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sábado, 20 de junho de 2015

O demônio do canavial




Oito anos, uma faca e uma vontade de chupar cana. Sem permissão, invadi o quintal do vizinho para roubar um pouco do bambu doce que seria a sobremesa de uma janta que não tão agradável. Naquele escuro terreno do interior paulista, segurei meu medo e deixei a vontade de consumir algo engordativo tomar conta dos seus instintos. Sentia um pouco de medo, mas a vontade de me lambuzar de cana era maior... Nenhum mal poderia acontecer, certo? Ledo engano.  
Uma criatura demoniosa sai apavorante da terra quando eu estava levantando a faca favorita da minha mãe para desferir o primeiro golpe na minha sobremesa. Quando vi aquele ser das trevas, fiquei sem ter como gritar, sem quase respirar... Pavor, muito pavor. Aquele bicho parecia um bode com rabo de cobra, chifres pontudos e uma aura maligna que me fez esquecer de mim mesmo. Estava convencido de que não iria dormir na minha cama, mas numa cama de pregos em cima de um braseiro no inferno.
As chamas do inferno iriam consumir a minha carne magra, os meus olhos seriam arrancados pelas unhas cheias de bactérias demoníacas que me presenteariam com uma infecção terrível que tiraria toda a pele do corpo e comeria o tutano dos meus ossos sem deixar nenhum vestígio de humanidade em meu corpo, que só teria um coração para que eu pudesse lembrar de que não poderia invadir o terreno alheio para roubar cana-de-açúcar.
Sorte que minhas pernas não entenderam o perigo e correram, correram como nunca correram e nunca correriam novamente. Naquele momento, a minha preocupação se dividia entre as pernas, o demônio do canavial e os pulmões que começavam a falhar. Eu não conseguia respirar, e ainda faltava um bom pedaço de chão para percorrer... Cheguei, enfim, em casa com os olhos mais esbugalhados do que um japonês telescópio, agradeci a Deus em pensamento por encontrar a minha mãe lavando a louça do jantar. Lhe contei o que tinha acontecido, que vi um demônio que me levaria para morar no inferno. Apavorado, ouvi da minha mãe: – Cadê a faca? Vá já buscar, Silvo Luís!

sexta-feira, 19 de junho de 2015

Glaydson, o Vampiro Natalense: uma nova chance




           Já não tinha vida, mas o seu coração batia de pavor num pulsar frenético. Lord Sevlá, um vilão terrível, iria transformar a breve história de Glaydson em pó. Estava pronto para matá-lo com um golpe vorpal quando foi avertido por Gabriele, a vampira mais jovem do grupo.
           – Não o mate, meu senhor! Eu suplico.
       – Como assim? Ele está botando a nossa sobrevivência em jogo. Demoramos muito tempo para controlar os caçadores daqui... ninguém sabe que existimos... por conta deste energúmeno, vão começar a questionar novamente a existência de vampiros no Rio Grande do Norte.
            – Eu vejo alguma utilidade nele.
            – Qual?
           – Não sei... apenas uma sensação de que este sujeito asqueroso ainda nos será muito útil.
            – Mais uma de suas visões, Gabriele?
            – Não sei se uma visão, meu senhor... é uma sensação.
         Os demais membros do conselho – se é que se pode chamar toda representatividade de um grupo de conselho – decidiram manter Glaydson vivo... pelo menos por um tempo. É claro que não era preciso conselho nenhum, pois quem decidia o destino de todos nas terras potiguares era o Lorde Sevlá.
 – Tudo bem, Gabriele. No entanto, ele é responsabilidade sua. Trate de ensiná-lo como se portar...
– Perdão, meu senhor, mas eu tenho uma sugestão antes.
– Diga, Conrado. O que você tem a dizer?
– Sugiro deixá-lo passar a noite comigo. Garanto que ele aprenderá a se portar.
Não houve objeção. Conrado era um sujeito calado, às vezes ficava dias sem abrir a boca... falava tão pouco que, quando falava, todos ouviam prontamente, mesmo que besteiras fossem comuns. Além do seu jeito calado, este vampiro era conhecido pelas suas técnicas de tortura que vieram se aprimorando desde a Idade Média. Ensinou muita coisa aos militares brasileiros à época do Regime. Ele falava pouco, mas poderia fazer qualquer criatura até agora conhecida confessar qualquer coisa sob os seus métodos. Na verdade, ninguém sabia como aquele experiente soldado do mal tinha ido parar nordeste brasileiro, mas seus serviços eram muito úteis ao Lord Sevlá e a qualquer senhor que lhe contratasse a preços nada amigáveis.
Glaydson, coitado, não sabia o que lhe esperava. Os dias em que passou livre em Natal desfrutando dos poderes que recebeu após a sua transformação o fizeram acreditar que nada poderia abalar a sua felicidade. Mas ele não sabia da existência de outros vampiros na região, não poderia prever a perseguição liderada pelo Lord Sevlá e muito menos a noite que passaria sob os cuidados de Conrado.
O fato de vampiros se recuperarem bem mais rápido de ferimentos físicos do que um ser humano não os ajuda a sentir menos dor. Conrado começou amarrando as suas mãos e pés com uma corrente bastante poderosa... mesmo que o Glaydson soubesse usar a força que tem, não conseguiria se soltar. Em seguida, um maçarico antigo foi aceso... ninguém sabe o que era maior, a dor ou os gritos. Gritos ensurdecedores ecoavam pela fazenda longínqua no interior do interior do Rio Grande do Norte. A densa floresta plantada e irrigada pelas adutoras do Lord Sevlá não deixava o grito se expandir...
Depois de se esbaldar com o maçarico, Conrado pegou um dos seus pequenos instrumentos favoritos: uma faquinha de cozinha meio cega. Os cortes precisavam mais de força do que de fio para serem feitos, e doíam muito mais. Ameaçou arrancar os olhos, tirou a ponta da faca no último segundo. Lágrimas de sangue escorriam pelo rosto de Glaydson, lágrimas de felicidade escorriam dos olhos brilhantes de Conrado.
A noite foi passando, parecia interminável. Conrado dava, controladamente, um pouco de sangue para que Glaydson se mantivesse vivo... Não seria nada legal descumprir uma ordem do Lord Servlá, mesmo que ele não lhe impusesse medo algum. O jovem vampiro de Natal deveria apenas aprender uma lição, ainda que não conhecesse as regras do jogo para merecer uma punição. Pouco importava, o sofrimento alheio era mais importante do que qualquer senso de justiça. Que justiça? Há séculos fazia apenas o que achava prazeroso. Sentiu muito prazer naquela noite, usou uma dúzia de métodos diferentes para extrair o sofrimento do torturado.
Com ossos quebrados, pele queimada, carne arrancada e orgulho ferido, Glaydson achava que aquele sofrimento não iria terminar nunca. De certa forma, nunca terminaria... ficaria preso em sua memória até o dia em que deixaria, enfim, de habitar este mundo. Como castigo final e para protegê-lo do sol, Conrado aprisionou sua vítima numa de suas virgens de ferro. Na mais fina, para que pudesse ouvir os gritos de Glaydson durante todo o dia, quando descansaria no seu caixão de veludo. Quando se recuperasse, Glaydson teria a primeira missão a mando do Lord Sevlá, mas, por enquanto, padecia sem poder morrer naquela mórbida santa. 

Confira a parte anterior aqui

segunda-feira, 15 de junho de 2015

O demônio do Beco da Luz




O Beco da Luz era um atalho no centro da cidade. Entretanto, ao contrário do que o nome sugere, é escuro durante todo o dia. Isso porque as lâmpadas eram constantemente quebradas e as construções em volta, os prédios muito colados, impediam que a luz penetrasse naqueles 170 metros de umidade, sujeira e depressão.
Mas eu não tinha saída. Nunca andava pelo Beco da Luz. A aula tinha acabado tarde, eu não poderia me dar ao luxo de percorrer cinco quarteirões para pegar o último ônibus. Sei que não é bom alguém andar sozinho num lugar ermo, como aquele – eu pedia muito a Deus que estivesse ermo – ainda mais sendo mulher. Eu não tinha saída. Tinha que passar pelo Beco da Luz.
Peguei o meu terço na bolsa. Andava o mais rápido possível para não correr. Eu já tinha passado por lá antes, mas durante o dia e acompanhada por alguns colegas da faculdade. Sabia que não seria uma experiência agradável, muito menos passaria rápido como da vez que estava acompanhada... mas seria rápido no relógio, isso que importava naquele momento.
Eu andava rápido e rezava tão depressa quanto as batidas do meu coração permitiam. Quase no meio, me aparece, repentinamente, um ser esguio, estranho, quase da minha altura com o rosto encoberto pelas sombras. Gelei. Não sabia o que fazer... não podia ser deste mundo, era uma criatura que parecia uma criança nua, sem sexo, com unhas enormes, com pés assustadoramente estranhos e uma aura que quase me fez arrancar as contas do terço com os calafrios.
Não consegui gritar e nem sabia se um grito me colocaria em maior apuro. Ela arrodeou o meu corpo e, com a pouca luz que por ali se perdia, consegui ver que não tinha rosto, não tinha a pele do rosto, mas uma face mutilada, cadavérica, digna de uma criatura que tinha acabado de fugir do inferno. Era isso, só poderia ser isso... era um demônio, um enviado de Satanás para me atormentar, para me levar para o inferno.
A criatura ficou me encarando, tentou ficar ereta em minha frente. Eu já me esquecia do terço, eu já me esquecia de Deus, eu já esquecia de mim mesma... só me concentrava naquele olhar sem olhos, naquela rosto sem face, naqueles pés demoníacos, naquelas mãos com garras prontas a me agarrar e naquela mandíbula cheia de dentes para arrancar toda a minha carne magra de meus ossos que tremiam geladamente.
Não me agarrou, não me devorou... só me encarou. Corri.

sábado, 13 de junho de 2015

Pastor

– Pastor.
– Sim, meu filho.
– Eu estou com uma dúvida.
– Diga qual a sua inquietude. Deus me deu o dom da palavra e da revelação. Se for da Sua vontade, as suas dúvidas serão sanadas, Amém?
– Amém. – Pastor, eu não estou entendendo algumas coisas que estão na Bíblia... que estão ou não estão.
– Como assim, irmão?
– Os dinossauros, por exemplo. Não estão na Bíblia.
– Eles não existiram.
– Não?
– Não. Se não estão na Bíblia, não existiram.  
– Mas e os fósseis?
– Tudo obra do inimigo para tirar o seu foco em Jesus, Amém?
– Amém. – Mas e toda teoria evolucionista. Os cientistas discordam que o homem veio do barro.
– Também é mentira. Artimanhas do inimigo. Olha, irmão, você já viu macaco virar gente?
– Não, pastor.
– Então. Se macaco virasse gente, não teria mais macacos no mundo, Amém?
– Amém. – Mas, pastor, se Deus fez apenas Adão e Eva, e se todos os seres humanos são seus filhos, por que somos tão diferentes. Asiáticos são de um jeito, africanos de outro, europeus mais ainda... deveríamos ser mais iguais, não?
– Olha, irmão, o inimigo está te fazendo questionar a obra de Deus. Apesar de sua incredulidade, eu te respondo. Você tem filhos?
– Tenho.
– Eles são iguais?
– Não, mas são bem parecidos.
– Se você largar um de seus filhos num deserto africano e outro no inverno russo, eles ficarão parecidos depois de alguns anos?
– Não, pastor. Mas você acha que o que vai viver na África e, consequentemente, ter a pele queimada vai fazer netos mais morenos que o outro que ficou na Rússia?
– Mas é claro, irmão. Por que não fariam?
– Porque...
– Olha – o pastor interrompeu de súbito. – Você não dá o dízimo há dois meses, não é verdade? Por quê?
– Porque eu estou com algumas dúvidas sobre a minha fé, pastor.
– Como você quer que Deus te proteja do Diabo se você não é fiel no dízimo, irmão? Faça um propósito com Deus. Dê seu dízimo em dia... pode parcelar os atrasados no cartão... e faça uma oferta do tamanho que você deseja a sua fé. Te garanto, em o nome de Jesus, que você não vai mais ser atormentado pelo inimigo, Amém?
– Amém.


terça-feira, 9 de junho de 2015

O pônei ceifador

Dedé estava caminhando pela floresta. Ele procurava madeira para fazer uma fogueira para São João, e como havia chovido muito, nenhum galho que encontrava era seco o suficiente... e ele teve de ir cada vez mais para o meio do mato. Para piorar a sua situação, começou a chover... choveu forte por um momento, depois a chuva se abrandou. Ele deu graças a Deus pelo sol que despontava no horizonte ajudando a formar um arco-íris belíssimo que findava a poucos metros, em uma caminhada de menos de dez minutos.
Nosso protagonista correu para tentar chegar até o arco-íris. Sabia há muito tempo que não haveria nenhum pote de ouro, mas nunca teria outra oportunidade de chegar até o fim de um arco-íris na vida. Ele, enfim, chegou. Achou que não iria dar tempo, mas chuviscava um pouco. Dedé ficou encantado com o que viu. Entrou no arco-íris e enxergou o mundo completamente colorido. Ainda dando a primeira gargalhada de alegria, ouviu o som de um cavalo bem próximo. Tudo bem, ele não tinha medo de cavalos.
O som ia se aproximando cada vez mais até que pareceu tão próximo quanto o som de um mosquito nos seus ouvidos em noites quentes de primavera. Virou-se de imediato para trás e viu um pônei. Um belo pônei colorido que vinha correndo, cavalgando em sua direção. Dedé ficou perplexo. Não sabia o que fazer... não sabia se era sonho, não tinha bebido aquele dia. Se beliscava, mas cada vez mais o pônei colorido foi se aproximando até que ele pôde vê-lo um pouco mais de perto. A única coisa que não parecia ser miniatura naquele cavalinho era o seu sexo, que veio rijo pronto ceifar o pobre rapaz.
Ao perceber que seria vítima de um atentado sexual, Dedé correu mais do que achava que poderia... em seu encalço, vinha o pônei colorido sedento por sexo. O ar começou a rarear, as pernas começaram a falhar ao mesmo tempo em que o desespero tomava conta do seu coração. Ele tentou gritar, mas já não tinha fôlego. Num segundo, ele já tinha sido dominado pelo pônei colorido.
Dedé não sabia, ele não conhecia, ele mal acreditava, mas naquele momento ele tinha sido a mais nova vítima do pônei ceifador, uma criatura mitológica que passeava pelo arco-íris no desejo incontrolável de desvirginar rapazes. Depois de três dias, o pobre ex-moço foi encontrado ainda com vida, mas muito debilitado. Ele foi levado para o hospital. Todos tiveram compaixão e não deixaram o fato se espalhar, apesar de não saberem o que, de fato, acontecera.
Dedé voltou a sua vida normal. Depois de umas semanas, nenhuma sequela física havia ficado. No entanto, nunca mais ele poderá ver um arco-íris, nunca mais ele conseguirá ver pôneis e cavalos, mesmo na tevê e nunca mais, nunca mais enquanto ele existir, irá se aproximar de um arco-íris. Mas ele falará para todo mundo que no final do arco-íris tem um pote de ouro, pois ele não vai querer sofrer aquilo sozinho... ele, inclusive, incentiva amigos a irem até o final do arco-íris... ele quer ter com quem partilhar a sua experiência traumática. 

sexta-feira, 5 de junho de 2015

O palhaço assassino da Rua 417


Ilustração André Silva
           Morava na Rua 417 um palhaço muito engraçado que costumava fazer apresentações na porta de sua casa quando não estava em algum circo ou fazendo campanha para um supermercado ou loja de brinquedos chineses. Ele era muito querido por todos... uma das figuras mais cativantes e amistosas do bairro.
            Meninos e meninas sempre saíam da escolinha e passavam direto na Rua 417 para apertar a mão de Palhaço e assistir aos seus números de mágica e toda a sua palhaçada. Era sempre uma festa. Ninguém sabia quem ficava mais feliz com as visitas das crianças, que foram crescendo e, aos poucos, se esquecendo do palhaço que, já sem circo e sem muito ter onde se apresentar, ficava cada vez mais solitário.
            O que antes era alegria, motivo de acordar sorrindo e pensando num novo truque, numa nova piada, agora era motivador de raiva. Não podia mais ver uma criança, não podia mais ver alguém se divertindo que lhe batia uma ira incontrolável, mas ele não era um mal sujeito, ele queria trazer a verdadeira alegria àquele bairro novamente.
            – As pessoas hoje andam muito felizes... Antigamente, quando a situação financeira era pior, todos precisavam de mim... agora, qualquer criança pobre tem celulares modernos, videogames de última geração... Eles não são felizes de verdade...
            Palhaço começou a matutar um plano para acabar com a alegria das pessoas. Mas de que adiantaria extinguir com a felicidade alheia se ele continuaria amargurado, triste, solitário? Não era justo acabar com a felicidade alheia se isso não lhe daria nada em troca – Já sei! Preciso de piadas novas, de truques novos, de bordões modernos!
            O morador da casa mais colorida da Rua 417 começou a se atualizar... passou semanas lendo, assistindo aos vídeos de humor da moda, treinando novos truques de mágica. Ele sentia que estava pronto para voltar à ativa – mesmo que nunca tivesse saído. Estava pronto para fazer as pessoas rirem dele novamente... E ser o motivo da alegria dos outros era o que lhe proporcionava a felicidade.  
            Tudo pronto, vizinhos convidados, balas, doces, pirulitos coloridos. Naquele fim de tarde de sábado, Palhaço iria voltar com novidades e alegrar todo mundo novamente. Um carro de som passou pela manhã, mas, apesar disso, ninguém apareceu. Ninguém parecia precisar de um pouco de alegria. As crianças não se interessaram, os pais tinham equipamentos eletrônicos de ponta e uma assinatura de TV riquíssima. Por que iriam para um showzinho de Palhaço, o palhaço do fundo de quintal?
            Palhaço montou um plano. Ele mataria alguém do bairro. Dona Edilene era a mulher mais velha da vizinhança. Uma verdadeira matriarca que gerou muitos dos que fundaram a escola, a igreja e o posto de saúde. À noite, na calada, ele foi até a sua casa. A matou com um martelo colorido. Ela nem pode reagir no auge dos seus 99 anos. Tudo já estava programado para a festa do seu centésimo aniversário no mês seguinte. No entanto, a tristeza que tomou conta de todos foi muito passageira. Ninguém procuraria os serviços do palhaço do bairro por conta da morte de uma velha que já tinha passado da hora.
            Desta vez, ele faria o que achava mais certo. Matar uma velha já a beira da morte não tinha sido um bom plano. É certo que todos da região a amavam, mas daí a perder a capacidade de se alegrar por conta de uma senhora de quase cem anos é querer um pouco demais... se fossem crianças, se fosse uma tragédia... se fosse algo que acontecesse na igreja, no catecismo. Sim... agora, Palhaço tinha um plano.
            Foi, de fato, uma tragédia. Três crianças na primeira infância foram encontradas vítimas de morte violenta na creche do bairro. Saiu no RN TV, saiu no Jornal Nacional, saiu no Fantástico como nota. Comoção geral dos moradores do bairro em que ficava a Rua 417. Um conforto: Palhaço, o palhaço tinha anunciado há poucos dias um novo show com novas piadas, novos truques e bordões modernos. Passado o luto inicial, o mais dolorido, todos foram à Rua 417 comer balas, picolés e pirulitos que deixavam a língua azul. Toda vez que algo macabro acontecia, Palhaço tinha seus momentos de felicidade. Ele alegrava um pouco a vida de quem tivera sido marcado por alguma tragédia. 

sexta-feira, 29 de maio de 2015

O cheque em branco

Eu estava na fila do banco. Faltavam algumas pessoas para ser atendidas. Eu tremia. Estava com um cheque em branco do meu pai. Eu tremia. Aquilo era, de certa forma, errado, mas eu precisava pegar todo o dinheiro da conta corrente... raspar o tacho. Iria preencher ali na hora o valor todo. Eu tremia, temia, mas me continha... não iria deixar um centavo no banco.
Tinha 16 anos. Morava numa cidade pequena do interior de São Paulo. Todos me conheciam, sabiam que eu era responsável. Desde que meu pai tinha ficado doente, eu quem fazia todo serviço burocrático da casa. Ia no banco trocar os cheques, fazia as contas do mês, calculava o quanto tinha na dispensa e o que compensava mais comprar para a feira.
Meu pai já estava muito doente, e eu aprendi a falsificar sua assinatura. Ninguém percebeu. Eu ia ao banco todo mês pegar o dinheiro necessário para pagar as contas de casa. Mas naquele dia era diferente... eu iria pegar todo dinheiro da conta corrente, não iria deixar um centavo furado para contar história. Eu já estava cansado daquilo tudo!
A minha vez já estava chegando. Tinha umas três pessoas na milha frente na fila. Eu suava. Já sabia exatamente o que iria fazer com o dinheiro, já estava tudo planejado. Entreguei o cheque um pouco nervoso, mas contido. No caixa, a atendente me dava alguns cruzados novos; parado no semáforo em frente ao banco, o carro da funerária convidava os moradores da cidade para o enterro do meu pai ao som de Ave Maria Gounod.

terça-feira, 26 de maio de 2015

A magia do São João

            



            Há muito tempo eu não sei o que é comer uma boa canjica, já que aqui em São Paulo canjica é diferente. Aqui o povo não acende fogueira, não assa milho verde, e faz umas arrumações estranhas e dizem que é quadrilha.
            Meu sonho é voltar, nem que seja por um dia, à minha terra, no dia de São João...

...

Três anos depois.

– Já faz dez anos que a gente tá morando aqui em São Paulo, não é homi? – disse minha mulher.
– É morena, e daí?
– E daí que a gente podia ir lá pra o Rio Grande do Norte, visitar minha mãe no interior e dançar forró na festa junina.
– É o que eu mais quero, minha flor, mas, trabalhando de pedreiro, com que dinheiro eu vou pagar o ônibus?
– Sabe, meu bem, eu fiz uma promessa a São João, disse que se ele me fizesse ganhar a rifa da geladeira eu ia vendê ela e usar o dinheiro pra ir curtir a festa dele, lá no nosso interior, na nossa terra.
– E você comprou aquela rifa, mulher. Poxa! Cinco reais é dinheiro...
– Homi, cê não me aperreie que eu achei cinco reais na frente da padaria.
– E por que você não comprou leite pros meninos? Cê sabe que aqui o governo não dá leite igual lá.     
– Ah, meu nêgo, São João vai nos abençoar, a gente vai viajar, vai voltar pro nosso Seridó.
– Se bem que se a gente conseguisse mesmo ir pra lá eu nem voltaria mais pra São Paulo, viveria lá mesmo, voltaria pra roça...
– Quem sabe? Quem sabe?...

Uma Semana depois...

            – Morena, minha linda, minha flor... – alvoroçado chamei por Severina.
            – Que é, nêgo? O que aconteceu?
            – Nossa vida vai melhorar! Fui promovido a mestre de obras.
            – Que ótimo, Clenilson. Já não era sem tempo, dez anos de pedreiro... – Severina me abraçou e me cheirou o cangote. – Amanhã é o sorteio da rifa. Quem sabe essa onda de sorte não assopra na sacolinha?
            – É... mas se a gente ganhar...
            – O quê?
            – Nada, deixa pra lá.

No dia seguinte, o resultado da rifa saiu. Severina ganhou a tal geladeira duplex inox e frost free.

– Olha, me amor. Ganhamos a geladeira, podemos vender e viajar! – muito feliz Severina veio me mostrar o canhoto da rifa. – Podemos hoje mesmo buscar na loja...
– Tá Severina, nós vamos buscar, mas não vamos vendê.
– Por que não? – com os olhos tristes ela me indagou. 
– Porque nós não vamos mais viajar. Não posso largar o trabalho logo agora que fui promovido, meu salário vai triplicar, vamos mudar de vida. Daqui a um ano, quando saírem minhas férias, a gente viaja.
– Mas eu prometi a São João! – indignada ela tentou me argumentar.
– Cumpra a promessa ano que vem.
– Mas...
– Sem mas nem meio mas – meio ignorante eu dei o dito.

Severina correu até o quarto e, de joelhos, rezava a São João com um terço na mão.
“Meu Santo, São João, faça com que o Clenilson mude de ideia e viaje com a gente para o interior para prestigiar sua festa, meu Santinho, São João...”
Vendo aquela situação, me arrepiei... o que a gente mais queria era passar o São João com a família e quando a gente é abençoado tenho que optar entre uma benção e outra... Quando morávamos na seca, quando as adutoras não passavam na cidade, nosso sonho era vir pra São Paulo pra mode criar os filhos melhor. O Alexanderson mesmo... está trabalhando comigo de servente, não dou mais um ano ele já vira pedreiro e pode se mudar daqui de casa com a mulher e o filho...
Tempo depois, fui dormir com o coração pesado, com o sorriso sem querer levantar do rosto. Deitei sozinho na cama, Severina ainda estava rezando, agora de voz baixa pra eu não ouvir. Não impeço ela de acender vela de noite, mas rezar de voz alta atrapalha meu sono e eu tenho que acordar cedo no dia seguinte, ainda mais agora que sou mestre de obras e vou começar amanhã a comandar os peões.
– Você não quer deixar sua mulher cumprir a promessa que fez a mim, Clenilson, você não pode impedi-la disso, ela me pediu uma graça e eu concedi – me disse São João. É... ele mesmo, segurando a cruz na mão esquerda e um novilho na mão direita, imediatamente me ajoelhei e beijei seus pés.
– São João, meu santo, não é por mal, mas se eu abandonar o emprego agora vou perder a maior oportunidade da minha vida... O senhor, mais que ninguém, sabe o quanto eu quis essa promoção, logo agora que o senhor me concedeu essa garça eu tenho que esforçar para não perdê ela – com medo de olhar nos olhos do santo, eu disse com a voz tremendo e quase rouca.
Assim que passou a mão sobre minha cabeça, depois que terminei de me defender, meu Santo João desapareceu numa nuvem de fumaça deixando um perfume que não tinha sentido antes em toda minha vida.
Acordei suado, era mais ou menos duas e meia. Não dormi mais.
No dia seguinte, lá no trabalho, disse para o chefe que precisava viajar na semana seguinte, ele disse que tinham acabado de me contratar como mestre de obras e que eles realmente precisavam de mim... ele não poderia e não queria me dar esses dias de folga, e me alertou que se eu fosse sem seu consentimento seria demissão por justa causa, por abandono de emprego, sei lá... agradeci e no final do expediente já tinha minha ideia formada.
– Severina, venha cá, minha morena!
– O que foi Clenilson? – ela apareceu com a cara assustada.
– Cadê a geladeira? Não estou vendo ela aqui.
– É... Vendi – me olhou como um cachorro que tinha comido a carne que estava descongelando na janela.
– Vendeu? Vendeu pra quê?
– Tive um sonho com São João, e ele me disse pra vender e cumprir a promessa.
Fiquei calado e espantado por um longo instante...
– Foi mesmo, minha nêga?
– Foi, Clenilson... Ele...
– Não precisa me dizer nada – peguei ela e abracei.
– Pode arrumar as mala, amanhã mesmo nós pegamos o ônibus, pergunta se Alexanderson vai querer ir com a mulher.
– Já perguntei, ele prefere ficar...
Fui tomar banho e chorei. Não chorava fazia tempo, acho que desde menino.

...

Dançamos e abraçamos muito nossa família e nossos amigos. Ficamos dez dias exatos, estava feliz demais pra me preocupar com o trabalho. Um irmão meu tinha comprado uma granja e estava criando camarão, me ofereceu emprego, me pediu para ficar, falei pra ele que pensaria e agradeci, tinha voltar pra São Paulo, nossa vida estava toda lá, se não arrumasse outro trabalho, iria arrumar um modo de voltar.

...

Assim que a gente chegou a São Paulo procurei a firma. O chefe lá olhou muito pra mim com as sobrancelhas abaixadas na direção do nariz e disse:
– Clenilson... – fiquei com o coração batendo. – Olha só: você me desobedeceu, pedi pra não viajar, pois estávamos precisando de você... Se não fosse a demanda de serviço, não te aceitava nem como servente, mas... pode começar, ou melhor, pode voltar pra seu cargo de mestre de obras amanhã mesmo, mas com uma condição.
– Qual, doutor?
E me olhando fulminantemente – Só você deixar esse sorriso pular fora dos beiços agora mesmo.
Abracei o engenheiro formado. No dia seguinte, voltei... com mais ânimo e mais fé em São João do que nunca.



27 de maio de 2009

terça-feira, 19 de maio de 2015

Tia Alcinéia


Tia Alcinéia foi a minha professora da alfabetização. Terminei o mestrado há pouco tempo e confesso que não me lembro de alguns professores. Mas de Tia Alcinéia, que me ensinou a codificar e decodificar o português há vinte anos, eu me lembro. Lembro muito bem, infelizmente.
Tia Alcinéia era baixinha, gorda, calva, com alguns dentes faltando e com os que sobravam meio podres. Ela era, como deveria ser toda alfabetizadora da época, extremamente tradicional. Tão tradicional que hoje eu conto os castigos que ela me passava aos meus alunos e eles não acreditam, acham que é coisa de desenho da Fox. Eu repetia, sempre que fazia algo errado, duzentas vezes na folha de ofício “Não devo fazer x coisa”. Não me lembro o que aprontava, não me lembro o que escrevia, mas lembro das lágrimas molhando o papel branco que o lápis fatalmente furava e eu tinha que passar tudo a limpo.
Tia Alcinéia me marcou... Certa vez, vendo tevê com minha mãe, apareceu uma mulher com este nome. Eu gelei. Já adulto. Gelei. – Lembra de Tia Alcinéia, Rodrigo? Que tomava seu refrigerante? – disse minha mãe. Não só me lembro como até hoje eu agradeço a quem seja lá que foi que me ensinou a abrir uma lata.
Tia Alcinéia era quem abria meu refrigerante. Os meus dedos, tadinhos, eram pequenos, eu não conseguia abrir a latinha. Tinha que pedir para a única pessoa com dedos fortes da turma: a professora. O problema é que, além de dedos fortes, ela tinha dentes podres e faltando, e ainda tinha um péssimo hábito: o de dar o primeiro gole.
– Tia Alcinéia está tomando meu refrigerante! – contei pra minha mãe. Ela foi lá, claro, reclamar... aprendi a reclamar com a minha mãe. Não sei se Tia Alcinéia ouviu o pedido ou simplesmente pararam de me mandar latas de refrigerante, mas de uma coisa eu sei e não esqueço. Este nome e uma saudade: Tia Alcinéia. 

domingo, 17 de maio de 2015

Fala papai!

– Neném, fala papai!
– ...
– Fala mamãe!
– Mamãe.
– Fala vovó!
– Vovó.
– Fala titia!
– Titia.
– Fala vovô!
– Vovô.
– Fala papai!
– Mamãe.

sábado, 9 de maio de 2015

As descobertas de Zé Getúlio (01)


  José Getúlio era do interior, num grotão bem longínquo, numa cidade tão pequena que nem era conhecida como cidade. Como tantos outros, Zé Getúlio veio tentar a vida na capital. Alguém o tinha falado das maravilhas daqui como a praia, as gringas... Zé Getúlio não sabia nada além de lavorar. Trabalhava no pesado desde menino, desde que começou a perceber-se como parte da natureza, mesmo sem saber.
            No ônibus, a caminho da maior cidade do seu estado, José se admirou com algumas coisas como o posto de gasolina, por exemplo. Mas nada o impressionou mais do que um avião, que ele vira rasgando o céu como um anu. – A sua cidade era tão isolada que nem avião passava por cima –. A não ser por uma vez num filme que passava na televisão do seu Tobias, apontador de jogo de bicho, Zé Getúlio nunca tinha visto um avião, achava bonito... O pobre parecia um matuto, ou melhor... Parecia uma criança num planetário, impressionava-se com tudo que de novo via.
            Na capital, assim que chegou, Zé foi procurar serviço, lá mesmo na rodoviária nova, que cá entre nós, de nova não tem nada, não é mesmo? Um homem, vendedor de lanches, disse que sem estudos José só encontraria serviço de peão. José com os olhos mais brilhantes que a sua mãe quando ganha flores no único dia ano que você diz que a ama, perguntou se o vendedor podia lhe dar um endereço, uma referência... qualquer coisa que o ajudasse encontrar lugar pra trabalhar, e assim o vendedor o fez, deu o endereço de uma empreiteira. Sem lanchar, pois não tinha muito dinheiro, José Getúlio procurou o tal lugar indicado pelo velho e bom vendedor.
            A sede da empresa era na zona sul. No caminho, José viu o mar pela primeira vez, pensou em voz alta: “– Que açude mais grande, quem será que o dono dele?”. Uma senhora, que também era do interior, mas morava aqui fazia mais de ano, disse que aquilo não era um açude, mas, sim, o mar. – “O Mar?!?!”. Zé Getúlio desceu imediatamente, queria ver o mar mais de perto. Só que o caminho até a empresa era longe, e nosso herói já não tinha mais dinheiro para ir até lá de ônibus. Assim que se deu conta disso, se enjoou da praia, mas teve de aturá-la por um bom pedaço do caminho até o local indicado no endereço.
Suado, cansado e faminto, Zé Getúlio chegou em pleno horário de pico, quando os trabalhadores estavam a todo vapor. Ele tentou falar com algum encarregado, mas o pessoal do escritório tava em outro canteiro. Devido à sua simplicidade e à sua linguagem, caiu no encanto do mestre de obras que lhe ofereceu água e um pão com mortadela. José se fartara de água. Só pensava em beber como um camelo desde que vinha seguindo debaixo do som. Ele olhava a água de coco nas barraquinhas da praia, mas lembrava do seu bolso vazio e furado.
            O mestre permitiu que José dormisse na obra, no dia seguinte falaria com alguém. Zé Getúlio sonhava acordado, pensava em como sua velha mãe iria achar bonito o mar, os ônibus com assentos confortáveis, roletas e letreiros luminosos. Ele fazia planos, queria uma vida melhor, por isso esqueceu do difícil primeiro dia e dormiu como um bebê após a amamentação.

            No dia seguinte, Zé acordou junto com o sol. Mesmo sem o seu galo, Billy, ele levantou na mesma hora de sempre.      O mestre de obras convenceu seu superior a contratar José Getúlio, mas logo veio o primeiro empecilho: José não tinha RG, CPF e Carteira de Trabalho, mas ainda bem que carregava o registro dentro de um pano alvo e um saco plástico, cuidava daquele único documento com o maior cuidado e temor.
            Um arquiteto estagiário se ofereceu pra levar Zé pra fazer os documentos, ele estava indo pro aeroporto, iria ver se a mala que tinham extraviado na sua última viagem havia sido recuperada, já que por telefone não se resolve nada mesmo, na volta, poderia levar o Zé para tirar os documentos.
            No início Zé, ficou acanhado, com vergonha do moço estudado e de carrão. Mas logo foi se soltando, pois viu que César era um cara legal.
– Você já foi no aeroporto, Zé? – perguntou César.
– Não, senhor– respondeu como quem fala pra dentro, o pobre do José Getúlio.
– Que isso, rapaz? O Senhor está no céu. Me chame de você – respondeu simpaticamente César.
– Tá Certo, Doutor? – falou mostrando mais a voz desta vez.
– Que porra é essa de doutor? Deixe de ser matuto e me chame de você, galado – César ria e dava tapinhas no ombro de Zé.
José Getúlio não sabia ainda o que significava galado, mas deduziu pelo tom de César que galado queria dizer amigo, e sorriu todo pomposo e pensou: – Se o povo do interior souberem que virei amigo de doutor, vão querer votarem ni mim para político e tudo.
– Ô, eu vou passar no aeroporto rapidinho, depois a gente passa na Central do Cidadão pra tirar seus documentos, ok?
Zé Getúlio disse que sim com a cabeça. Tentou não transmitir o nervosismo e o entusiasmo que estava sentido por saber que iria conhecer o aeroporto. Ele pensava em sua mãe, sua velha mãe que nunca tinha saído do sertão, ela ficaria feliz ao conhecer o mar como ele o fez no dia anterior, e também o aeroporto. José conversava consigo mesmo e, em pensamento, prometia a si mesmo trazer sua mãinha no próximo ano, quando ele haveria de ter um bom dinheiro, pois iria se esforçar mais que tudo para se dar bem na obra que caiu do céu para sua extrema alegria.
 Os olhos do nosso protagonista brilharam, talvez um brilho mais intenso do que quando o céu ameaça chuva no sertão entre o meio e o fim do período de estiagem, assim que viu o primeiro avião já no céu, César, ao perceber tal encantamento, decidiu levar Zé Getúlio no segundo andar do aeroporto para que ele visse a pelo menos uma decolagem.
   Assim que se deu conta do que estava vendo, assim que percebeu um avião decolando, Zé não conteve sua curiosidade e espanto e perguntou ao arquiteto:
– Cadê a rampa, homi?
– Que rampa, Zé?
– A rampa por onde o avião sobe. A rampa.


sábado, 14 de fevereiro de 2015

Com a luneta 001

Eu tava no muro tentando olhar para a vizinha da frente, mas não vi. Via a mãe dela, uma mulher chata que inveja a vida das pessoas, que chifra o marido com um dos amigos do bêbado que ele se tornou por conta da traição. A mãe dela se transformou num bode, num bode voador... parecia a aquele cachorro da história sem fim, mas ele era bem menor, e tinha chifres, e carregava uma bolsa rosa. O bode tentava impedir que uma pomba levasse seus temperos mágicos que seriam colocados na merenda barata e superfaturada da escola pública do bairro distante. Um bairro conhecido pelas suas altas taxas de criminalidade, um bairro pra onde iriam adolescentes de classe mérdia comprar talco de narina de senador e desencaminhar mocinhas quase inocentes. Vi tudo isso com a minha luneta. 

sábado, 15 de novembro de 2014

Meninos do sinal


No sinal, meninos tentam
Com rodos nas mãos
Ou bolas de malabares
Eles pedem mais do que dinheiro
Atenção
A culpa é de quem
Por estarem assim?

Se querem pão ou crack
É quase difícil saber
Mas estes meninos
Com cicatrizes nas testas
E calos nas mãos
Tentam
E quase nunca conseguem
Fumar ou comer.



sexta-feira, 3 de outubro de 2014

O cego na praça



Era um cego na praça. Ele vendia quadros lindos pintados a óleo. Quadros que retratavam paisagens magníficas, cenas de família. Um cachorro que se parecia muito com o animal que deitava ao seu lado, um cão velho, sujo e com uma ferida na orelha com muitos bichos.
– Quanto estão os quadros? – perguntei.
– Depende, meu filho. O quadro do cachorro sob a sombra da tarde está cinquenta reais. O quadro do senhor sorridente abraçando o seu filho que chora pela perda do dente custa setenta reais. Os preços variam. Você se interessou por algum?
– Sim – fiquei curioso pra saber como ele sentia ao descrever uma cena que nunca viu. – Gostei do quadro da senhora lendo.
– Foi? O que te chamou a atenção neste quadro?
– Não sei... achei a senhora simpática. Não entendo muito de pintura – disse.
– Olhe bem para o seu sorriso. É um sorriso simétrico, dificilmente alguém sorri assim. Cada lado de um ser humano é diferente do outro... você tem uma orelha maior que a outra, um olho mais caído que o outro, pode ter milímetros  a mais numa perna ou braço – o cego disse virado para o nada. E continuou: – O livro que ela segura não é qualquer livro, é um livro de histórias infantis. Perceba como as extremidades do livro estão gastas, como se ele fosse lido inúmeras vezes durante a sua vida. A cadeira de balanço a qual a senhora está sentada também não é uma cadeira comum... é uma cadeira de amamentação. Todos pensam que são iguais, mas as linhas de uma cadeira de amamentação e uma cadeira de balanço são diferentes. A cadeira de amamentação é um pouco mais leve de se olhar.
            Fiquei espantado com os detalhes da descrição. Não contive a curiosidade e perguntei:
            – Como o senhor, sendo cego, sabe tão bem sobre os quadros que está vendendo? O senhor é cego mesmo.
            – Gostaria muito de ser um charlatão, mas, infelizmente, sou cego. Sei sobre os quadros porque fui eu mesmo que pintei.
            Fiquei sem reação. Perguntei o preço do quadro da senhora. Ele disse que custava oitenta reais. Eu não tinha esse dinheiro. Fui embora.

sábado, 8 de setembro de 2012

O episódio da lâmpada



Estava cumprindo a quarentena no hospital onde acordei após meu sono de dez anos. Era tardezinha. Eu acabava de tomar o chá de erva cidreira que me deram acompanhado de um belo pão com manteiga, um pão quentinho como eu não comia fazia tempo – isso sem levar em conta os dez anos – é que mesmo antes de dormir eu já desejava um pãozinho desse mesmo jeito, que me fazia parecer ter voltado à infância... Comer aquele pão me lembrava bons momentos, uma simples mistura milenar de trigo e água que era incrementada pela minha mãe com a quantidade exata do recheio perfeito para um pão quentinho, a manteiga.
Decidi passear pelo hospital, conhecer gente nova. Caminhando pelos corredores aleatoriamente olhando para as fotografias nos murais, nos recortes de revista que falavam sobre os pacientes importantes e desimportantes que haviam sido “salvos” naquele centro de ajuda, como ainda eu não tinha visto a não ser por aquelas séries americanas que passavam na televisão antes da Rede Globo começar a fazer minisséries tão boas como as produzidas nos Estados Unidos.
Sentado, calado e olhando para o teto; foi assim que estava ele, Antônio de Macedo e Maria, pelo menos foi o que a enfermeira me disse quando a indaguei sobre aquele sujeito que me fez dar tantas gargalhadas que quase não consegui escrever este capítulo só por lembrar aquela cena de alguns muitos anos atrás.
Disse olá e me apresentei da forma mais simpática possível. – E você, como se chama? – perguntei com toda delicadeza e respeito, pois não sabia como iria reagir aquele sujeito meio... pensativo, talvez. Porém ele nada me respondeu, apenas me olhou, não nos olhos, e pôs-se a voltar a admirar o teto, que era tão comum como o teto da sua casa, a não ser que você more numa casa sem forro, num palacete ou debaixo duma ponte de concreto, com todo respeito.
– Hei, senhor! – chamei pela segunda vez, desta cutucando-o no ombro. Ele, além de não responder, não me olhou, nem se moveu como no primeiro contato.
– Amigo, vamos conversar! O gato comeu sua língua? Vamos cara... vamos bater um papo, eu lhe pago um cafezinho... – ele nem deu atenção.
Percebi que poderia estar falando com uma pessoa simplesmente grossa, que não gostasse mesmo de conversar. Aquele cara poderia estar me esnobando, logo eu que fui tão amistoso, que já tinha feito amigos em todo o andar e metade do andar de cima ser ignorado por alguém que nem olhar nos meus olhos olhava...   
 – Vamos comer a lâmpada? – perguntei tentando descontrair, deixá-lo mais a vontade.
– O quê? – ele perguntou com os olhos arregalados, olhos de quem está sendo perseguido por policiais militares armados e despreparados.
– Vamos, me ajude a puxar este banco... Nós vamos comer esta lâmpada e vai ser agora­ – me levantava como se realmente quisesse a lâmpada.
 Eu já tinha percebido que ele era um doido e quis me divertir. Mas ele se agarrou ao banco e disse:
 – Não! Não! Não!... Não quero comer a lâmpada! Ela deve ter gosto de cebola. Não me dê por favor, por favor, por favor, por favor, por favor...
Nessa hora o doido começou a chorar enquanto eu já ficava sem ar de tanto rir. Os outros pacientes, entre eles deveria estar o segurança da rodoviária, caíram na gargalhada assim como eu. Aquela imagem era mesmo engraçada. Um doido, que deveria ter uns setenta anos, chorando como um bebê chamando a mãe para que ela não o deixasse comer aquela lâmpada, que ora devia ter gosto de cebola, ora devia ter gosto de vaga-lume, causando-o, assim, azia, que ele chamava de vulcãozinho no bucho.
Eu tinha que ter pedido uma cópia da fita à segurança do hospital, só para ver o povo todo caindo no chão, inclusive alguns enfermeiros, quando ouviam: – ­“Eu não quero ter um vulcãozinho no bucho, mãe! Eu não quero...” – e mais – “isso deve ter gosto de cebola crua, e eu não como cebola crua, porque cebola crua é ruim, é por isso que eu não como cebola crua, se eu achasse bom cebola crua eu comia cebola crua, mas como eu não gosto de cebola crua, eu não como cebola crua, porque cebola crua é ruim...” – O pobre dizia e chorava, aos soluços, ao mesmo tempo. Mas aí chegou uma psicóloga metida a dona da verdade, e do doido, acabando com a brincadeira.
Daí em diante, eu não precisava sair à procura de gente para conversar, as pessoas é quem me puxavam assunto partindo, é claro, da história da lâmpada com o doido Antônio de Macedo e Maria.
  

Trecho de Após o sono de dez anos
romance - Rodrigo Slama