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quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Amarga Odontíase

 

 


Infelizmente, terminou a pandemia.

A gente já pode sair sem máscara. Ninguém usava mais máscara mesmo! Um bom bocado de vacina deu certo e logo a imunidade da população mundial chegou a padrões seguros. Enfim o normal voltava. O velho normal, com bar, escola, terreiro cheios. No Rio de Janeiro, as escolas de samba preparavam os carnavais, os maracatus ensaiavam em Pernambuco e o Amazonas prometia uma Festa de Boi como nunca se viu.

Mas Josefa se lamentava. Ninguém entendia direito e muito poucos desconfiavam. Pra ela, infelizmente, a pandemia tinha terminado.

Com quase sessenta anos e poucos pés de galinha, mais do que a sua melanina, a falta de sorriso contribuía para a economia de marcas de expressões no rosto. Desde a adolescência, se acostumou a pouco rir, a pouco chorar, a pouco manifestar qualquer sentimento. Na verdade, Maria Josefa tentava não alimentar nenhum sentimento... bom ou triste, alegre ou ruim, nada que sentia era manifesto... tudo guardado, embalado, escondido.  

Mas durante um ano, Josefa estava visivelmente mais alegre. Seus olhos sorriam. Até mais rugas apareciam. Gente parente que nunca tinha ouvido sua risada, acostumava-se, inicialmente com certa desconfiança, a reconhecer sua gargalhada.

“É falta da igreja”, disse um sobrinho ateu. “É nada, deve ter arrumado um pé de lã”, retrucou o marido covarde. “Gente, deixa ela. Ela só tá feliz”, respondeu a filha mais nova que fazia faculdade.

A felicidade, porém, estava ameaçada. A pandemia tinha acabado. Todo mundo saía sem máscara e Josefa tinha que sair assim também. Sem máscara, não sorria; sem máscara, tinha vergonha, sabe? Tinha vergonha.

Rodrigo Slama 14/10/20


Imagem do Google (Revista Exame) 

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Fake Plastic Dicks

 


Foi a pandemia.

Nunca gostei muito de computador, celular pra mim era pro básico. Pornografia então, jamais.

Mas foi a pandemia, eu juro!

Eu tinha um namorado, ficamos sem nos ver por quatro meses. No início, ah, no início foi duro, mas me acostumei. Me acostumei comigo, me acostumei com o sexo virtual, meus dedos, meus brinquedos que chegaram atrasados do Mercado Livre.

Aí todo mundo começou a relaxar. Estavam abrindo bares, estavam abrindo igrejas. Estavam, olha!... Estavam abrindo shoppings! Tu acha? Eu deveria encontrar o Maurício. Já eram cinco meses incompletos de isolamento. Eu nem sabia mais qual era o seu gosto. Nem meu gosto em sua barba, só meu gosto nos meus dedos.

Aqui em casa era foda. Meus pais, mesmo liberais, viviam em casa. E ainda tinha Vó Petra, não, na boa, não rola. E eu sabia que queria soltar todos os gritos e gemidos sufocados pelo isolamento. Na casa dele era foda, ele morava com o pai, bicho alcóolatra, sabe, rolava não.

Motel? Cê tá doido? Imagina se alguém infectado usa antes da gente. Não quero adoecer. Vovó é idosa, esqueceu.

Tá bem, tá bem. Vamos pro motel amanhã. Você passa aqui e me pega. Não, Maurício, não vou de Uber, você passa aqui no seu Uber e me pega já que seu pai bateu o carro. Não. Já disse que não vou pegar Uber sozinha pra ir pra motel. Não estou nem aí, o problema é seu.

Pernoitamos no motel. Foi uma merda. Acho que Maurício esqueceu como se trepa ou então fui eu. Ele gozou três vezes. Na terceira durou mais de meia hora, certeza, mas não faz diferença.

A gente ainda tentou outras vezes. Eu fui enrolando também. Disse que tava com Covid, disse que tava com enjoo, disse que tava com daltonismo.... Olha, eu enrolei como podia até não poder mais.

Acabou a pandemia, mas não quero saber de ninguém, na boa. Nem homem, nem mulher. Acho que fui eu, sabe. Acho que foi a pandemia.

Sim. Foi a pandemia.

- Maria Tereza, encomenda pra você!

Já vou, mãe. Peraí, não abre o pacote!

 

Rodrigo Slama  26/08/2020

segunda-feira, 25 de maio de 2020

Uma noite Brilhante



Estávamos em casa. Não tinha nada lá que pudesse nos identificar como subversivos.
Pelo bem da minha família, tinha feito a barba já há algum tempo, queimado todas as camisas vermelhas e enterrado os livros proibidos. Mas nos entregaram. Não sei quem... nem o culpo. Decerto, a dor que sentiu antes do arrependimento, infelizmente, foi tão grande quanto a minha.
Eu era fiscal de produção de uma fábrica de roupas; Tereza, minha mulher, professora de francês.
Nos conhecemos numa sorveteria. Achei que seria um sonho poder namorar com uma moça estudada. Logo eu, de família pobre, um peão sem eira nem beira, estava apaixonado por uma mulher linda, inteligente, de classe média.
Namoramos por um tempo. Casamos e tivemos uma filha. Vivíamos uma vida tranquila.
Durante as aulas, Tereza aproveitava para ir além do ensino do outro idioma, fazia com que os alunos, durante as conversações, tentassem pensar um pouco fora da caixinha... todos eram de família rica... Quem é que podia pagar por aulas de francês naqueles tempos?
        Lá na fábrica, a gente também tentava ir além do aperto dos parafusos e da checagem das máquinas. Queríamos melhores condições de trabalho. Fazíamos reuniões, levávamos propostas aos patrões... Tudo mudou.
     O golpe veio. Veio a desesperança. Nossos dias viraram uma noite eterna. Muitos amigos foram presos ou simplesmente sumiam... Quando algum aparecia, caso raro, era sempre muito machucado. Machucado por fora e por dentro da cabeça.
     Era uma tarde chuvosa de maio. Eles entraram na minha casa me chamando de comunista. Levaram Tereza também... A nossa filha teve que ficar com uma vizinha, que não entendeu nada do que estava acontecendo, mas não podia se intrometer naquela situação.
         Fomos separados. Me interrogaram e foram aplicando força gradativamente ao passo que eu não falava nada. Me despiram. Me afogaram. Me deram choques. Mesmo assim eu me negava a dizer qualquer coisa que prejudicasse a mim, minha família ou meus companheiros.
        Foram três anos na preso. Durante uma das torturas, pesaram a mão e perfuraram um dos meus rins. Por sorte ou azar, passei o tempo da recuperação sem receber tanto castigo. A infecção que quase me matou me torturava e poupava o fôlego dos meus algozes.
      Mas teve uma noite, já quase recuperado, que eu sofri a maior violação que alguém poderia sofrer. Fazia um ano e meio que não via Tereza. Trouxeram ela para ser estuprada e torturada da minha frente. Me estupraram também. Minha esposa estava muito magra e machucada. Cada golpe que ela levava, um pedaço da minha alma castigada era arrancado.
    Tereza morreu naquela noite. Minha mulher, minha companheira morreu na minha frente. Foi abusada de todas as formas possíveis. Enquanto eu tive a vida poupada por castigo, via o Coronel rindo e cuspindo sobre o corpo frio de Tereza.


Rodrigo Slama 25/05/2020

sábado, 23 de maio de 2020

O Rei da Cocada Branca






Em toda sala de aula, seja de escola pública ou particular, sempre tem um rei sentado numa carteira. O rei das escolas estaduais é o rei da cocada preta. Este é tranquilo, um pouco marrento, mas tranquilo. O rei problemático é o rei das escolas particulares... e eu bem sei... trabalhei (e trabalho no momento desta escrita) nas maiores escolas de Natal. São os reis da cocada branca: héteros, brancos, cristãos, ricos e, geralmente, homens. Um combo de toxidade.   
Os reis das escolas particulares, na verdade, não são lá essas coisas... os seus pais é que são. É sobre o Ethos dos seus progenitores que os reis da cocada branca se arvoram sobre os demais... Se são burros, usam os outros para conseguir notas; se são inteligentes, usam a si mesmos para diminuir o outro. Tentam, inclusive, diminuir o professor.
Esses meninos e meninas crescem influenciados por valores completamente antagônicos aos valores que temos. Eles creem que o dinheiro é tudo, e, por tê-lo, tentam montar nos demais, mesmo que eles também o tenham, mesmo, inclusive, que tenham até mais.
Os professores, portanto, são os que mais são passíveis – em suas cabeças ocas, sobretudo as cabeças ocas dos inteligentes – de serem montados. Ora, professor é um ser fracassado... ele não conseguiu passar pra Medicina, Engenharia ou Direito e, por isso, fizeram um curso mais fácil, eles pensam.
Vivemos angustiados, atacados por todos os lados. Até alguns coordenadores, que foram ‘promovidos’ da sala de aula, utilizam o seu poder para nos explorar e humilhar. Mas o que mais me tira a paciência é o rei da carteira. Aquele aluno que tenta, a todo custo, te derrubar. Ele sabe que só vai conseguir massagear seu ego com a derrubada de um mestre. O burro que te derrubar porque é burro mesmo; o inteligente quer te derrubar porque é burro... não sabe como usar a inteligência...  
– Professor, eu acho que você deveria ouvir mais os alunos.
– Claro. Me diga qual a sua angústia.
– Eu acho que a aula está chata.
– É mesmo?
– Sim. Você deveria animar mais a galera. Passa um filme... tem muita coisa pra gente ler... essa questão está muito difícil...
– Lucas Gabriel, é um exercício de revisão. Eu peguei do livro do fundamental, estamos no médio...
– Está vendo, professor. Você nunca ouve a gente.


Rodrigo Slama 2015
Imagem do Google 

quinta-feira, 21 de maio de 2020

O dia que mataram Bolsonaro





Quarta-feira. Mês de junho. O Nordeste comemorando seus santos, o Sudeste vindo pro Nordeste curtir as praias. Meio do Ano. Todo mundo merece descanso, todo mundo precisa descansar. Eu dava aulas e dançava quadrilhas. Comia milhos e cheirava cangotes no Beco. Tudo seguia e a gente seguia também, sem muita escolha, sem ter muito o que fazer além de reclamar em páginas de redes sociais para os nossos próprios amigos semidesconhecidos e poucos desconhecidos que a gente mal sabia quem eram.
– Mataram Bolsonaro! – gritou um aluno quase no fundo da sala e todo mundo começou a falar. Pensei em brigar com o guri que estava mexendo no celular na minha aula e inventando história, mas por que alguém iria inventar que mataram o presidente?
– Como é? – inquiri.
– Professor, acabaram de mandar aqui. Mataram o Bolsonaro!
Saquei meu celular. Todos os grupos em polvorosa. Um monte de gente comemorando, poucos lamentando, mas, sim, tinham matado o presidente.
Não consegui mais dar aula naquela quarta-feira. Ninguém mais conseguiu se concentrar no meu texto de Saramago.
Saí para a sala dos professores. Boa parte das turmas estava saindo, mesmo faltando ainda mais de 15 minutos para o fim daquela aula.
– Dessa vez acertaram! – alguém gritou da cantina. Na hora, não entendi. Sabia que tinha sido uma facada, mas ainda estava meio perplexo com aquilo tudo. Não sei você, mas eu, particularmente, demoro um pouco para processar certas informações... sobretudo porque, infelizmente, fico tentando achar brechas que não foram ditas, possibilidades, outras narrativas, enfim... eu ainda estava meio perplexo.
Era uma quarta-feira. Era junho. Tinha gente com toras e galhos de madeira em frente às casas. Era interior... o dia todo era gente soltando bomba, fogos... fossem vinte anos atrás, teria balões, mas hoje não pode mais.
Aquele dia não teve mais aula. Era impossível manter os meninos quietos. Na TV, só se falava nisso. Muita gente preocupada com o que aconteceu, outras pessoas, em menor número, preocupadas com o que seria? Nunca, no Brasil, alguém tinha matado um presidente. – E Tancredo? – Não, desse jeito não. Tancredo não conta. – E agora?
– Olha, rapaz, não sei. Uma parte de mim está feliz, outra está muito preocupada.
– Preocupada uma porra!
– Não sei.
– Bora beber!
– Beber?
– Beber, bora?
– Bora.

Rodrigo Slama
21/05/2020
Imagem do Google 

quarta-feira, 20 de maio de 2020

Gari




Era gari. Quando entrou, não havia concurso. Agradeceu, passou a ter uma renda fixa, era funcionário público estatutário. Todo domingo, ia pra missa. Gostava de rezar. Carregava o terço de Fátima no pescoço. Não falava muito. Não pensava muito. Apenas trabalhava, recolhia lixo e rezava. Casou moço. Sua esposa não sabia ler e escrever. Era assim de pai e mãe. Ele sabia escrever e ler. Pouco, mas sabia. Durante o trabalho, não precisava disso. Precisava só usar luva, boné e as pernas. Trabalhava no caminhão. Andava pendurado por cinquenta metros e corria mais cinquenta a cada esquina. Era tanta sujeira que banho não bastava para tirar o óleo da sua pele. Ele e a mulher já estavam acostumados. Passaram anos. Ele se aposentou. Não aconteceu nada que mudasse sua vida.

texto de 2015
imagem do Google