Páginas

terça-feira, 26 de maio de 2015

A magia do São João

            



            Há muito tempo eu não sei o que é comer uma boa canjica, já que aqui em São Paulo canjica é diferente. Aqui o povo não acende fogueira, não assa milho verde, e faz umas arrumações estranhas e dizem que é quadrilha.
            Meu sonho é voltar, nem que seja por um dia, à minha terra, no dia de São João...

...

Três anos depois.

– Já faz dez anos que a gente tá morando aqui em São Paulo, não é homi? – disse minha mulher.
– É morena, e daí?
– E daí que a gente podia ir lá pra o Rio Grande do Norte, visitar minha mãe no interior e dançar forró na festa junina.
– É o que eu mais quero, minha flor, mas, trabalhando de pedreiro, com que dinheiro eu vou pagar o ônibus?
– Sabe, meu bem, eu fiz uma promessa a São João, disse que se ele me fizesse ganhar a rifa da geladeira eu ia vendê ela e usar o dinheiro pra ir curtir a festa dele, lá no nosso interior, na nossa terra.
– E você comprou aquela rifa, mulher. Poxa! Cinco reais é dinheiro...
– Homi, cê não me aperreie que eu achei cinco reais na frente da padaria.
– E por que você não comprou leite pros meninos? Cê sabe que aqui o governo não dá leite igual lá.     
– Ah, meu nêgo, São João vai nos abençoar, a gente vai viajar, vai voltar pro nosso Seridó.
– Se bem que se a gente conseguisse mesmo ir pra lá eu nem voltaria mais pra São Paulo, viveria lá mesmo, voltaria pra roça...
– Quem sabe? Quem sabe?...

Uma Semana depois...

            – Morena, minha linda, minha flor... – alvoroçado chamei por Severina.
            – Que é, nêgo? O que aconteceu?
            – Nossa vida vai melhorar! Fui promovido a mestre de obras.
            – Que ótimo, Clenilson. Já não era sem tempo, dez anos de pedreiro... – Severina me abraçou e me cheirou o cangote. – Amanhã é o sorteio da rifa. Quem sabe essa onda de sorte não assopra na sacolinha?
            – É... mas se a gente ganhar...
            – O quê?
            – Nada, deixa pra lá.

No dia seguinte, o resultado da rifa saiu. Severina ganhou a tal geladeira duplex inox e frost free.

– Olha, me amor. Ganhamos a geladeira, podemos vender e viajar! – muito feliz Severina veio me mostrar o canhoto da rifa. – Podemos hoje mesmo buscar na loja...
– Tá Severina, nós vamos buscar, mas não vamos vendê.
– Por que não? – com os olhos tristes ela me indagou. 
– Porque nós não vamos mais viajar. Não posso largar o trabalho logo agora que fui promovido, meu salário vai triplicar, vamos mudar de vida. Daqui a um ano, quando saírem minhas férias, a gente viaja.
– Mas eu prometi a São João! – indignada ela tentou me argumentar.
– Cumpra a promessa ano que vem.
– Mas...
– Sem mas nem meio mas – meio ignorante eu dei o dito.

Severina correu até o quarto e, de joelhos, rezava a São João com um terço na mão.
“Meu Santo, São João, faça com que o Clenilson mude de ideia e viaje com a gente para o interior para prestigiar sua festa, meu Santinho, São João...”
Vendo aquela situação, me arrepiei... o que a gente mais queria era passar o São João com a família e quando a gente é abençoado tenho que optar entre uma benção e outra... Quando morávamos na seca, quando as adutoras não passavam na cidade, nosso sonho era vir pra São Paulo pra mode criar os filhos melhor. O Alexanderson mesmo... está trabalhando comigo de servente, não dou mais um ano ele já vira pedreiro e pode se mudar daqui de casa com a mulher e o filho...
Tempo depois, fui dormir com o coração pesado, com o sorriso sem querer levantar do rosto. Deitei sozinho na cama, Severina ainda estava rezando, agora de voz baixa pra eu não ouvir. Não impeço ela de acender vela de noite, mas rezar de voz alta atrapalha meu sono e eu tenho que acordar cedo no dia seguinte, ainda mais agora que sou mestre de obras e vou começar amanhã a comandar os peões.
– Você não quer deixar sua mulher cumprir a promessa que fez a mim, Clenilson, você não pode impedi-la disso, ela me pediu uma graça e eu concedi – me disse São João. É... ele mesmo, segurando a cruz na mão esquerda e um novilho na mão direita, imediatamente me ajoelhei e beijei seus pés.
– São João, meu santo, não é por mal, mas se eu abandonar o emprego agora vou perder a maior oportunidade da minha vida... O senhor, mais que ninguém, sabe o quanto eu quis essa promoção, logo agora que o senhor me concedeu essa garça eu tenho que esforçar para não perdê ela – com medo de olhar nos olhos do santo, eu disse com a voz tremendo e quase rouca.
Assim que passou a mão sobre minha cabeça, depois que terminei de me defender, meu Santo João desapareceu numa nuvem de fumaça deixando um perfume que não tinha sentido antes em toda minha vida.
Acordei suado, era mais ou menos duas e meia. Não dormi mais.
No dia seguinte, lá no trabalho, disse para o chefe que precisava viajar na semana seguinte, ele disse que tinham acabado de me contratar como mestre de obras e que eles realmente precisavam de mim... ele não poderia e não queria me dar esses dias de folga, e me alertou que se eu fosse sem seu consentimento seria demissão por justa causa, por abandono de emprego, sei lá... agradeci e no final do expediente já tinha minha ideia formada.
– Severina, venha cá, minha morena!
– O que foi Clenilson? – ela apareceu com a cara assustada.
– Cadê a geladeira? Não estou vendo ela aqui.
– É... Vendi – me olhou como um cachorro que tinha comido a carne que estava descongelando na janela.
– Vendeu? Vendeu pra quê?
– Tive um sonho com São João, e ele me disse pra vender e cumprir a promessa.
Fiquei calado e espantado por um longo instante...
– Foi mesmo, minha nêga?
– Foi, Clenilson... Ele...
– Não precisa me dizer nada – peguei ela e abracei.
– Pode arrumar as mala, amanhã mesmo nós pegamos o ônibus, pergunta se Alexanderson vai querer ir com a mulher.
– Já perguntei, ele prefere ficar...
Fui tomar banho e chorei. Não chorava fazia tempo, acho que desde menino.

...

Dançamos e abraçamos muito nossa família e nossos amigos. Ficamos dez dias exatos, estava feliz demais pra me preocupar com o trabalho. Um irmão meu tinha comprado uma granja e estava criando camarão, me ofereceu emprego, me pediu para ficar, falei pra ele que pensaria e agradeci, tinha voltar pra São Paulo, nossa vida estava toda lá, se não arrumasse outro trabalho, iria arrumar um modo de voltar.

...

Assim que a gente chegou a São Paulo procurei a firma. O chefe lá olhou muito pra mim com as sobrancelhas abaixadas na direção do nariz e disse:
– Clenilson... – fiquei com o coração batendo. – Olha só: você me desobedeceu, pedi pra não viajar, pois estávamos precisando de você... Se não fosse a demanda de serviço, não te aceitava nem como servente, mas... pode começar, ou melhor, pode voltar pra seu cargo de mestre de obras amanhã mesmo, mas com uma condição.
– Qual, doutor?
E me olhando fulminantemente – Só você deixar esse sorriso pular fora dos beiços agora mesmo.
Abracei o engenheiro formado. No dia seguinte, voltei... com mais ânimo e mais fé em São João do que nunca.



27 de maio de 2009

terça-feira, 19 de maio de 2015

Tia Alcinéia


Tia Alcinéia foi a minha professora da alfabetização. Terminei o mestrado há pouco tempo e confesso que não me lembro de alguns professores. Mas de Tia Alcinéia, que me ensinou a codificar e decodificar o português há vinte anos, eu me lembro. Lembro muito bem, infelizmente.
Tia Alcinéia era baixinha, gorda, calva, com alguns dentes faltando e com os que sobravam meio podres. Ela era, como deveria ser toda alfabetizadora da época, extremamente tradicional. Tão tradicional que hoje eu conto os castigos que ela me passava aos meus alunos e eles não acreditam, acham que é coisa de desenho da Fox. Eu repetia, sempre que fazia algo errado, duzentas vezes na folha de ofício “Não devo fazer x coisa”. Não me lembro o que aprontava, não me lembro o que escrevia, mas lembro das lágrimas molhando o papel branco que o lápis fatalmente furava e eu tinha que passar tudo a limpo.
Tia Alcinéia me marcou... Certa vez, vendo tevê com minha mãe, apareceu uma mulher com este nome. Eu gelei. Já adulto. Gelei. – Lembra de Tia Alcinéia, Rodrigo? Que tomava seu refrigerante? – disse minha mãe. Não só me lembro como até hoje eu agradeço a quem seja lá que foi que me ensinou a abrir uma lata.
Tia Alcinéia era quem abria meu refrigerante. Os meus dedos, tadinhos, eram pequenos, eu não conseguia abrir a latinha. Tinha que pedir para a única pessoa com dedos fortes da turma: a professora. O problema é que, além de dedos fortes, ela tinha dentes podres e faltando, e ainda tinha um péssimo hábito: o de dar o primeiro gole.
– Tia Alcinéia está tomando meu refrigerante! – contei pra minha mãe. Ela foi lá, claro, reclamar... aprendi a reclamar com a minha mãe. Não sei se Tia Alcinéia ouviu o pedido ou simplesmente pararam de me mandar latas de refrigerante, mas de uma coisa eu sei e não esqueço. Este nome e uma saudade: Tia Alcinéia. 

domingo, 17 de maio de 2015

Fala papai!

– Neném, fala papai!
– ...
– Fala mamãe!
– Mamãe.
– Fala vovó!
– Vovó.
– Fala titia!
– Titia.
– Fala vovô!
– Vovô.
– Fala papai!
– Mamãe.

sábado, 9 de maio de 2015

As descobertas de Zé Getúlio (01)


  José Getúlio era do interior, num grotão bem longínquo, numa cidade tão pequena que nem era conhecida como cidade. Como tantos outros, Zé Getúlio veio tentar a vida na capital. Alguém o tinha falado das maravilhas daqui como a praia, as gringas... Zé Getúlio não sabia nada além de lavorar. Trabalhava no pesado desde menino, desde que começou a perceber-se como parte da natureza, mesmo sem saber.
            No ônibus, a caminho da maior cidade do seu estado, José se admirou com algumas coisas como o posto de gasolina, por exemplo. Mas nada o impressionou mais do que um avião, que ele vira rasgando o céu como um anu. – A sua cidade era tão isolada que nem avião passava por cima –. A não ser por uma vez num filme que passava na televisão do seu Tobias, apontador de jogo de bicho, Zé Getúlio nunca tinha visto um avião, achava bonito... O pobre parecia um matuto, ou melhor... Parecia uma criança num planetário, impressionava-se com tudo que de novo via.
            Na capital, assim que chegou, Zé foi procurar serviço, lá mesmo na rodoviária nova, que cá entre nós, de nova não tem nada, não é mesmo? Um homem, vendedor de lanches, disse que sem estudos José só encontraria serviço de peão. José com os olhos mais brilhantes que a sua mãe quando ganha flores no único dia ano que você diz que a ama, perguntou se o vendedor podia lhe dar um endereço, uma referência... qualquer coisa que o ajudasse encontrar lugar pra trabalhar, e assim o vendedor o fez, deu o endereço de uma empreiteira. Sem lanchar, pois não tinha muito dinheiro, José Getúlio procurou o tal lugar indicado pelo velho e bom vendedor.
            A sede da empresa era na zona sul. No caminho, José viu o mar pela primeira vez, pensou em voz alta: “– Que açude mais grande, quem será que o dono dele?”. Uma senhora, que também era do interior, mas morava aqui fazia mais de ano, disse que aquilo não era um açude, mas, sim, o mar. – “O Mar?!?!”. Zé Getúlio desceu imediatamente, queria ver o mar mais de perto. Só que o caminho até a empresa era longe, e nosso herói já não tinha mais dinheiro para ir até lá de ônibus. Assim que se deu conta disso, se enjoou da praia, mas teve de aturá-la por um bom pedaço do caminho até o local indicado no endereço.
Suado, cansado e faminto, Zé Getúlio chegou em pleno horário de pico, quando os trabalhadores estavam a todo vapor. Ele tentou falar com algum encarregado, mas o pessoal do escritório tava em outro canteiro. Devido à sua simplicidade e à sua linguagem, caiu no encanto do mestre de obras que lhe ofereceu água e um pão com mortadela. José se fartara de água. Só pensava em beber como um camelo desde que vinha seguindo debaixo do som. Ele olhava a água de coco nas barraquinhas da praia, mas lembrava do seu bolso vazio e furado.
            O mestre permitiu que José dormisse na obra, no dia seguinte falaria com alguém. Zé Getúlio sonhava acordado, pensava em como sua velha mãe iria achar bonito o mar, os ônibus com assentos confortáveis, roletas e letreiros luminosos. Ele fazia planos, queria uma vida melhor, por isso esqueceu do difícil primeiro dia e dormiu como um bebê após a amamentação.

            No dia seguinte, Zé acordou junto com o sol. Mesmo sem o seu galo, Billy, ele levantou na mesma hora de sempre.      O mestre de obras convenceu seu superior a contratar José Getúlio, mas logo veio o primeiro empecilho: José não tinha RG, CPF e Carteira de Trabalho, mas ainda bem que carregava o registro dentro de um pano alvo e um saco plástico, cuidava daquele único documento com o maior cuidado e temor.
            Um arquiteto estagiário se ofereceu pra levar Zé pra fazer os documentos, ele estava indo pro aeroporto, iria ver se a mala que tinham extraviado na sua última viagem havia sido recuperada, já que por telefone não se resolve nada mesmo, na volta, poderia levar o Zé para tirar os documentos.
            No início Zé, ficou acanhado, com vergonha do moço estudado e de carrão. Mas logo foi se soltando, pois viu que César era um cara legal.
– Você já foi no aeroporto, Zé? – perguntou César.
– Não, senhor– respondeu como quem fala pra dentro, o pobre do José Getúlio.
– Que isso, rapaz? O Senhor está no céu. Me chame de você – respondeu simpaticamente César.
– Tá Certo, Doutor? – falou mostrando mais a voz desta vez.
– Que porra é essa de doutor? Deixe de ser matuto e me chame de você, galado – César ria e dava tapinhas no ombro de Zé.
José Getúlio não sabia ainda o que significava galado, mas deduziu pelo tom de César que galado queria dizer amigo, e sorriu todo pomposo e pensou: – Se o povo do interior souberem que virei amigo de doutor, vão querer votarem ni mim para político e tudo.
– Ô, eu vou passar no aeroporto rapidinho, depois a gente passa na Central do Cidadão pra tirar seus documentos, ok?
Zé Getúlio disse que sim com a cabeça. Tentou não transmitir o nervosismo e o entusiasmo que estava sentido por saber que iria conhecer o aeroporto. Ele pensava em sua mãe, sua velha mãe que nunca tinha saído do sertão, ela ficaria feliz ao conhecer o mar como ele o fez no dia anterior, e também o aeroporto. José conversava consigo mesmo e, em pensamento, prometia a si mesmo trazer sua mãinha no próximo ano, quando ele haveria de ter um bom dinheiro, pois iria se esforçar mais que tudo para se dar bem na obra que caiu do céu para sua extrema alegria.
 Os olhos do nosso protagonista brilharam, talvez um brilho mais intenso do que quando o céu ameaça chuva no sertão entre o meio e o fim do período de estiagem, assim que viu o primeiro avião já no céu, César, ao perceber tal encantamento, decidiu levar Zé Getúlio no segundo andar do aeroporto para que ele visse a pelo menos uma decolagem.
   Assim que se deu conta do que estava vendo, assim que percebeu um avião decolando, Zé não conteve sua curiosidade e espanto e perguntou ao arquiteto:
– Cadê a rampa, homi?
– Que rampa, Zé?
– A rampa por onde o avião sobe. A rampa.


sábado, 14 de fevereiro de 2015

Com a luneta 001

Eu tava no muro tentando olhar para a vizinha da frente, mas não vi. Via a mãe dela, uma mulher chata que inveja a vida das pessoas, que chifra o marido com um dos amigos do bêbado que ele se tornou por conta da traição. A mãe dela se transformou num bode, num bode voador... parecia a aquele cachorro da história sem fim, mas ele era bem menor, e tinha chifres, e carregava uma bolsa rosa. O bode tentava impedir que uma pomba levasse seus temperos mágicos que seriam colocados na merenda barata e superfaturada da escola pública do bairro distante. Um bairro conhecido pelas suas altas taxas de criminalidade, um bairro pra onde iriam adolescentes de classe mérdia comprar talco de narina de senador e desencaminhar mocinhas quase inocentes. Vi tudo isso com a minha luneta. 

sábado, 15 de novembro de 2014

Meninos do sinal


No sinal, meninos tentam
Com rodos nas mãos
Ou bolas de malabares
Eles pedem mais do que dinheiro
Atenção
A culpa é de quem
Por estarem assim?

Se querem pão ou crack
É quase difícil saber
Mas estes meninos
Com cicatrizes nas testas
E calos nas mãos
Tentam
E quase nunca conseguem
Fumar ou comer.



sexta-feira, 3 de outubro de 2014

O cego na praça



Era um cego na praça. Ele vendia quadros lindos pintados a óleo. Quadros que retratavam paisagens magníficas, cenas de família. Um cachorro que se parecia muito com o animal que deitava ao seu lado, um cão velho, sujo e com uma ferida na orelha com muitos bichos.
– Quanto estão os quadros? – perguntei.
– Depende, meu filho. O quadro do cachorro sob a sombra da tarde está cinquenta reais. O quadro do senhor sorridente abraçando o seu filho que chora pela perda do dente custa setenta reais. Os preços variam. Você se interessou por algum?
– Sim – fiquei curioso pra saber como ele sentia ao descrever uma cena que nunca viu. – Gostei do quadro da senhora lendo.
– Foi? O que te chamou a atenção neste quadro?
– Não sei... achei a senhora simpática. Não entendo muito de pintura – disse.
– Olhe bem para o seu sorriso. É um sorriso simétrico, dificilmente alguém sorri assim. Cada lado de um ser humano é diferente do outro... você tem uma orelha maior que a outra, um olho mais caído que o outro, pode ter milímetros  a mais numa perna ou braço – o cego disse virado para o nada. E continuou: – O livro que ela segura não é qualquer livro, é um livro de histórias infantis. Perceba como as extremidades do livro estão gastas, como se ele fosse lido inúmeras vezes durante a sua vida. A cadeira de balanço a qual a senhora está sentada também não é uma cadeira comum... é uma cadeira de amamentação. Todos pensam que são iguais, mas as linhas de uma cadeira de amamentação e uma cadeira de balanço são diferentes. A cadeira de amamentação é um pouco mais leve de se olhar.
            Fiquei espantado com os detalhes da descrição. Não contive a curiosidade e perguntei:
            – Como o senhor, sendo cego, sabe tão bem sobre os quadros que está vendendo? O senhor é cego mesmo.
            – Gostaria muito de ser um charlatão, mas, infelizmente, sou cego. Sei sobre os quadros porque fui eu mesmo que pintei.
            Fiquei sem reação. Perguntei o preço do quadro da senhora. Ele disse que custava oitenta reais. Eu não tinha esse dinheiro. Fui embora.

sábado, 8 de setembro de 2012

O episódio da lâmpada



Estava cumprindo a quarentena no hospital onde acordei após meu sono de dez anos. Era tardezinha. Eu acabava de tomar o chá de erva cidreira que me deram acompanhado de um belo pão com manteiga, um pão quentinho como eu não comia fazia tempo – isso sem levar em conta os dez anos – é que mesmo antes de dormir eu já desejava um pãozinho desse mesmo jeito, que me fazia parecer ter voltado à infância... Comer aquele pão me lembrava bons momentos, uma simples mistura milenar de trigo e água que era incrementada pela minha mãe com a quantidade exata do recheio perfeito para um pão quentinho, a manteiga.
Decidi passear pelo hospital, conhecer gente nova. Caminhando pelos corredores aleatoriamente olhando para as fotografias nos murais, nos recortes de revista que falavam sobre os pacientes importantes e desimportantes que haviam sido “salvos” naquele centro de ajuda, como ainda eu não tinha visto a não ser por aquelas séries americanas que passavam na televisão antes da Rede Globo começar a fazer minisséries tão boas como as produzidas nos Estados Unidos.
Sentado, calado e olhando para o teto; foi assim que estava ele, Antônio de Macedo e Maria, pelo menos foi o que a enfermeira me disse quando a indaguei sobre aquele sujeito que me fez dar tantas gargalhadas que quase não consegui escrever este capítulo só por lembrar aquela cena de alguns muitos anos atrás.
Disse olá e me apresentei da forma mais simpática possível. – E você, como se chama? – perguntei com toda delicadeza e respeito, pois não sabia como iria reagir aquele sujeito meio... pensativo, talvez. Porém ele nada me respondeu, apenas me olhou, não nos olhos, e pôs-se a voltar a admirar o teto, que era tão comum como o teto da sua casa, a não ser que você more numa casa sem forro, num palacete ou debaixo duma ponte de concreto, com todo respeito.
– Hei, senhor! – chamei pela segunda vez, desta cutucando-o no ombro. Ele, além de não responder, não me olhou, nem se moveu como no primeiro contato.
– Amigo, vamos conversar! O gato comeu sua língua? Vamos cara... vamos bater um papo, eu lhe pago um cafezinho... – ele nem deu atenção.
Percebi que poderia estar falando com uma pessoa simplesmente grossa, que não gostasse mesmo de conversar. Aquele cara poderia estar me esnobando, logo eu que fui tão amistoso, que já tinha feito amigos em todo o andar e metade do andar de cima ser ignorado por alguém que nem olhar nos meus olhos olhava...   
 – Vamos comer a lâmpada? – perguntei tentando descontrair, deixá-lo mais a vontade.
– O quê? – ele perguntou com os olhos arregalados, olhos de quem está sendo perseguido por policiais militares armados e despreparados.
– Vamos, me ajude a puxar este banco... Nós vamos comer esta lâmpada e vai ser agora­ – me levantava como se realmente quisesse a lâmpada.
 Eu já tinha percebido que ele era um doido e quis me divertir. Mas ele se agarrou ao banco e disse:
 – Não! Não! Não!... Não quero comer a lâmpada! Ela deve ter gosto de cebola. Não me dê por favor, por favor, por favor, por favor, por favor...
Nessa hora o doido começou a chorar enquanto eu já ficava sem ar de tanto rir. Os outros pacientes, entre eles deveria estar o segurança da rodoviária, caíram na gargalhada assim como eu. Aquela imagem era mesmo engraçada. Um doido, que deveria ter uns setenta anos, chorando como um bebê chamando a mãe para que ela não o deixasse comer aquela lâmpada, que ora devia ter gosto de cebola, ora devia ter gosto de vaga-lume, causando-o, assim, azia, que ele chamava de vulcãozinho no bucho.
Eu tinha que ter pedido uma cópia da fita à segurança do hospital, só para ver o povo todo caindo no chão, inclusive alguns enfermeiros, quando ouviam: – ­“Eu não quero ter um vulcãozinho no bucho, mãe! Eu não quero...” – e mais – “isso deve ter gosto de cebola crua, e eu não como cebola crua, porque cebola crua é ruim, é por isso que eu não como cebola crua, se eu achasse bom cebola crua eu comia cebola crua, mas como eu não gosto de cebola crua, eu não como cebola crua, porque cebola crua é ruim...” – O pobre dizia e chorava, aos soluços, ao mesmo tempo. Mas aí chegou uma psicóloga metida a dona da verdade, e do doido, acabando com a brincadeira.
Daí em diante, eu não precisava sair à procura de gente para conversar, as pessoas é quem me puxavam assunto partindo, é claro, da história da lâmpada com o doido Antônio de Macedo e Maria.
  

Trecho de Após o sono de dez anos
romance - Rodrigo Slama 

domingo, 30 de outubro de 2011

Chapeuzinho Vermelho e sua curiosidade sobre os lobos



– Vá na casa da sua avó, sua preguiçosa, e leve a cesta básica do mês – disse a mãe da Chapeuzinho Vermelho, uma menina de dezesseis anos que desde pequena usava um modelo original de chapéu cobiçado secretamente por todas as meninas da região.
– Não tô a fim, mãe! Todo mês eu levo essa cesta, por que você mesma não leva? Eu estou assistindo a nova temporada de Glee e não estou nem aí pra vovó...
Você sabe que aquela velha não fala comigo desde que seu pai morreu naquele acidente de carro.
O acidente tinha sido há cinco anos e meio, desde então, a mãe de Chapeuzinho tinha que ajudar a sua ex-sogra porque ela ameaçava pô-la na justiça e retirar a horta que ela cultivava, idealizada pelo pai da Chapéu. Até hoje, as causas do acidente não foram completamente esclarecidas, mas sabe-se que o pai dirigia, e perdeu o controle. O problema é que ele era conhecido pela sua extrema atenção, não desfocava de nada por nada. Algo fez com que ele perdesse os sentidos. O estranho é que ele estava com o sexo rígido quando encontrado, uma leve mancha de batom em sua cueca e um sorriso de felicidade que espantou a todos. No carro, só estavam o pai e a mãe de Chapeuzinho Vermelho.
Tá bom eu vou, falou a Chapéu, mas vou querer que aumente minha mesada daqui pra frente... todo mês é isso...
Menina, não reclame! Já não basta o colégio caro que te pago, a internet, a conta do celular e todo prejuízo que você me dá...
Tá bom, mas não enche o saco disse a menina, saindo com a cesta e deixando a mãe falando sozinha... Quando estava atravessando a rua, escutou o grito de sua mãe, que dizia a mesma coisa todo mês a mais de cinco anos:
Não vá pelo Bosque... tem muito lobo por lá e pode querer comer você.
Lobo era como as pessoas da região chamavam os rapazes que se aproveitavam de moças ingênuas.
Chapeuzinho Vermelho, que há muito não respeitava sua mãe – movida por uma índole rebelde da qual não sabia a origem –, foi, obviamente, pelo Bosque, o caminho mais curto, pois queria voltar logo para casa e continuar assistindo o seriado que parecia amar mais que sua própria segurança.
O Bosque é um lugar sombrio, um extenso corredor que ligava um lado da pequena cidade a outro, no entanto, a maior parte de sua extensão fica entre prédios antigos, alguns abandonados ou habitado por sem-tetos ou sabe-se lá Deus pelo quê. É conhecido pela quantidade de vagabundos e prostitutas que abriga. É quase que inteiramente calmo, mas não custa redobrar ou triplicar a atenção ao passar por lá, lembrando que só se dever fazer isso em caso de extrema necessidade.
Há muito, a Chapéu queria passar pelo Bosque e ver quem eram os tais lobos que todo mundo falava. – Será que são bonitões como o Cory Monteith? – se perguntava. Ela não sabia e nem tinha coragem para descobrir, mas naquele dia era unir o útil ao agradável... ela queria voltar logo para casa e queria saber quem eram os lobões...
No caminho, um pouco amedrontada, claro, ela cruzou pelo primeiro lobo, mas ele estava vendendo drogas para uma menina magra que só e nem deu atenção a ela. E, conforme foi caminhando em sua longa caminhada, ela cruzou com um lobo lindo, era exótico, tinha os cabelos grandes, a barba por fazer, um olhar tão negro quanto os seus sentimentos pela professora de física, ela olhou para as mãos dele – tinha fetiche com mãos – e se admirou com o tamanho: – Deve ser lutador de boxe – pensou.
O lobo logo flertou com a menina que recusou qualquer contato maior que o visual já existente, e pediu para seguir seu caminho em paz. O rapaz, que já ouvira boatos sobre a linda menina que visitava sua avó mensalmente, se apressou e foi para a casa da velha, tentar esperá-la lá, de preferência na cama. E assim o fez.
Chapeuzinho mal falava com sua avó, e assim que chegou na casa, que, em todo dia 05 de cada mês já ficava aberta, ela foi procurar saber se a velha estava viva.
– Vó! Cadê você? Sou eu...
Sem obter resposta ela pensou: – Ou a velha está dormindo ou morreu de vez. E foi até o quarto para saber como a velha estava. Ela estava dormindo, coberta dos pés à cabeça pelo edredom.
– Nossa, ela parece maior quando deitada – pensou em voz ligeiramente alta.
– Vó, vó, sou eu, Chapeuzinho, a senhora está dormindo?
Com a voz rouca a avó respondeu: – Não, minha netinha, estava esperando por você.
– Netinha? O que deu na senhora? E o que é isso grande aí no meio do edredom?
De súbito, o lobo tirou o edredom e disse: – É o meu pau, e é pra te comer...
Sem reação, sentindo uma mistura de excitação e medo, a Chapeuzinho não correu. Ficou ali parada esperando a ação do lobo, que a tornaria uma mulher.
Durante alguns longos minutos que formaram poucas horas, os dois se divertiram. Na hora de ir embora, a Chapéu perguntou ao novo amigo: – O que você fez com minha avó?
– Eu a comi antes de você chegar, de tão feliz, ela me emprestou a casa e foi fazer uma visita ao lenhador, o porteiro de um dos prédios da rua que faz uns bicos de michê para as madames da região. Acho que queria continuar a brincadeira.
Eles trocaram telefone e ficaram de se encontrar mais vezes. Daquele dia em diante, a Chapeuzinho Vermelho não reclamava mais quando mandada levar a cesta para sua avó. Elas até tinham um assunto em comum agora.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Um domingo diferente


Era manhã, já tarde. Acordava cedo todos os dias, mas naquele domingo precisava descansar. Danem-se os filhos, dane-se a esposa. A única coisa que precisava era de umas horas a mais de sono. De sonhos. Sonhos que demoram a chegar e acabavam logo, como o salário que não queria conhecer o fim do mês, como os momentos de felicidade com a mulher amada, que, por sinal, já fazia tempo que não via.
            Ah, aquela manhã tarde de domingo. Não sabia o que era o aconchego da cama há muito. Mas não tinha mesmo como saber. Acordando quatro e meia e dormindo às duas, quando o ônibus não atrasava mais do que o de costume, não restava mesmo tempo para apreciar as madeiras velhas e mal dispostas que maltratavam as costas de qualquer mortal.
            Mortal. Era mortal, mas esquecia. Acordava rápido e não tomava café. No meio do caminho, na baldeação, comprava um café de cinquenta centavos e um pão do mesmo preço. Se a pressa não fosse tamanha, poderia comprar cinco pães com aquele dinheiro, mas uma extravagância de vez em quando, e, pelo menos de vez em quando era quase todo dia, não fazia mal a ninguém. Era só acordar um pouco mais cedo num domingo ou outro e fazer um bico em algum lugar. Mas não naquele. Dane-se a esposa, danem-se os filhos.
            Era manhã, já tarde. As costas descobriam de onde vinham as dores que sentiam durante todos os dias. À tarde, assistia ao jogo, mas não naquele domingo. 

sexta-feira, 11 de março de 2011

Novíssimos tempos



As coisas acontecem a nossa volta e a gente não entende.
Na verdade, não há nada para se entender, a não ser como as coisas acontecem... em como as coisas estão organizadas de tal forma que nenhum paradigma pode ser quebrado; nenhuma exceção  pode ser concedida... tudo porque vivemos numa sociedade cristalizada, com conceito do século passado, que não acompanha a velocidade como se dão as coisas.
Só quem entende é quem vive do lado de cá, e fico feliz em saber que ainda há companheirismo, que há quem consiga enxergar além dos papéis, além do que antes era apenas um ou outro. Mas essa felicidade, que é muito boa de se ter, não consegue se manter quando o contexto é modificado. Daquele lado, há interesse, cobiça... autopreservação? As pessoas estão a cada dia olhando apenas para si, mas não são todos, são os das gerações passadas, e eles parecem se incomodar com o rumo que as coisas já tomaram, e não, como eles pensam, começam a acontecer.
Não queria nada de mais, apenas ser respeitado pelo que sou, não pelo que aparento ser, pelo que minha idade diz. Tem muita gente mais velha que não é tão experiente, que não leu tanto, que não viveu variedades na intensidade... É uma pena as coisas serem assim... Ao invés de atrasar alguns, eles deveriam tentar se adiantar, mas como? Como se o sistema não permite, e mesmo quem percebe a mudança e quer ajudar não pode? Não? Será que não temos mesmo poder suficiente para impor nossas vontades no seio desta sociedade que, a final, somos nós mesmos quem construímos e mantemos?
Realmente... não sei! Este não saber é frequente em meus textos, em meu dia a dia... e realmente não consigo formar uma única opinião, uma única hipótese... Mas chego a lugares comuns que a cada momento se tornam mais estreitos. E na paciência, que para nós é mais difícil de se ter, tento montar um quebra-cabeças sem fim... e deixo me levarem por não ter muitas forças, ou não ter conseguindo reunir muitas opiniões afins para reverter este quadro, que nem sei se vai conseguir acontecer, pois, afinal, os jovens de hoje serão os velhos de amanhã, e os novíssimos tempos se encherão de poeira de cristais seculares. É uma pena.

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Uma breve história de Gabriel, Bolsa Favela


Gabriel saía de casa todos os dias às seis e meia para comprar pão. A mãe trabalhava numa fábrica de calçados da cidade, o pai tinha abandonado a casa e a irmã mais velha só chegava depois das oito da manhã em casa, era camareira de um motel, ou pelo menos dizia ser.           
          Depois da aula de matemática, tinha aula de artes, sua aula favorita. Era opcional, por isso Michel, que gostava mais de futebol do que qualquer manifestação artística, não estaria lá para importuná-lo, chamá-lo de Bolsa Favela, já que era bolsista em um tradicional colégio particular, e o único negro da turma.
           Todos os professores gostavam do Gabriel, exceto a professora de geografia, que tinha feito especialização no Canadá e trabalha há dezessete anos da escola, seis a menos que o professor de matemática, Liovério, que já deveria ter se aposentado, mas tomava muitos remédios e, financeiramente, valia mais a pena passar dois expedientes de sua vida de idoso, mas não caduco, na sala de aula do Nossa Senhora de Fátima, do que vegetar com um salário miserável.
            De repente, ao sair da padaria que ia todos os dias, mesmo nos domingos, Gabriel sentiu uma dor, uma dor como nunca sentiu na vida, a última dor de sua vida. Um tiro. Na cabeça. Um tiro. Ele estava correndo, correndo por medo da chuva que se aproximava. Gabriel estava colocando o pão por baixo da camisa, e foi confundido com um bandido. Dor. Muita dor. O sangue escorria na calçada. Um telefonema. No orelhão da rua, uma ligação avisa a mãe de Gabriel sobre o tiro. Um tiro. A dor. A última dor. O desespero. A tristeza. Policiais alegaram legítima defesa. Um tiro. Os policiais foram absolvidos. Calado. Gabriel foi calado. Os pães ficaram lavados em sangue. Um tiro. A dor. A última dor.
         A escola que deu a bolsa de estudos cedeu a capela e pagou o caixão. Gabriel foi enterrado na comunidade onde morava. Deixou uma mãe triste, uma irmã quase indiferente, uma professora arrependida e um Michel feliz.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Sotaques

            Alguns sabem, mesmo os que só me conhecem pelos escritos deste blog, que nasci no estado do Rio de Janeiro, e moro em Natal, Rio Grande do Norte, há sete anos, a serem completados em janeiro de 2011. E, pelo fato de ser de outro estado, com outra cultura, muitos, na época em que cheguei a Natal, ficaram mangando do meu sotaque, que eu falava chiando e tudo mais. Conseguinte a isso, eu também zoava o sotaque deles... dizia que falavam arrastado, que usavam muitas gírias estranhas e tudo mais.
            Mas – com a permissão desta conjunção já no início do parágrafo – a vida é uma roda-gigante, e, ao passo que o moinho rodava, meu coração e meu sotaque foram se adaptando ao RN. Fui cada vez mais me apaixonando por Natal e mais todos aqueles clichês que os de fora usam quando vão morar em Natal.      
            E, nesses dias, em viagem ao Rio de Janeiro – uma breve visita à família –, surpreendi minha mãe, que até dois anos morava e Natal, com meu sotaque arrastado. Até um primo meu, Rafael, que morava há menos de um ano na Cidade do Sol, ficou mangando do meu arrastar no falar. Entretanto, isso não é o pior!... Não esquento que tirem onda com a miscigenação do meu linguajar – defendo mesmo minha identidade bricolada!... O fato é que, muito acostumado com Natal, sinto dores nos ouvidos ao ver os fluminenses falando – mesmo os meus irmãos. Percebo, agora, o quanto eu incomodava e causava estranhamento nas pessoas ao meu redor, visse? 

domingo, 14 de novembro de 2010

A INVASÃO – parte 1

– Você viu aquilo? – perguntou Pablo a Danilo que, perplexo, não conseguiu responder.
– Hei, cara, vamos... corra!!!
Danilo estava em estado de choque. Nunca vira uma nave daquele tamanho. Na verdade, nunca vira uma nave espacial, muito menos um alienígena.
A tevê noticiava a visita de extraterrestres... A força aérea brasileira toda em peso se posicionava estrategicamente em todas as direções possíveis. Outros países estavam também sendo invadidos, mas até aquele momento nenhum sinal de violência ou ataque era percebido pelas autoridades e pelos irmãos Pablo e Danilo, este com dez anos e aquele com treze.

“Autoridades mundiais firmaram acordo de não atacar até que sejamos atacados. É a primeira vez que a humanidade resolve não combater o desconhecido. Mas será que isso é uma visão pacifista ou medo de represálias... Isso é o que vamos ver após o intervalo, em trinta segundos” – disse Willian Waack, repetindo a notícia que os brasileiros, ou pelo menos a grande maioria, vinha acompanhando pela Globo.
Danilo permanecia atônito... A mãe rezava ajoelhada defronte a uma santa que estava em frente a uma vela acesa. O pai pregava as portas e as janelas, e dizia a todo o momento que estava arrependido de não ter colocado laje na casa ainda. Pablo também estava com medo, todos estavam com medo, mas, estranhamente, sentia que tinha que auxiliar o irmão, que há alguns bastantes minutos deu sinal de que logo iria sair do estado de choque.
Todos aqueles desenhos, filmes, e tudo o que tinha assistido sobre ETs não fazia mais sentido, é como se nunca os homens tivessem podido prever o que estava acontecendo. Já se passaram três dias desde o primeiro contato visual, mas ninguém tinha sido abduzido, ninguém havia morrido pelas mãos – se é que têm mãos, pensava – dos visitantes mais que inesperados. A agonia e a incerteza eram sentimentos presentes em todos, todos os nativos do mundo, mas, até agora, não havia motivo para pânico, e pânico é pouca coisa mais forte que o medo.
A televisão não dava nada de novo, e a mesma imagem era mostrada em todos os canais, sob pequena variação de ponto de vista, ângulo da câmera, qualidade... A Record mostrava uma grande nave sobre o Rio Tietê, ao passo que a Globo mostrava um objeto parado acima do Cristo Redentor como principal foco, o que não os impedia de mostrar algumas outras naves sobre o Brasil e sobre o mundo, que começava a cogitar outras formas de fazer contato... e essas outras formas envolviam armas nucleares.
“É impressionante o tamanho... Especialistas afirmam que os alienígenas podem destruir toda a humanidade e o planeta Terra em menos de dez segundos. O mundo se une na tentativa de não ser destruído por estes invasores...” – Willian Bonner, com muito menos olheiras que seu xará, no JN.
– Maria, você está há mais de três dias ajoelhada rezando... você precisa cuidar dos seus filhos... pare de clamar por ajuda do gesso e olhe as crianças enquanto eu vou, novamente, atrás de comida e água – Juvenal, pai de Pablo e Danilo, falou. O governo tinha proibido de qualquer comércio importante fechar, tais como mercados, farmácias, além de hospitais, unidades de assistencialismos, etc. mas quem respeita o governo nessas horas? Ou qualquer delas?
– Posso ir com você, pai? – perguntou Danilo. – Tenho medo de ficar sozinho.
– Mas sua mãe está em casa... e o Pablo vai cuidar de você.
Contudo, a esta altura, o próprio Pablo, tão forte, que gostava de fazer o irmão aprender o quanto era superior, precisava de ajuda. Um pai, nessas situações, não iria negar companhia aos seus filhos, mas não podia levá-los para a guerra de comida que acontecida lá fora, e nem deixar Maria sozinha na presença de seus santos.
Sem saber o que fazer, Juvenal decidiu tentar convencer sua mulher mais uma vez, em vão. E, na esperança de o tempo passar, decidiu se voltar à tevê mais uma vez... bem na hora em que era anunciado, em um canal ainda não citado, que os invasores tinham feito contato com o presidente da Organização das Nações Unidas, como se o pobre Ban tivesse o mesmo poder que Obama.
Rodrigo Slama (invasão - Cristo)

sábado, 9 de outubro de 2010

A Tartaruga e o Pinto





         As pessoas me perguntam por que não gosto de bichos de estimação. Eu nunca disse que não gostava de bicho, apenas não criava por ter sofrido bastante com os animaizinhos que eu tinha quando criança.
            Minha primeira experiência foi com um pintinho... como eu gostava daquele pintinho, criava como se fosse um cão – talvez o comesse quando virasse um galo, mas até então era o meu melhor amigo. Certo dia, minha mãe entrava em casa com sacolas na mão... doida para guardar logo as compras e acender seu cigarro. Avexada e bruta como sempre, ela pisou no meu pintinho.
            Aquele cena é uma das mais tristes que me lembro... toda tripa da pobre avezinha saiu de seu corpo pelo cu. Não pensei duas vezes... peguei uma caixinha de sapatos e levei meu amigo para uma benzedeira, tia Aladir. Insisti para que ela o rezasse, quem sabe assim ele ficaria bom já que não estava morto, podíamos vê-lo respirando, com muita dificuldade, por sinal, mas respirando. 
            – Tia Aladir, a senhora pode rezar o meu pintinho? Ele tá quase morrendo...
            – Mas, Maurinho, você sabe que só rezo pessoas... posso tentar... se bem que acho que não vai resolver...
            – Mas tenta, tia, tenta, por favor! – pedi olhando como quem olha a mãe do fundo de um poço com os braços estendidos, lágrimas correndo, e esperando por socorro imediato.
            É claro que titia não conseguiu curar meu pintinho, mas espero que ele tenha morrido sem muita dor depois da reza.
                                                   
         Depois do pintinho, eu tive um jabuti, mas naquele tempo chamava de tartaruga. Já ganhei a tartaruga grandinha e tal... Também não tinha nome... ora, se já era uma tartaruga para que inventar outro nome?... Chamava o jabuti de tartaruga mesmo. E detalhe: achava que era uma tartaruga... fêmea.
        – Pronto, Maurinho – disse minha mãe. Agora se eu pisar nesse seu novo bicho eu não vou matar – e me estendeu a tartaruga. – E vê se para de chorar também.
           – Viva! – gritava de emoção.
          Eu brincava sempre com a tartaruga, corria do colégio para poder lhe dar alface outras comidas de tartaruga. Gostava de colocá-la de cabeça para baixo e ver se ela conseguia se virar... mas ela nunca conseguia sozinha. Mesmo quando eu a deixei a noite inteira assim, ela não se virou.
            Nunca tive um bicho tão forte como aquela tartaruga. Botava brinquedinho em suas costas e ela carregava sem problema... e se minha mãe ou qualquer outra pessoa pisassem na bichinha ela não morreria como o pintinho.
            Mas – o tal mas da história – certo dia uns amigos do meu pai tinham vindo beber com ele em casa... beberam até altas horas. Meu pai e os outros bebedores não limparam o quintal depois da noitada, deixando todas as garrafas espalhadas por lá.  Ao acordar cedo – pois era domingo, e sábado e domingo eu sempre acordava muito cedo, ao contrário dos outros dias –, eu logo corri para brincar com a tartaruga...
            Dei um grito estridente e minha mãe, meu pai e meu irmão acordaram imediatamente. Minha tartaruga estava toda ensanguentada e com indícios de morte....
            Acontece é que aquela tartaruga era macho, e resolveu acasalar com uma das garrafas de cerveja do chão. Devido à pressão ou outro fator, a garrafa estourou e cortou fora o pênis da minha tartaruga. Ela morreu devido à perda do sangue... Eu não a levei para a tia Aladir, queria mesmo que a tartaruga morresse... Eu não gostaria de viver sem meu pênis, a tartaruga devia pensar o mesmo.