Novo escritório, novo emprego. Casos de família, herança, briga de
vizinhos por mangueira no meio dos lotes... Doutora Tereza estava num bom
momento de sua vida.
–
A doutora é casada? – perguntou a recepcionista. Uma senhora indistinta, seus
sessenta anos e poucos.
– Boa tarde, Dona Socorro. Por
que a pergunta?
– Ah, não leva a mal não,
doutora. Que a senhora tem tantos anéis nos dedos, que não dá pra saber de
aliança.
– Eu gosto de anéis, mas, sim,
tenho um companheiro.
– Então não é casada...
– Como não?
– Mulher casada tem marido. Foi
na igreja o casamento?
– Não – respondeu Tereza, um
pouco constrangida. Mal tinha começado no escritório novo e a já se sentia
invadida, julgada.
– Hoje em dia tá assim, né? O
importante é ser feliz.
– Verdade! – e fitou alguns dos papéis
que levava.
– A senhora é feliz, doutora?
– Olha... eu sou, mas eu estou
um pouco ocupada, podemos terminar esse papo depois?
– Tem quantos filhos?
– Oi?
– A senhora tem quantos filhos?
– Nenhum...
– E quer ter?
– Não sei, então...
– E como é feliz sem filho? – perguntou
com toques de desaforo à desconfortável inquirida.
Tereza parecia estar numa praia ensolarada de águas quentes ameaçada
por um iceberg invadindo a areia como um gigante jet-ski controlado por um
patriota enraivecido enquanto saudava a neve que caía. Nada fazia sentido, mas
ela, de alguma forma, contemplava, sem transparecer tensão, aquele questionário
infindo sobre tudo, exceto trabalho, seu motivo de estar ali. A recepcionista, sem
deixar mais que poucos segundos para a advogada raciocinar, solta!
– É porque, doutora, a mulher só
é completa quando tem um filho, sabia?
– Oi?
– A mulher só é completa quando
tem um filho. É o maior propósito das nossas vidas. Deus...
– Então, senhora, olha aqui uma
coisa! – Tereza levantou a calça do terninho que usava e deixou à mostra sua
prótese.
– Me desculpa, doutora. Mil
perdões.
E nunca mais falaram além das brevidades pseudocortesas do dia a dia. Não
sabia Tereza se todos aqueles ataques travestidos de intenções amistosas tinham
sessado por conta do deboche com que atacou para se defender ou da pena que
possa ter recebido. Talvez fosse a dó. Mente limitada não entende o sarcasmo.
Rodrigo Slama, 21/12/23
* Imagem criada por IA