou que comprassem um pacote de biscoitos para a pobre menina pobre, o que a deixou inexplicavelmente feliz, porém Cláudia não comeu nem metade do pacote, ela sabia que seus irmão pequenos também estavam sentindo fome em casa, e decidiu levar o que sobrara para os que hoje quase a humilham.
Mas voltando a parte do futebol... Certo dia, os meninos foram procurar por Cláudio em sua casa, ao chamar pelo craque do time, uma de suas irmãs mais velhas disse que lá não morava nenhum Cláudio. Nisso... aparece Cláudia, logo quando ela tinha acabado de pôr o vestido que sua avó, Judite, trouxera. Era um vestidinho florido amarelo que pertencia a uma vizinha sua, que cresceu fazendo com que o vestido encolhesse. O vestido usado, mas conservado, fazia com que Cláudia ficasse tão bonitinha, tão cara de domingo. Os meninos do futebol não acreditaram... como uma garota havia os enganado tanto e, pior, como uma menina jogava tão bem um esporte tão masculino? Eles se decepcionaram consigo mesmos além de se surpreender.
É claro que depois de três ou quatro dias os meninos da Rua de Trás foram chamar Cláudia para jogar bola, no fundo superficial de seus jovens corações conscientes eles perceberam que sem o craque do time, Cláudio, ou melhor, Cláudia, sempre perderiam para o time da Rua Sul, que na verdade ficava três quarteirões ao norte.
Muitos diziam que Cláudia iria virar sapatão, que ela nunca se casaria... só porque ela gostava de brincar as mesmas brincadeiras dos meninos. Anos depois, ela se casou e teve três filhos. Nunca quis saber de mulher.