Meus olhos quase
se perderam na multidão. Era gente pra todo lado, quase fico atordoado com
tamanha movimentação. Segurei a mão da última pessoa do trenzinho que furava,
não sei como, o mar de gente feito uma flecha, ou um tiro de fuzil. Eu achava
que chegaria à saída, mas ao contrário do que eu queria, fui levado a cada
passo pra mais longe do meu esperado destino.
Fui enganado pelos meus amigos. Eles
disseram que era um show do Nando Reis. Eu sou fã do Nando desde a época dos
Titãs, banda que perdeu um pouco do meu carinho depois da saída do meu ídolo
maior, mas até que Paulo Miklos segurou as pontas, pois não gosto – nada contra
– da voz dos outros vocalistas.
O
show em que eu estava, que por sinal tinha pago quinze reais pra entrar valendo-me
do meu direito de estudante, é claro, era do... ou será da? Enfim... era da
banda... Calypso (procurei no Google o modo certo de escrever este nome (im)próprio
para não me passar por ignorante).
Os abestalhados dos meus amigos me
vendaram, disseram que iriam fazer uma surpresa pela proximidade do meu
aniversário... me levariam no camarim do Nando Reis. O pior é que eu estava tão
concentrado nos estudos pro ENEM que nem me liguei que o show do Nando iria
acontecer mais na frente. Engraçado... quando a gente se concentra muito em
alguma coisa acaba ficando meio por fora da vida que acontece aos nossos pés.
Estava, deduzia, há mais de duas
horas vendado, nem tinha noção de quanto tempo havia se passado. A euforia que
eu sentia mal me fazia lembrar o ENEM iminente ou mesmo o horário que se
passava diante de mim. Me abandonaram, literalmente falando, no meio daquele
mar de gente avesso a Avon, Axe ou Rexona. Quero deixar posto aqui que nunca
tinha sentido o cheiro de tantos sovacos diferentes, logo eu, que fui todo
contente, de preto, com uma camisa do Acústico dos Titãs, crente que iria
conhecer Nando Reis. Mal sabia eu que iria conhecer uma colônia do inferno.
Cansei de procurar pela galera...
mas me desesperei. Estava inconformado e perdido, apavorado e chateado, e
muitos outros -ados que existem. A mão que peguei, a última do trenzinho, era de
uma menina – pelo
menos isso! – e
estava muito suada. Tive que largá-la logo e segurar o pulso. Eu não via seu
rosto, apenas uma fita na cabeça que dizia “inha (o nó) Joe”, depois me
contaram que era o nome da vendedora de tapioca, que insiste em ser cantora, e
do marido dela, um dos músicos da banda, de péssimo gosto, por sinal.
Como eu já disse, eu estava crente
que o trenzinho estava saindo... sei lá, eu fui largado no meio da multidão,
não sabia onde era a entrada ou a saída, estava sem minhas noções geográficas. Os
integrantes do trem não buscavam a saída, mas queriam chegar mais perto do
palco, e eu, infelizmente, percebi isso tarde demais. Quando dei por mim estava
há um palmo da cerca de ferro que separa o palco do povão.
O som dos gritos, tanto da taquara-rachada
que cantava no palco, como das fanáticas enlouquecidas que me cercavam de todos
os lados, quase me deixou surdo – pena que não
deixou! –
Num vacilo de alguns seguranças, consegui subir na cerca e tentar ficar uns
centímetros mais altos pra procurar meus amigos, mas naquele mundo de gente,
sem noção de música, diga-se de passagem, não se via ninguém, daí eu pensei que
se eles queriam me pregar uma peça, deveriam estar em algum lugar ali rindo da
minha cara.
Deixando de lado o meu orgulho,
comecei a pedir ajuda, gritava com os braços erguidos, olhava esperançoso em
todas as direções. Quanto mais a histérica “cantava”, mais eu agitava os braços,
clamando por socorro. Foi nesse curto espaço de tempo que senti alguém me
agarrando com uma bruta força que me tirou da cerca, vi que era um segurança – uns
dois metros de altura por um de largura – imaginei que
seria expulso do show, mas, para aumento da minha tristeza, não foi isso que
aconteceu. Parece que a galega gritante escolhera um fã para cantar uma música
consigo, adivinha quem ela escolheu no meio da multidão, adivinha!
Me empurraram
com muita força no palco de onde eu via uma multidão histérica gritando algo
ininteligível aos meus ouvidos acostumados apenas com a língua portuguesa e um
pouco de inglês. A louca desafinante cantava uma música, que pelo que entendi,
contava a história de uma cavalo manco, talvez inspirado em alguma montaria de
um ex-freguês. Sem eu menos esperar, o microfone estava seguindo em direção à
minha boca. Foi mais ou menos nesse momento que avistei meus “queridos” amigos
rindo às gargalhadas trepados numa torre de som. Filhos da puta!, pensava em
voz alta, quando sair daqui vou dar uma surra em cada um deles que eles nunca
mais vão esquecer enquanto estiverem vivos e conscientes.
Chegou
minha vez de cantar. A Xuxa dos anos trinta – nenhuma menção ao glamour dessa época,
mas é a década que provavelmente a doida nasceu – me abraçava com aquele corpo suado e fedorento e encostou aquele microfone
babado na minha boca. Não tive tempo de pensar no que dizer, olhei pros boys em
cima da torre e disse o que pensava e está transcrito no parágrafo acima, mas
não custa repetir. – Vocês tão fudido na
minha mão, seus galados, filhos de ra... – não pude terminar a frase. A
animadora de multidões me empurrou para o lado e continuou o pedaço da música
que eu tinha que cantar enquanto me encarava de canto de olho com o olhar mais
feio do que o da mãe que olha para o assassino que seu filho de sete anos e
meio de idade.
Seguranças
do palco me tiraram, lógico, à força, chega machucaram minhas costelas, mas até
que poderia ser pior no fim das contas. Os fãs dos sem-cultura me vaiavam
enquanto isso. Eu, nessa hora, já tinha
esquecido por um instante da raiva que sentia dos meus amigos e da situação e
comecei a me preocupar com minha integridade física. Eu poderia ser morto apenas
por um murro de um dos quatro seguranças que me cercavam e diziam:
– Tá
tirando onda com nossa cara?
– Não,
senhor! – eu disse tremendo. – Só estou rezando para que não me machuquem
muito.
– E
por que faríamos isso? – um deles perguntou com uma cara que julguei sínica.
– Porque
eu acanalhei o show dos seus patrões, e...
Fui
interrompido pelas gargalhadas.
– A
gente não iria te machucar... a gente odeia o Calypso também, a gente nem
trabalha pra eles... a gente presta serviço para casa. Como você, a gente curte
mais um rock (deve ter deduzido pela camisa, as pulseiras, e os outros mais
detalhes característicos dos roqueiros), e estamos ansiosos pra semana que vem
que é o show do Nando Reis.
– Não
acredito, é semana que vem? Os filhas-das-putas dos meus amigos me largaram
aqui dizendo que era o show dele...
– Faz o
seguinte... me procure semana que vem aqui que eu te boto no camarim do Nando.
– Não
acredito... tá falando sério?
– Claro,
aparece aí.
E assim
o fiz.
Moral da
história: até um show do Calypso pode ser bom quando a gente sabe fazer amizade
e vestir a camisa certa.