Páginas

terça-feira, 23 de março de 2010

O Show

            Meus olhos quase se perderam na multidão. Era gente pra todo lado, quase fico atordoado com tamanha movimentação. Segurei a mão da última pessoa do trenzinho que furava, não sei como, o mar de gente feito uma flecha, ou um tiro de fuzil. Eu achava que chegaria à saída, mas ao contrário do que eu queria, fui levado a cada passo pra mais longe do meu esperado destino.
            Fui enganado pelos meus amigos. Eles disseram que era um show do Nando Reis. Eu sou fã do Nando desde a época dos Titãs, banda que perdeu um pouco do meu carinho depois da saída do meu ídolo maior, mas até que Paulo Miklos segurou as pontas, pois não gosto – nada contra – da voz dos outros vocalistas.
O show em que eu estava, que por sinal tinha pago quinze reais pra entrar valendo-me do meu direito de estudante, é claro, era do... ou será da? Enfim... era da banda... Calypso (procurei no Google o modo certo de escrever este nome (im)próprio para não me passar por ignorante).
            Os abestalhados dos meus amigos me vendaram, disseram que iriam fazer uma surpresa pela proximidade do meu aniversário... me levariam no camarim do Nando Reis. O pior é que eu estava tão concentrado nos estudos pro ENEM que nem me liguei que o show do Nando iria acontecer mais na frente. Engraçado... quando a gente se concentra muito em alguma coisa acaba ficando meio por fora da vida que acontece aos nossos pés.
            Estava, deduzia, há mais de duas horas vendado, nem tinha noção de quanto tempo havia se passado. A euforia que eu sentia mal me fazia lembrar o ENEM iminente ou mesmo o horário que se passava diante de mim. Me abandonaram, literalmente falando, no meio daquele mar de gente avesso a Avon, Axe ou Rexona. Quero deixar posto aqui que nunca tinha sentido o cheiro de tantos sovacos diferentes, logo eu, que fui todo contente, de preto, com uma camisa do Acústico dos Titãs, crente que iria conhecer Nando Reis. Mal sabia eu que iria conhecer uma colônia do inferno.
            Cansei de procurar pela galera... mas me desesperei. Estava inconformado e perdido, apavorado e chateado, e muitos outros -ados que existem. A mão que peguei, a última do trenzinho, era de uma menina pelo menos isso!  e estava muito suada. Tive que largá-la logo e segurar o pulso. Eu não via seu rosto, apenas uma fita na cabeça que dizia “inha (o nó) Joe”, depois me contaram que era o nome da vendedora de tapioca, que insiste em ser cantora, e do marido dela, um dos músicos da banda, de péssimo gosto, por sinal.
            Como eu já disse, eu estava crente que o trenzinho estava saindo... sei lá, eu fui largado no meio da multidão, não sabia onde era a entrada ou a saída, estava sem minhas noções geográficas. Os integrantes do trem não buscavam a saída, mas queriam chegar mais perto do palco, e eu, infelizmente, percebi isso tarde demais. Quando dei por mim estava há um palmo da cerca de ferro que separa o palco do povão.           
            O som dos gritos, tanto da taquara-rachada que cantava no palco, como das fanáticas enlouquecidas que me cercavam de todos os lados, quase me deixou surdo pena que não deixou! Num vacilo de alguns seguranças, consegui subir na cerca e tentar ficar uns centímetros mais altos pra procurar meus amigos, mas naquele mundo de gente, sem noção de música, diga-se de passagem, não se via ninguém, daí eu pensei que se eles queriam me pregar uma peça, deveriam estar em algum lugar ali rindo da minha cara.
            Deixando de lado o meu orgulho, comecei a pedir ajuda, gritava com os braços erguidos, olhava esperançoso em todas as direções. Quanto mais a histérica “cantava”, mais eu agitava os braços, clamando por socorro. Foi nesse curto espaço de tempo que senti alguém me agarrando com uma bruta força que me tirou da cerca, vi que era um segurança uns dois metros de altura por um de largura imaginei que seria expulso do show, mas, para aumento da minha tristeza, não foi isso que aconteceu. Parece que a galega gritante escolhera um fã para cantar uma música consigo, adivinha quem ela escolheu no meio da multidão, adivinha!
            Me empurraram com muita força no palco de onde eu via uma multidão histérica gritando algo ininteligível aos meus ouvidos acostumados apenas com a língua portuguesa e um pouco de inglês. A louca desafinante cantava uma música, que pelo que entendi, contava a história de uma cavalo manco, talvez inspirado em alguma montaria de um ex-freguês. Sem eu menos esperar, o microfone estava seguindo em direção à minha boca. Foi mais ou menos nesse momento que avistei meus “queridos” amigos rindo às gargalhadas trepados numa torre de som. Filhos da puta!, pensava em voz alta, quando sair daqui vou dar uma surra em cada um deles que eles nunca mais vão esquecer enquanto estiverem vivos e conscientes.  
            Chegou minha vez de cantar. A Xuxa dos anos trinta – nenhuma menção ao glamour dessa época, mas é a década que provavelmente a doida nasceu – me abraçava com aquele corpo suado e fedorento e encostou aquele microfone babado na minha boca. Não tive tempo de pensar no que dizer, olhei pros boys em cima da torre e disse o que pensava e está transcrito no parágrafo acima, mas não custa repetir.  – Vocês tão fudido na minha mão, seus galados, filhos de ra... – não pude terminar a frase. A animadora de multidões me empurrou para o lado e continuou o pedaço da música que eu tinha que cantar enquanto me encarava de canto de olho com o olhar mais feio do que o da mãe que olha para o assassino que seu filho de sete anos e meio de idade.
            Seguranças do palco me tiraram, lógico, à força, chega machucaram minhas costelas, mas até que poderia ser pior no fim das contas. Os fãs dos sem-cultura me vaiavam enquanto isso.  Eu, nessa hora, já tinha esquecido por um instante da raiva que sentia dos meus amigos e da situação e comecei a me preocupar com minha integridade física. Eu poderia ser morto apenas por um murro de um dos quatro seguranças que me cercavam e diziam:
            – Tá tirando onda com nossa cara?
            – Não, senhor! – eu disse tremendo. – Só estou rezando para que não me machuquem muito.
            – E por que faríamos isso? – um deles perguntou com uma cara que julguei sínica.
            – Porque eu acanalhei o show dos seus patrões, e...
            Fui interrompido pelas gargalhadas.
            – A gente não iria te machucar... a gente odeia o Calypso também, a gente nem trabalha pra eles... a gente presta serviço para casa. Como você, a gente curte mais um rock (deve ter deduzido pela camisa, as pulseiras, e os outros mais detalhes característicos dos roqueiros), e estamos ansiosos pra semana que vem que é o show do Nando Reis.
            – Não acredito, é semana que vem? Os filhas-das-putas dos meus amigos me largaram aqui dizendo que era o show dele...
            – Faz o seguinte... me procure semana que vem aqui que eu te boto no camarim do Nando.
            – Não acredito... tá falando sério?
            – Claro, aparece aí.
            E assim o fiz.


            Moral da história: até um show do Calypso pode ser bom quando a gente sabe fazer amizade e vestir a camisa certa.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Churrasco Na Lagoa

Certo dia, no Bosque dos Cajueiros, duas famílias próximas combinaram de fazer um churrasco na Lagoa da Leguminosa Doce. Porém, a Família Buscapé, que não tinha ainda achado petróleo no quintal, disse que não iria, pois não tinha carro, e não ficaria na aba de ninguém, mesmo que num tempo passado a Família Malfoy, a outra desta história, havia largado os filhos na casa dos Buscapé, sem aviso prévio nem hora pra voltar – um problema já que matriarca dos caipiras estava de cama com dengue.
– Não, não tem problema! A gente quer a companhia de vocês... Faz o seguinte, de sete a gente passa com o Doblò na sua cabana pr’agente ir pra Lagoa da Leguminosa Doce... Fiquem tranquilos, a gente já comprou duas picanhas, três peças de alcatra, além de queijo coalho, linguiça e asa frango. Não precisam levar nada, viu? A gente tem dinheiro, a gente é “ricos”, a gente pode comprar o que bem a gente quiser.
Depois que a família Malfoy saiu da casa dos Buscapé, que ficava perto da praia, e, por isso, a deixavam sempre que iram (todo fim de semana) suja de areia e coco de poodle, a mãe Buscapé perguntou ao seu marido:
– O que você acha?
– Acho melhor nós irmos, se não eles nos chamarão de antissociais, eles sempre dizem que nós nos afastamos da família. Iremos, mas vamos levar nosso feijão bem carregado, nossa farofa de bacon e o nosso famoso arroz soltinho, você sabe, querida, como eles são, e churrasco só de carne não é a mesma coisa, não é? É sempre bom um acompanhamento.
Como visto, a família Buscapé concordou em ir, mesmo sabendo que a Família Malfoy não estava interessada na companhia deles. O maior prazer da Família Malfoy era se mostrar como a mais rica do Bosque dos Cajueiros, que tinha carros do ano, os melhores apartamentos da região etc. E o motivo pelo qual tinham raiva da família Buscapé é porque, mesmo sem dinheiro, os filhos dos Buscapé eram mais inteligentes e bonitos... E era principalmente a inteligência que deixava com inveja a Família Malfoy, já que, mesmo tendo os filhos estudando nos melhores colégios, eles sempre ficavam em recuperação, e, ano sim ano não, repetiam o ano letivo, o que os faziam ser os maiores, mas não os mais fortes e temidos da sala, e o fato de ter quatorze anos na sexta série os deixavam estigmatizados, e nenhuma menina queria ficar com eles.

No dia marcado, por volta das dez e meia da manhã, a Família Malfoy chegou, o pai dirigia um Santana e a mãe estava com seu Doblò. Se já não bastasse o atraso, a Família do Mal ainda apressava a Família do Bem, mesmo eles estando, há horas, todos prontos. Antes de entrar no carro, o pai Buscapé lembrou-se de pegar as panelas, o que gerou desdém e gargalhadas na Família Malfoy inteira.
– Eu não falei que não precisava levar nada? O carro ta cheio de carne... Pobre é foda mesmo, num sabe que churrasco é pra comer só carne... Não precisa encher o bucho de feijão, arroz, farofa e molho à campanha, tem carne suficiente pra todo mundo! – disse num tom que sugeria brincadeira, apenas sugeria.
– Não comadre – disse o pai Buscapé na, como sempre, maior humildade – é que eu gosto de comer arroz e feijão mesmo, sabe como é pobre, né? Não se preocupe, nós sabemos que você comprou carne pra todos, estou levando essa comida por questão de gosto. Longe de mim, sugerir que não tem carne.
As famílias seguiram rumo à lagoa. Assim que chegaram, abriram as mesas, armaram as barracas, tiraram do carro a churrasqueira, que era da Família Buscapé, puseram carvão e acenderam, e enquanto as crianças se divertiam na Lagoa da Leguminosa Doce, as famílias se preparavam para preparar a carne
– José, cadê as carnes? – perguntava para o pai Malfoy a esposa.
– Está no porta-malas, não?
– Não, José! Eu só achei o queijo e as salsichas.
Salsichas? Quem leva salsicha para um churrasco?
A Família Malfoy procurou nos dois carros. Abriram o isopor com os refrigerantes, olharam dentro das sacolas, viram perto das salsichas e do pouco queijo coalho outra vez, mas nada.
– A gente esqueceu a carne – disse a mãe Malfoy à Família Buscapé, que não era burra, claro, e já tinha percebido o lance desde a primeira indagação pelo principal ingrediente de qualquer churrasco – mas tem salsicha e queijo coalho! Essas salsichas são Sadia, as melhores que tem, e o queijo custou R$ 27,90 o quilo! – Talvez por isso só tivesse duzentos gramas.
– Não tem problema – disse o pai Buscapé com o sorriso sincero de sempre – no meu feijão tem carne seca, pé de porco, toicinho, linguiça... assim como a farofa – que tinha mais carne que farinha.
Todos comeram do feijão Buscapé, comeram não, se esbaldaram. Sempre que os filhos dos Malfoy viam comida agiam assim, como se comessem pouco em casa, sabe? Essa família tem essa fama mesmo, de ser forrageira, como dizem. E enquanto os filhos Buscapé se divertiam brincando na lagoa, os filhos dos Malfoy se preocupavam em tirar a barriga da miséria, como se não comessem feijão, ou qualquer boa comida, há semanas.
Então, se não fosse o feijão, a farofa, o molho e o arroz dos Buscapé Farofeiros, como a Família Malfoy foi chamando todo o caminha em direção a lagoa, o churrasco de salsicha teria sido pior, bem pior, ou melhor, extremamente pior do que poderia ser. Agora eu pergunto, leitor: será que houve realmente um esquecimento ou uma sacanagem da família Malfoy?

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Suco de Caju

Acontece desde o dia que me perdi na mata da Barreira. Eu estava a procura de caju, pois me bateu uma vontade enorme bem aqui, no órgão dos desejos, de tomar um suco bem gelado. E como painho pegava todos os cajus dos cajueiros do quintal pra vender quase nunca eu tomava meu suco favorito, que ficava ainda melhor quando mainha fazia. Ela peneirava o suco, adoçava na medida certa. E eu, que nunca tive muita paciência, me desesperava pra fazer e beber logo.
Além de recolher os cajus do quintal, meu pai também andava pela mata da Barreira procurando mais frutas para enriquecer a barraca. Ele sabia todas as trilhas, as que eram visitadas por soldados e as que nunca eram lembradas no itinerário dos aviadores. Aprendi com ele a andar por aqueles matos, conhecia todas aquelas trilhas, guardava na memória todas as bifurcações e encruzilhadas, inclusive lembrava ao meu pai do caminho certo quando ele se confundia, por isso não sei como naquele dia eu me perdi.
Provavelmente meu pai e os outros barraqueiros já tinham passado por lá, pois já não havia nenhum cajuzinho. Fiquei encucado, meu pai não tinha me chamado, olha que ele preferia que eu perdesse aula do que deixasse de ajudá-lo a recolher caju, já que nessa época minha mãe tava de resguardo, e os outros meninos eram muito pequenos para começarem a trabalhar. Mesmo percorrendo todos os caminhos que conhecia não encontrava de jeito algum a matéria-prima para o mais delicioso dos líquidos existentes na face da minha memória, o suco de caju.
Andei, andei e andei até me cansar e me perder das trilhas e caminhos conhecidos, logo eu que achava conhecer todo aquele emaranhado de rastros, e o pior é que eu não encontrava nem se quer um caju de fazer remédio. À noite já ia chegando, eu estava tão cansado que resolvi procurar logo uma árvore para dormir. É... é melhor dormir numa árvore! Nunca se sabe o que pode aparecer no meio do mato à noite, uma raposa, um foragido de Alcaçuz... Sei lá! Só sei que naquele momento era melhor dormir numa árvore do que ter que continuar procurando, em vão, o caminho de casa.
Eu me preocupava com mainha, “ela deve estar preocupada comigo”, pensava eu em voz alta. Eu pouco me lixava para o meu pai que só daria pela minha falta no dia seguinte, quando iria me acordar bruscamente para ajudar a recolher caju e outras frutas para vender, e o pior é que eu não podia ficar com três ou quatro cajuzinhos azedos para fazer meu suco. Olha que eu ainda não tinha tomado suco de caju nessa safra.
Meu pai não se importava comigo, nem com minha mãe ou meus irmãos menores, ele gastava todo o dinheiro apurado na venda das frutas com cachaça e rapariga, inclusive ele insistia em me levar consigo para a farra, dizia que eu já era um “homi” e precisava frequentar lugares de tal. A minha mãe, pobre mulher, não o deixava me levar, dizia que cabaré não era lugar para um menino de menos de oito anos. E toda vez que minha mãe ia contra meu pai apanhava muito, bem mais do que nas vezes em que ele a espancava sem motivos, acusando-a injustamente de roubar o dinheiro da barraca, dando-lhe socos e chutes, isso quando não a batia com corda molhada com um nó na ponta.
Meu pai nunca soube, mas eu é quem roubava uns trocados ou outros da barraca dele para comprar farinha para os meus cinco irmãos menores comer, já que se não fosse assim nós iríamos morrer de fome, pois ele, na glória de sua sabedoria, não deixava minha tia trazer um pouco de macaxeira de sua pequena horta de fundo de quintal, meu pai dizia que era dele o dever de manter a família, decerto era, mas hipocritamente ele não cumpria, ele nunca cumpria o que dizia.
Passei aquela noite em claro, com frio, fome e medo. Num raro cochilo, de cima do galho do de um cajueiro sem fruto, sonhei que estava comento muito caju, doce de caju, torta de caju, caju à milanesa... Era tanto caju, mas tanto caju que nem mesmo todas as barracas da beira da Rota do Sol tinham juntas, e no melhor do sonho me veio mainha com uma jarra de suco de caju, naquele sonho eu bebi e comi tanto caju que até hoje, desde aquele dia em que me perdi, acontece de eu ficar com enjoo, e acabando por vomitar, toda vez que sinto o cheiro de suco de caju.

sábado, 5 de dezembro de 2009

Pitombo e a mediunidade

Pitombo, que tinha esse apelido por ser loucamente apaixonado por pitomba e esperava o ano inteiro pra saborear a fruta que amava, sofria com ataques de loucura, como dizia a família, inclusive a mãe, e a vizinhança, que sabia mais da vida de Pitombo do que ele próprio... Aliás, vizinhos têm esse dom, o dom de saber mais dos atos, do coração e da cabeça dos outros, mais mesmo do que qualquer confessor, melhor do que qualquer melhor amigo.
Pitombo ouvia vozes, ou pelo menos era isso o que ele dizia. Quando não aguentava mais, o coitado se debatia no chão, gritava, esperneava segurando a cabeça com força com as duas mãos empurrando na altura dos ouvidos, como se isso impedisse que as vozes de sua loucura gritando desejos impraticáveis ressoassem como sinos de bronze.
Certo dia, um pastor passava pela porta e ouviu os gritos de Pitombo. Ele pediu pra entrar e fazer uma oração, disse que seu deus poderia ajudar aquela alma, que aquilo não era loucura, eram espíritos, ou melhor, obras de um encosto que precisaria ser expulso daquele corpo, para que o seu coração, então, virasse morada do tal deus. Como não tinha nada a perder, a mãe de Pitombo permitiu que o pastor fizesse uma oração. Ele a fez. Porém, como se fosse mentira, Pitombo levantou do chão e agarrou a gravata do pequeno pastor o levando ao enforcamento... A sua sorte foi que os irmãos do endemoninhado chegavam da pesca naquela hora e puderam socorrê-lo.
Com isso, felizmente ou não, descobriram que realmente o problema de Pitombo era de fato espíritos (quem lê até pensa que ele já tinha ido a dezenas de psiquiatras e tudo mais, mas não)... E decidiram levá-lo não só à igreja do pastor visitante, mas também a centros espíritas, a um padre exorcista, e até a uma loja maçônica que não se deu nem ao trabalho de abrir as portas.
Resumindo, já que não posso ou quero me alongar, Pitombo passou a frequentar a igreja do pastor visitante nas sextas, com intuito de descarregar os demônios de suas costas; no sábado, ele ia pro centro participar de uma mesa branca que prometia cuidar dos espíritos de luz que necessitavam de um médium, enquanto que aos domingos ele participaria da primeira missa do dia para que Nossa Senhora o ajudasse.
Com três meses, ele já apresentava melhoras. Não me pergunte por quê. Não se sabe em quais dos templos ele foi realmente ajudado. Os mais leigos dizem que foi Deus, Nossa Senhora ou uma guia espiritual que ajudou Pitombo a se livrar dos males. Eu, que sou apenas o contador dessa história e mais leigo que os leigos que comentam esse caso, digo que foi a fé, mas fé em que eu não sei.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Pelas ruas que passo




Será que cada pessoa que vemos na rua pensa sobre nós o mesmo que pensamos sobre ela? Será que você pensa o mesmo que eu?
Sim, porque eu caminho na rua me perguntando se todos têm um sonho, se todos estão só de passagem. Aquela senhora que quase esbarrou em mim dentro do shopping estava mesmo apressada ou fez aquilo só pra me atormentar? Será que ela sabe quem eu sou, quem quero ser, o que escrevo, que eu escrevo? E ela? Será que ela também alimenta, mal alimentado, um blog não visitado por mais de três ou quatro pessoas como eu?
Eu ando pela pelas ruas, pelas calçadas quando elas existem, tentando entender a mim mesmo quem sabe observando como os outros agem, como os outros me veem. Talvez ninguém seja tão cruel e mesquinho quanto parece, talvez aquela menina que me olhou com cara de vômito não saiba que eu não queria nada com ela, mesmo que eu fosse solteiro, mesmo que ela fosse atraente.
E o senhor, possível ex-atleta ou dono de academia, será que sabe que eu só estava comendo aquele pacote de biscoito recheado barato porque tive que comer miojo antes de sair de casa porque esquecemos de comprar arroz? Talvez ele pense: – “olhe só, mais um gordo no mundo que não se cuida, que não tem amor à vida, que esporte é vida que não engorda, mas faz crescer!” Será que ele sabe que tenho que almoçar às dez da manhã pra não gastar com quentinha e que só torno a comer às onze e meia da noite pelo mesmo motivo, e por isso durma com a barriga cheia de carboidratos?
Não que a rua seja um lugar de pura hipocrisia, mas eu sei que não ando, eu passo. Passo, passo a passo, em passos lentos. Não tenho pressa, precisaria ter? Preciso acordar todos os dias às seis pra correr por uma hora, mesmo dormindo duas horas e meia depois do jantar? Se eu quisesse continuar a andar pelas ruas cheia de gente e vazia de pessoas talvez não teria que estudar tanto, que acordar mais cedo do que precisaria não pra correr, mas pra fortalecer, mesmo que não tenha visto resultados ainda, o pouco inglês que tenho?
O mundo é assim, as ruas são assim: todo mundo passando, indo e vindo, esbarrando nos outros, te olhando com olhar de nojo por você usar os cabelos e a barba grandes como o homem na foto sob o terço da camisa das pessoas.


sexta-feira, 14 de novembro de 2008

O galinho que queria ser um cão

Dona Lúcia morava num sítio, no interior da Paraíba, mas teve que se mudar para um apartamento em João Pessoa, pois estava doente e precisava se tratar na capital, e, como vivia sozinha na pequena fazendinha, achou melhor fazer sua mudança de vez pra casa de seu filho.
Dona Lúcia criava muitos bichos. Tinha criação de porco, cabrito, galinha... E pelo apreço aos animais sentiu-se triste por ter vendê-los.
Para se lembrar dos tempos de fazenda, Dona Lúcia levou consigo um pintinho, ela pensou que um animal tão pequeno não iria causar incomodo. Na casa do filho já havia um casal de poodles, e quando o pinto cresceu e se tornou um belo galinho brincavam os três sem problema ou complicação.
Infelizmente Rodolfo, o cãozinho mancho, foi atropelado por um Fusca cor de abóbora desgovernado, que não viu o animalzinho matando-o de uma das formas mais sangrentas que um Fusca pode matar um poodle. A companheira do finado cãozinho, Maria Antônia, ficou muito triste, e estava já entrando num estágio avançado de depressão.
O majestoso frango, vendo e convivendo com aquilo tudo, começou a agir como um cachorro. Ele brincava com a bolinha de Rodolfo, se fingia de morto, dava a patinha, enfim... Tudo o que o animalzinho fazia em vida o galinho aprendeu rápido a fazer.
O novo comportamento do galinho, inicialmente, não foi saudável apenas para a cadela Maria, mas aquilo fez um bem à família inteira, já que era um jeito, muito bem humorado e inocente, de se lembrar com alegria de Rodolfo.
O coração canino de Maria Antônia foi conquistado por inteiro pelo galinho quando ele aprendeu a latir. Agora, passados seis meses da triste morte do ex-companheiro de Maria, o galinho se tornava o cão mais feliz do mundo, pois se unia em matrimônio com a cadela viúva.
Tirando o fato de não poderem ter filhotes, o casamento entre o galinho e a cadelinha foi, e ainda é, o casamento mais bem sucedido do reino animal. Eles convivem em harmonia, sem qualquer tipo de briga ou discussão. O único momento que Maria reclama é quando seu marido quer lhe beijar a barriga.

Pedrinho e a amiga Felina

As cortinas que tapavam as janelas cobriam a luz do sol impedindo-a de entrar no meu úmido quarto. Eu morava na casa da minha avó, morava não... sei lá? Eu passava as férias na casa da minha avó, que tinha ficado viúva há três meses apenas. Minha mãe disse pra eu fazer companhia a ela, pois vovó se sentia muito sozinha.
Todo os dias, eu tinha que acordar às seis e meia, era muito difícil, pois além de eu não estar acostumado, as cortinas que tapavam as janelas cobriam a luz do sol. Parece tolice, você está se perguntando: – “por que esse moleque narrador não abria a cortinha que tapava a janela que cobria a luz do sol?” É muito simples. EU NÃO DORMIA SOZINHO! Eu tinha que dividir o quarto, e, por pouco, a cama, com minha avó. Não teria problema já que avó é nossa segunda mãe, mas a minha tinha problemas com gases... É... ela peidava muito a noite toda. Tadinha da véia!
Era até legal ficar na fazenda de vovó, fazenda não, tô sendo muito generoso, sítio... chácara... É alguma coisa entre sítio e chácara, ou chácara e sítio... entende? Eu brincava com as galinhas, marrecos... eu só não gostava muito de brincar com os gansos, eles eram bem agressivos, mais brabos que os cachorrões que minha avó criava dizendo ser pra proteger seus outros animais do chupa-cabras. Eu nem sabia o era chupa-cabras, não era do meu tempo, só depois procurei na internet, achei tolice da minha avó... onde já se viu? A véia com medo de chupa-cabras!?
Lembro que brincava sozinho, não tinha ninguém lá da minha idade, a ao ser por Felina, a filha do caseiro que era paraplégica. Ela vivia na cadeira de rodas, não dava pra passear pela grama, pois o veículo engasgava sempre numas poças. Na verdade, eu só fui saber da existência de Felina pouco menos de uma semana pras minhas férias acabarem. O pouco que conversei com Felina me fez crescer de alguma maneira. Poxa! Eu fiquei um mês quase inteiro na casa de vovó e não brinquei com Felina, mas não foi minha escolha, não foi. Só a descobri cerca de três dias antes de eu ir embora. Mas, no pouco que conversamos, nos tornamos amigos.
Minha avó mandou o computador pra casa do caseiro, ela não sabia mesmo mexer “na invenção dos homens loucos que não tinham mais o que inventar”. Felina e eu conversávamos a tarde quase que inteira, mas não era muito papo como parece. Ela não estava acostumada a digitar, mas eu tinha paciência.
Começava a estudar cidadania na escola, a professora Aline disse pra gente fazer a caridade de conversar com um aleijado às vezes, eles não eram pessoas normais, por isso a gente tinha o dever de agradá-los, assim, quem sabe, Deus também se agradaria de nós. Eu não gostava da aula de cidadania, a professora fazia os deficientes físicos parecerem gente de outro mundo, talvez do mesmo lugar de onde vem chupa-cabras.
Eu não tinha intenção de agradar nenhum deus quando falava com Felina, apenas de me agradar... se eu não me sentisse bem nas nossas conversas, eu jamais conversaria com ela. Ah! Eu não teria pena de dizer que ela é sem assunto só porque não pode andar...

Anos depois


Felina completava dezessete anos de idade, eu já tinha feito quinze no mês anterior. Comprei um novo computador para Felina, sua família não tinha condições, o computador que minha avó tinha dado a minha amiga ainda era com o Windows 98. Comprei um notebook pra Felina, ela adorou, começou a chorar me deixando também emocionado e constrangido.
Eu não via muito Felina pessoalmente, a gente só se falava pelo computador, agora, como o novo notebook que dei pra ela – novinho em folha, comprei com meu próprio dinheiro, era superior ao meu, minha mãe inclusive mandou eu dar o meu “velho” e ficar com o novo, mas ao olhar minha cara de carranca ela logo desistiu da idéia, onde já se viu – a gente poderia então se ver pela webcam.
O engraçado foi Paola, minha namorada, ao entrar em meu quarto de mansinho me viu conversando com Felina, deu o maior piti, começou a querer saber quem era a menina que eu conversava e coisa e tal... expliquei que ela era só uma amiga, não disse que ela era paraplégica, não tinha pra quê. O resultado foi que Paola, ainda semi-nua, me pediu para escolher entre continuar a namorar com ela ou manter conversinhas com amiguinhas estranhas no computador. É claro que escolhi Felina. Paola focou irada, pense numa menina puta da vida!

A Menina Que Gostava de Futebol

Era década de 1960, não ficava bem para uma menina brincar de bola, mas Cláudia gostava de futebol, e muito.
Cláudia, que tinha cinco anos na época destes acontecimentos, usava um corte de cabelo curto, estilo Joãozinho, pois sua mãe, além de não ter condições de tratar dos seus cabelos, achava que ter os cabelos curtos ajudava a espantar o calor. Aproveitando-se da situação em que se encontravam os seus cabelos, Cláudia dizia aos meninos da Rua de Trás que seu nome era Cláudio, assim ninguém implicaria com o fato dela ser menina, e a deixaria entrar no time sem problemas.
Cláudia, ou melhor, Cláudio jogava muito bem, inclusive melhor do que Caetano, que até então era considerado o maior jogador de futebol do bairro. Cláudia não tinha medo de bolada, carrinho ou esbarrão, ela jogava feito um menino, era astuta, habilidosa e marrenta, quando necessário. Além de futebol, Cláudia gostava de bola-de-gude, carrinho de rolimã... Seus irmãos a chamavam de Moleque Macho, o que fazia com que ela se enfurecesse e partisse pra cima deles pra agredi-los a socos e pontas-pé.
Cláudia era uma boa menina, mesmo sem muitas vezes ter ao menos um punhado de pão na barriga, ela se esforçava para estudar na maioria das vezes com fome. Certo dia ela sentiu fortes dores no estômago em plena aula de matemática, sua professora, que mesmo parecendo desumana tinha sentimentos, e ao perceber seu rosto pálido e com aparência sofrida, como a de alguém que deixa o cachorro escapar em dias de grande movimento de veículos na rua, decidiu levá-la à diretoria. Chegando à sala da diretora foi constatado que o que ela sentia era fome, pois não comera nada antes de sair de casa. Era normal Cláudia sair sem tomar café da manhã, porém na noite anterior a menina não tinha jantado. A diretora mandou que comprassem um pacote de biscoitos para a pobre menina pobre, o que a deixou inexplicavelmente feliz, porém Cláudia não comeu nem metade do pacote, ela sabia que seus irmão pequenos também estavam sentindo fome em casa, e decidiu levar o que sobrara para os que hoje quase a humilham.
Mas voltando a parte do futebol... Certo dia, os meninos foram procurar por Cláudio em sua casa, ao chamar pelo craque do time, uma de suas irmãs mais velhas disse que lá não morava nenhum Cláudio. Nisso... aparece Cláudia, logo quando ela tinha acabado de pôr o vestido que sua avó, Judite, trouxera. Era um vestidinho florido amarelo que pertencia a uma vizinha sua, que cresceu fazendo com que o vestido encolhesse. O vestido usado, mas conservado, fazia com que Cláudia ficasse tão bonitinha, tão cara de domingo. Os meninos do futebol não acreditaram... como uma garota havia os enganado tanto e, pior, como uma menina jogava tão bem um esporte tão masculino? Eles se decepcionaram consigo mesmos além de se surpreender.
É claro que depois de três ou quatro dias os meninos da Rua de Trás foram chamar Cláudia para jogar bola, no fundo superficial de seus jovens corações conscientes eles perceberam que sem o craque do time, Cláudio, ou melhor, Cláudia, sempre perderiam para o time da Rua Sul, que na verdade ficava três quarteirões ao norte.
Muitos diziam que Cláudia iria virar sapatão, que ela nunca se casaria... só porque ela gostava de brincar as mesmas brincadeiras dos meninos. Anos depois, ela se casou e teve três filhos. Nunca quis saber de mulher.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

O Criador de Bicho-de-pé



Sérgio, desde pequeno, gostava de percorrer o mato à procura de caju, manga, umbu-cajá, cajá-manga... mas ele sempre sofria com bicho-de-pé.
Sua mãe dizia a todo o momento para ele calçar um sapato ou um tênis, e ele nunca ouvia o que sua doce mãe dizia.
Toda noite, quando Sérgio voltava dos matos, Dona Abigail cutucava os seus pés para tirar os incômodos bichos, mas, conforme Sérgio crescia, Dona Abigail foi deixando que ele se cuidasse sozinho, tinha outras obrigações mais importantes do que tirar bicho-de-pé de um pré-adolescente.
Aos treze anos de idade, Sérgio não mais estudava, não ia mais à escola; ele se mantinha, ou melhor, comprava suas baganas com os trocados que ganhava vendendo as frutas que apanhava nos matos.
Certo dia, um senhor chamado Joaquim lhe pediu que tirasse um bichinho do seu pé e pusesse no dele – o ancião dizia gostar da coceirinha que o bicho-de-pé causa – o menino Sérgio, muito esperto e matreiro, disse que vendia por cinqüenta centavos e o velho sorridente aceitou o preço e pediu ao menino que toda semana viesse deixar um bichinho pra ele. E assim foi.
O velhinho contou a boa nova a todos os seus amigos, familiares e conhecidos; seu Joaquim era muito conhecido na comunidade. Quando Sérgio, após uma ou duas semanas, foi levar mais um bichinho, se surpreendeu com tamanha fila que se formara na frente da casa do ancião, mais surpreso ainda ficou quando descobriu que todos ali queriam bicho-de-pé.
Sérgio entregou o primeiro a seu Joaquim e contou quantos mais ele tinha, e, ao ver que tinha pouco para tanta gente, o jovem rapaz decidiu fazer uma espécie de leilão com lance inicial de um real.
O menino naquele dia apurou mais de trinta reais só com meia dúzia de bichinhos, decidiu, então, só trabalhar com isso, e comia ou dava as frutas que ele apanhava de graça no mato. Assim, Sérgio continuou a caminhar querendo cada vez mais bicho-de-pé, tinha fé no seu negócio; chamou os amigos, ofereceu parceria.
O Criador de Bicho-de-pé, como ficou conhecido Sérgio, cresceu e fez fortuna, e sua mãe reconheceu seu peculiar talento. Ele tinha inúmeras fábricas – se é assim que podemos chamar – e foi quem ajudou o Brasil a crescer e se tornar potência mundial. Sérgio pateteou a idéia, o mundo todo comprava bicho nele; dizem que os chineses descobriram, no bicho-de-pé, o ingrediente que faltava na sopa maravilhosa que eles esperaram vidas para preparar e saborear.
O Criador de Bicho-de-pé não mais precisava guardar em seu pé a mercadoria pela qual fez dinheiro, pois, ao contrário da população mundial, Sérgio não gostava de bichos incômodos, ele gostava era das frutas, das mangas, das goiabas, serigüelas...


quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Verdades sobre Branca de Neve: o que os Irmãos Grimm “esqueceram” de contar

            Muita gente não sabe, mas, antes de ser enfeitiçada e do Príncipe aparecer, Branca de Neve sentiu-se atraída por três dos anões, porém a jovem princesa sabia que tinha se apaixonado apenas por um, mas não tinha certeza de qual era, não sabia ao certo quem era o dono do seu coração.        
            Mestre era um dos que conquistaram o coração de Branca, ele era quem mandava no pedaço, sabe? Branca de Neve gostava de gente assim, de pulso firme. Mestre era um líder nato, além de ser o maior anão da casa.
            Outro dos três era Feliz. Cara bacana, animado, de bem com a vida... Branca de Neve nunca deixava de sorrir quando estava ao seu lado. Feliz tinha uma espécie de brilho no sorriso que fazia a jovem sentir uma aceleração no palpitar do seu coração.
            Por fim tinha Dunga, ele não tinha a imponência de Mestre, nem sabia contar piadas como Feliz. Contudo, tinha algo a mais: era o mais gentil dos sete anões. Dunga nunca levantava a voz para Branca de Neve, nunca dizia o quanto ela estava com bafo, muito menos fazia questão de lembrá-la de retirar a casquinha de feijão dos dentes após o almoço de quarta-feira.
            Branca de Neve pôs os três anões que tinham lhe chamado a atenção na balança, e findou por escolher Dunga.
– Dunga, você quer ser meu namorado? – perguntou Branca com a ponta do dedo indicador esquerdo na boca vermelha e carnuda, e encaracolando uma mecha de cabelo com o dedo indicador da outra mão. Ela estava ainda com o ombro direito apoiado no batente da porta, o que fazia com que seu quadril, coberto por uma saia longa de camponesa, se inclinasse para o lado contrário deixando-o ainda mais sedutor. E Dunga, que não conseguia olhar outra coisa a não ser o umbiguinho de Branca de Neve à mostra, balançou a cabeça dizendo que sim.   
Banca de Neve ajoelhou-se frente ao novo namorado e lhe beijou um beijo doce, o primeiro beijo de Dunga, o primeiro beijo de Branca de Neve em um anãozinho. A Princesa, a mais cobiçada entre os seres da floresta, apertava seus seios contra o peito nada robusto de Dunga, que acariciava sua nuca enquanto ela procurava algum resquício de presença de bunda no seu namorado a fim de apertar.
Enfim... depois de uns dez minutos e meio, o beijo terminou. Ao fim daquela primeira demonstração de carinho, cinco dos outros anões aplaudiram e cantaram: – “tão namorando, tão namorando...”. Todos, exceto Zangado, foram parabenizar os novos pombinhos. Mestre, Atchim, Soneca, Dengoso e Feliz aproveitaram pra dar aquela sacada no decote da Princesa. Zangado era o mais esperto, ficava deitado no sofá só na espera de Branca de Neve vir pra tentar animá-lo, e, devido à inclinação da menina, o mais mal humorado dos anões tinha uma visão bem melhor dos montes congelados.
Na pequena casinha no meio da floresta havia dois quartos, três anões ficavam em um, enquanto os outros quatro dormiam noutro, mas desde que Branca passou a morar lá os anões se espremiam num dos quartos e na sala. Após o jantar, Dunga e Braça de Neve foram juntos pro quarto onde a jovem dormia.
Deitado o tamanho não faz muita diferença, e, naquela noite longa, Branca de Neve apresentava o lado bom da vida ao seu namoranão. Os outros anões, incluindo Zangado, ficaram brechando o casal pelo buraco da fechadura da porta. Soneca parecia ter tomado arrebite naquele dia, Dengoso corria pro banheiro de cinco em cinco minutos, alegou que estava com caganeira devido ao picado de galinha d’angola que comera na cantina do garimpo.
Ah! Dunga naquela noite estrelada descobriu o porquê do soldado de 1,80m ter arriscado sua vida descumprido as ordens da rainha, madrasta de Branca de Neve, levando o coração de um veado no lugar do da linda Princesa de lábios vermelhos.
O tempo foi passando, passando... Dunga deixou de trabalhar com os outros anões, já que dormia toda a manhã recuperando a energia gasta durante a noite. A menina da pele alva, rosto rosado, cabelos da cor-do-ébano e lábios carnudos, como nunca se contentou com pouco, já que o amor tem que ser alimentado todos os dias com coisas grandiosas, o que não era o caso de Dunga, começou a dar umas escapadas, segundo Rumores, Arnaldo Rumores, vizinho mais próximo dos anões. Ele dizia que Branca de Neve ia se encontrar com o soldado que a tinha deixado fugir todas as quartas, quintas e sábados.
Branca de Neve terminou o namoro com Dunguinha, como ela costumava o chamar nas noites de lua cheia, pouco tempo antes de ter sido enfeitiçada através da maça do horror. Não era nem por Dunga ser pequeno, mas ele não conseguia beijar e preencher de amor ao mesmo tempo a parte que menos via sol do corpo da amada.
O resto da história você já sabe. Mas os Irmãos Grimm esqueceram de dizer ainda que enquanto Branca de Neve vivia feliz para todo o sempre com seu príncipe encantado, Dunga curtia com as anãzinhas da floresta e, às vezes, com as do reino também, pois, depois de ter namorado a filha do rei, ele tinha se tornado o anão mais desejado dos contos de fada.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Da Janela do Ônibus

No cruzamento da Bernardo Vieira com a Romualdo Galvão, mais ou menos, avistava do quarto assento do lado direito do coletivo, obviamente o lado da janela, um homem com seu filho, provavelmente seu filho, na parada reservada aos ônibus do interior, já em frente ao Midway. O menino parecia ter fome, seu pai franzia a testa onde batia o forte sol do meio dia semi-aparado pelas árvores da região. Mas as rugas momentâneas da testa não eram devidas somente ao sol, não.
Sob a viseira do boné da campanha passada para o governo, podia-se notar o abatimento moral daquele pai que via o filho como uma estátua de olhos brilhantes e água escorrendo da boca rachada olhando, sem outro foco, para um carrinho de milho e pamonha que costuma estacionar por ali. O menino, de sete ou oito anos, parecia um leproso olhando para Cristo, pelo menos depois de ver essa cena era assim que eu imaginava o olhar de um leproso.
Logo chegou o ônibus com destino a Ceará-Mirim. E o homem, de vestes simples, que portava uma mala cheia de alguma coisa pesada, puxou a mão de seu filho, após chamá-lo umas três ou quatro vezes. Aquele pai parecia fazer algum esforço, e um bom esforço, e mais esforço para que o filho andasse, mas nada acontecia, nada movia o corpo magricelo daquela criança, que vestia uma bermudinha surrada, mais ou menos uns dois ou quatro números acima do que o menino deveria vestir, era segurada por um pedaço de fio de antena amarrado do lado esquerdo daquele pequeno quadril.
Por fim, meu ônibus seguiu o itinerário, mas, arriscando minha cabeça, consegui ver o pai do menino tomando a mão de seu filho e o induzindo a chupar o dedão. O menino punha a mão livre no vidro da janela em que sentava, parecia querer pegar com a força do olhar e da mente inocente o milho que o vendedor entregava ao carona de um Corola que esperava quase sem paciência pelo troco da nota de vinte reais que usara para pagar pelos grãozinhos amarelos que perseguiram o cearamirinesezinho nos sonhos daquela noite.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

O homem que engoliu a Lua







Augusto – que tinha esse nome porque sua mãe adorava o poeta paraibano Augusto dos Anjos – gostava muito de brincar no rio, no campo... enfim, gostava muito de brincar.
Ele tinha um amigo chamado Pasqual, com quem mais brincava e se divertia.
A moda da época era brincar de astronauta, pois o homem havia acabado de pisar na lua, mas Augusto não gostava muito de brincadeiras futuristas, porém Pasqual o incentivou a construir um foguete consigo, e Augusto, com oito ou nove anos, aceitou.
Os meninos trabalhavam dia-a-dia, corriam contra o tempo para que o foguete ficasse pronto até o natal. E eles conseguiram esse feito.
Passavam o dia inteiro a imaginar que aquele foguete os levava à lua, às estrelas... foi assim por todo período de férias.
Pouco duradoura a alegria acabou, Augusto conheceu a tristeza quando Pasqual mudou de cidade com os pais. Passou dias cabisbaixo, quase sem querer comer. Não era para menos, seu companheiro de viagens o abandonara. O menino então começou a se dedicar aos estudos, formou-se aos vinte e três anos em Direito, casou-se, teve dois filhos, era feliz.
Mal lembrava de sua infância, Pasqual em sua mente era uma vaga lembrança, Augusto nem sabia mais ao certo o nome do antigo amigo. Num dia rotineiro e de nublado, um homem bateu em sua porta, era um vendedor de coisas, o homem vendia de tudo, cadeira, sofá, Bíblias... e Augusto comprou uma vara de pescar.
O doutor Augusto, como era chamado por seus clientes e amigos, nem mais lembrava o que era pescaria, e depois de uns minutos se arrependeu de ter gasto vinte e dois reais e setenta e cinco centavos naquele inútil caniço.
Alguns dias depois, Augusto brigou com sua esposa e foi para o quintal, era uma noite de lua cheia, ele pegou a porcaria da vara e lançou, como alguém que quer pegar um pássaro, o anzol em direção ao céu.
Por mais incrível que possa parecer, o anzol foi alto, muito alto, mais alto de que o prédio vizinho, e, após uns minutos, ele se afixou a algo firme. Augusto começou, então, a enrolar o molinete de volta, por uns instantes fingiu não acreditar, mas ele tinha pescado a Lua.
Cada vez mais o satélite se aproximava dele, ele espantado chorava descontroladamente, sem saber por que estava chorando, foi quando, enquanto Augusto permanecia boquiaberto com o fato que acontecia diante dos seus olhos, ele engoliu a Lua.
Foi um pouco incomodo, a Lua quase o entalou. Augusto, que era mais magro que o louco de a Mancha, ficou imenso, dizem uns que ele não poderia ter a mesma aventura de Jonas. Sua mulher não entendeu muito bem o que Augusto dizia, pois sua voz havia mudado, tinha ficado mais grave, era quase um baixo extremo. Quando Ana, esposa do pescador mais gordo do planeta, tornou a si depois de uma série de desmaios pediu-lhe o divórcio. Augusto hoje está imenso, mesmo após a complicada cirurgia que lhe arrancou a Lua do bucho. Ele se acostumou com o tamanho que adquiriu, e para preencher o vazio que a Lua o deixou ele teve que engolir um cometa que passava perto da Terra, mas devido a isso Augusto sofre muito com a azia. Isso só prova que Augusto é forte, queimação de cometa não é para qualquer um.

*Imagem do Google

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Dias Ímpares

Paínho me disse uma vez: - Filho não saia de casa nos dias ímpares, você não que ver sua mãe chorar de dor. Nunca acreditei nisso, mas obedecia sem reclamar.
Eu só saía de casa dia 02, 04... enfim... só em dias pares. Odiava os meses que têm 31 dias, pois ficava dois dias seguidos trancafiado.
Paínho nunca me fez entender ao certo o motivo de meu recato nos dias ímpares. O pessoal da escola já sabia, a professora não dava falta e “obedecia” as crendices do meu pai.
No dia 03 de março de 2005 meu querido pai morreu, nesse dia eu não quis sair de casa, estava triste. No dia seguinte foi o velório, ele foi enterrado no cemitério do Alecrim, nós morávamos lá perto. O enterro foi triste, minha mãe chorava assim como minhas tias, só quem não chorava era minha irmã que ria, tadinha! Ela não sabia o que estava acontecendo, mas eu sim. Eu sabia que nunca mais iria ver meu pai, pelo menos eu podia sair de casa todos os dias sem problemas... É! Toda tragédia tem seu lado positivo, assim pensava eu com oito, na verdade quase nove, anos de idade.
Os dias foram se passando, Aninha, minha irmãzinha, perguntava: - Mã, adê Paínho? Minha mãe chorava e dava comida a Ninha ao mesmo tempo. Eu começava a sentir necessidade de sair de casa, mas não saía, só nos dias pares. Era engraçado, meus amigos me chamavam pra jogar bola, e eu sempre dizia que não podia porque Paínho não deixava, mas agora eu poderia sair sem problemas, fosse dia 07 ou 13. Mainha até dizia: - Manuel, vá brincar! Você precisa se distrair, meu filho, vá!
Assim foram se passando os dias, as semanas... E era missa de um mês da morte do meu pai. Eu nunca entendia como ele apenas pediu a mim que não saísse nos dias ímpares, minha mãe ia à feira, Ninha ia à creche, e eu? Eu permanecia com meu pai em casa, ele lendo e estudando, e eu estudando e esperando o dia acabar.
Mãinha deixava Ninha na creche e saía para procurar emprego. Só meu pai trabalhava em casa, trabalhava dia sim e dia não. Ele era vigia! Paínho, no dia que tinha vago, os ímpares, não saía de casa pra nada, o meu velho gostava muito de ler jornais e a revista Época. Eu, de tão traumatizado com a prisão domiciliar, detestava e odiava qualquer tipo de jornal e revista, exceto as de mulher pelada, que Marcelo Henrique levava pra escola de vez em quando.
Mãinha não encontrara emprego. Decidiu fazer bolos e salgados pra vender. Ela pediu empréstimo ao banco, foi até fácil conseguir, pois paínho era funcionário público e mãinha ficou com a pensão, pensão esta que não era suficiente, já que maior parte da renda de Paínho vinha de artesanatos que ele fazia e mandava pras velhinhas do centro comunitário venderem.
Eu tomei o hábito de ficar em casa nos dias ímpares. Ficava sozinho. Uma das coisas que mais odiei nesse período foi quando a televisão pifou. Ah! Como eu fiquei irado, peguei ar, viu? Mas mesmo assim não saía de casa.
Logo me deu curiosidade de saber por que Paínho trocava os dias de folga, que eram sempre os ímpares, pra ficar lendo, lendo, fazendo artesanato dos mais variados, e lendo. Corri até a estante de livros e peguei um que se chamava Memórias Póstumas de Brás Cubas. Ele me chamou a atenção logo na primeira página onde havia escrito mais ou menos assim: “Dedico este livro ao primeiro verme que me comeu...”, não sei... ou melhor, tenho certeza de que não são estas as palavras utilizadas por Machado de Assis, o escritor da obra, sabe? Eu com nove anos e meio achei muito difícil entender aquele livro. Era gozado. As memórias eram do tal Brás Cubas, mas quem escreveu foi Machado de Assis.
Paínho gostava também de ler gibis, eles ficavam na prateleira de baixo da estante. Li todos eles, um mais legal que o outro. Descobri que muitos dos desenhos que eu assistia na televisão, que mãinha disse que ia comprar, porém não tinha comprado ainda, estavam também nos gibis do meu pai. Mas era mais divertido no gibi, pois eu poderia ficar o dia inteiro lendo. Eu fazia muito isso. Eu não gostava de esperar até o dia seguinte para saber o que tinha acontecido com o Super-Homem após ter sido trancado numa cela com grades de criptonita.
Na medida em que os gibis iam acabando, eu ia subindo a prateleira. Lá tinha A Ilha do Tesouro, Peter Pan.... e inúmeros outros livros massas. Quando eu chegava da escola, nos dias pares, eu corria pra estante. A diretora do colégio tinha proibido mãinha de me deixar levar livros pro colégio, pois eu só queria ficar lendo na sala de aula.
Conforme os anos foram passando, eu fui lendo os livros de paínho, que agora eram meus. Mãinha dizia que era minha única herança. Ninha foi crescendo e eu fui a ensinando a gostar de gibis. Ela adorava ler gibi. Num belo dia quem eu encontro no meio da prateleira do meio? Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Eu o segurei frente aos olhos por alguns segundos, longos e admiráveis segundos e o pus contra o peito pra pensar...
Decidi por fim ler o tal livro que eu não consegui passar da primeira página. Sentei na cadeira de balanço de paínho, que ficava mais ou menos na frente a estante de livros, e comecei a ler aquela obra.
Li novamente a dedicatória, li a primeira, a segunda e todas as páginas daquele livro. Passei a manhã de um dia ímpar lendo aquele livro. Pense num livro massa! Machado de Assis foi mesmo o maior gênio da literatura nacional, e Brás Cubas, aquele malando! Começa o livro contando como foi o velório, seu próprio velório. A gente se pergunta: Se já sabemos desde o início que ele morreu que graça tem? Não vou dizer! Leia também Memórias Póstumas e você vai saber.